29 de janeiro de 2021

às vezes

noite de lua ampla, rosada, umas poucas nuvens feito véu. pedra que nos fascina.

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no meio do inverno, tivemos uns dias de primavera. sol, calor, roupa no varal, azuis.

e tudo parece mais possível: fazer faxina, fazer algum plano, ter perspectiva. pouca, nada em excesso. tudo com cuidado.

como a salsinha brotando, uma mini delicadeza, as folhas tão pequenas entre os grãos de terra. tão diferente da batata, de folhas quase carnudas, com os pelinhos arrepiados buscando espaço para fora do escuro.

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este ano, está previsto que nos estados unidos haverá trilhões de cigarras, destas que saem da terra a cada 13 ou 17 anos. imagino a revoada, o zumbido alucinante, a alegria incontida dos insetos e a aflição generalizada dos humanos em volta. o especialista diz: não programe festas a céu aberto em maio. e diz também: aprenda sobre elas, veja a maravilha disso que pode parecer uma praga. lembre-se: não são gafanhotos. são um milagre do tempo, da seiva, do escuro. isso não foi ele que disse, fui eu que pensei. dezessete anos vivendo sob a terra e durante um mês e meio sair, buscar um par, se reproduzir, morrer. recomeçar o ciclo. isto talvez seja o milagre de sempre: o ciclo, o recomeço.

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vi uma palavra no dicionário que me deu um nó no estômago antes mesmo de saber o que queria dizer. uxoricídio. acho que lembrei de oxiúros, mas não tem nada a ver.

como morrinha não tem nada a ver com focinho, mesmo que uma coisa lembre a outra.

alguns dias e o que eu mais leio é dicionário. e é bom.

me fez lembrar de uma vez que cancelaram um voo, me levaram para um hotel e a única coisa que tinha para ler era a lista telefônica. prefiro os dicionários. mas qualquer palavra faz o pensamento se organizar. até o nome dos desconhecidos e o seu número de telefone. não liguei pra ninguém aquela noite. se ligasse, o que é que eu ia dizer? já não existem listas telefônicas.

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a vizinha é professora de piano. às vezes é bom. às vezes é ruim.

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a vida é feita de tanta historia pequena dentro da macrohistória da vida. como é que se conta uma vida? ninguém começa do começo. quem nasce a bem dizer não estava lá. lembra-se o que os outros contaram, a versão oficial que sobreviveu ao esquecimento e se adequou à vida que se seguiu àquele nascimento. a gente nasce bem depois do dia que foi parido. e vai nascendo.

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algumas vezes a gente só quer um colo para deitar a cabeça e ficar em silêncio. 

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às vezes eu uso muitas vezes a expressão às vezes. e o às vezes fica sendo quase sempre.

 

27 de janeiro de 2021

contato visual com uma árvore

 

(ron padgett)

"(...) não tenha medo de nada que esteja fora do seu controle. não tenha medo, por exemplo, de que o prédio desabe enquanto você dorme, ou de que alguém que você ama, de repente, caia morto.

coma uma laranja a cada manhã.

seja amável. ajudará a ser feliz.

acelere seu pulso até 120 batidas por minuto durante 20 minutos seguidos quatro ou cinco vezes na semana fazendo o que você gosta.

esperança em tudo. expectativa em nada.

cuide primeiro das coisas próximas. arruma o seu quarto antes de salvar o mundo. depois, salva o mundo. 

você deve saber que o desejo de ser perfeito é provavelmente a expressão oculta de outro desejo: de ser amado, ou de não morrer. (...)"



23 de janeiro de 2021

nos vendavais deste inverno

nada de novo, só o mesmo espanto diante da quantidade de informação a que somos expostas cada dia, o dia todo. às vezes, é como um sobrevoo, que em grandes linhas dá uma ideia do que acontece no mundo (será?). mas há dias em que meus olhos só encontram minúcias, detalhes, por qualquer lado: da tela aos livros, da cozinha às anotações que ficam perdidas em papelinhos por todo canto onde tenho papeizinhos. e não são poucos. no final de dias assim, uma espécie de excessos me toma a cabeça. tudo gira e nada faz sentido.

nestes tempos sem chão, os dias de excessos parecem folhas secas revoando no vendaval, sem pouso. sei que houve uma árvore que conectava as folhas, ou várias árvores num mesmo chão a unir os fluidos, ao menos. mas cadê o chão, os fluidos, a árvore?

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as florestas de sequoias de tempos em tempos precisam de incêndios, para que a vegetação que está na base das árvores possa receber a luz do sol e crescer. a casca das sequoias maiores é grossa o suficiente para que resistam ao fogo. o que parece morte é a vida daquele lugar.

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os lobos só aparecem na prosperidade.

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escavo partículas hipotéticas de matéria escura. a pá pesa imenso e forma calo nas mãos. depois com uma pá minúscula miniatura escavo ossos nervos artérias hemácias células em busca de um vírus cuja existência não é uma hipótese. é uma experiência horrível. que causa horror. encrespamento, agitação, estremecimento,  tremura, terror, medo. medo. sensação de medo, que faz arrepiar o cabelo e a pele. dentro.

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não se percorre o mundo para mudá-lo. percorre-se o mundo e, por percorre-lo, o tornamos outro.

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silene siegel, no filme do furtado, é uma reserva de risada do ridículo que somos. que eu possa rir de mim mesma é um princípio de compaixão. e a compaixão por alguém é o contrário do medo.

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pus umas sementes de salsinha na terra, depois de as deixar na água por vinte e quatro horas como recomendava o envelope onde vinham as sementes. por mais que tenha feito o frio que a semente de salsinha precisa para brotar, não há broto de salsinha. as rúculas são umas fáceis, deliciosamente fáceis, em poucos dias já suas cotilédones se exibem desenhando na terra o movimento do dedo ao desenhar o sulco pra abrigar a semente.

 

de resto, é um tempo difícil para as plantas. o excesso de vento, a temperatura baixa, algumas dormem, outras  só tiram um cochilo, um prender de respiração.

a calanchoe prepara mil botões de flor.

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o vento que não pára resseca as folhas, depois as arranca dos galhos e as leva em redemoinhos como se nunca mais fossem tocar o chão.

como o excesso de informações desconectadas que me ocupam a cabeça estes dias.

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e há manaus.

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que não nos falte o ar.

 

 

 

20 de janeiro de 2021

e o coração de pedra

alguns dias e não preciso de espelho para saber que estou chata, ranzinza, mau humorada, como se todos os bichos do mundo me comessem por dentro. nestes dias oscilo entre ficar quieta num canto ou explicitar que estou assim como estou. a oscilação é por conta de já ter concluído que algumas vezes a ranzinzice passa se fico uns dias quieta, mas outras vezes o mau humor só passa quando consigo explicitar que estou mau humorada. quer dizer, tem vezes que é preciso ficar pro bicho fugir, outras vezes é preciso correr pro bicho não pegar. no mais das vezes nem uma coisa nem outra, mesmo sem espelho sei como estou. procuro a sabedoria de me lembrar que também isso vai passar. a roda da fortuna gira fora mas gira dentro também, alternando o eu que olha o mundo pela janelinha dos olhos, e dos outros sentidos todos, devo acrescentar para ser mais exata.

dito isso, ou escrito isso, não deveria dizer mais nada.

por que insisto?

pra ver se passa.

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reli a montanha mágica do mann. primeiro, achei que estava lendo pela primeira vez porque não tinha registro de alguma vez a ter lido. na medida em que avançava a leitura, fui me dando conta que algum eu já a tinha lido. chegando no final, tive certeza de duas coisas: que eu já tinha lido este livro e que eu era outra quando o li. em seguida me lembrei que na mesma época em que li a montanha mágica, tinha lido a hora da estrela, da clarice (lispector). e resolvi reler, para ver se confirmava o que tinha na memória. da clarice, lembro de trechos inteiros, do fluxo das frases e das palavras, mas não me lembrava da estrutura narrativa. concluo que voltei a gostar de clarice. quando tinha uns vinte, gostava. deixei de gostar na medida em que me apaixonada pela hilda (hilst), pela marguerite (duras) e pela françoise (sagan). depois, enveredei por mil e umas escritoras e escritores e não tinha voltado com atenção para clarice. quando alguém me perguntava o que ler da clarice, dizia com determinação: a paixão segundo g.h. se me perguntarem de novo, não vou saber o que dizer.

pensando bem, quando os meninos eram pequenos, lemos clarice juntos. o mistério do coelho pensante e a vida secreta de laura são bons de se ler com crianças, e a releitura não cansa. quem já conviveu com criança sabe o que estou dizendo quando digo releitura. seria mais certo dizer releituras, assim, no infinito plural.

comentar estes dois livros é me ajudar a notar que nestes tempos de pandemia, embora eu diga que não estou conseguindo ler, li muito e muitas pessoas que antes não tinha lido.

isso deveria ser suficiente para passar a rabugice interna.

mas não é.

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deve ser o inverno. estes dias curtos, frios. as árvores peladas e esta incerteza do que é que se pode fazer realmente, até onde se pode planejar. ainda sem pisar o chão, ainda o desamparo.

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tenho voltado a um velho projeto que tenho, que é um diálogo com os registros que minha avó fez da vida dela. quando digo voltar ao velho projeto é mais no pensamento do que na ação. concretamente não tenho feito nada. mas imagino os cinco anos que a família passou na alemanha, no caos da guerra suspendida, e não sabiam se poderiam voltar para casa, ou seja, se ainda havia algum tipo de casa para voltar, ou se deveriam buscar um lugar para se estabelecer e que seria necessariamente fora da alemanha, fora da europa, fora do caos da guerra em suspensão. cinco anos. e não é que passaram os cinco anos num lugar estabelecido, minimamente organizado. não, foram cinco anos mudando a cada tantos meses, buscando abrigo, calor e comida. ajeitando-se no espaço nenhum que havia para eles, refugiados de guerra.

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a guerra. vejo imagens dos campos de refugiados neste inverno e me paraliso.

vejo as embarcações no mediterrâneo. e as pessoas que só querem aportar.

não sei o que fazer. sei que isto de fronteiras não é o melhor jeito de estarmos no mundo. sei que esta lógica de produzir e consumir cada vez mais também não nos ajuda em nada. e sei também que mudar o paradigma é como construir uma horta sobre um platô de pedra. que não se sabe nem por onde começar. começa-se com vasos pequenos. depois vasos maiores.  enquanto todos repetem que o ideal seria remover o platô, ou cavá-lo até chegar na terra. vou pondo os vasos. não tenho força para remover nem cavar na pedra. mesmo o que planto nos vasos não vai assim tão bem.

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por isso tudo, veja, por isso tudo, alguns dias estou chata, ranzinza, mau humorada, como se todos os bichos do mundo me comessem por dentro. mas é só uma pedra que ocupa o meu peito.

faz falta uma explosão.

 

13 de janeiro de 2021

o tal lado bom

nestes tempos difíceis, muita gente repete que é preciso olhar o lado bom das coisas. como esta foto, por exemplo, mostrando o lado bom de uma gaivota.


mas a foto é bem maior, e exibe os outros lados da gaivota. ando exercitando ver a foto toda do mundo e não só o lado bom. ampliar um pouco a compreensão. num primeiro momento chega a ser assustador.


11 de janeiro de 2021

pequenas epifanias do cotidiano

não sei organizar as coisas. tirei uma casa de dentro de um apartamento e agora tenho uma casa que carrego comigo e um apartamento do qual mal me lembro. uns vislumbres. do sol na cozinha, sombras da cortina de crochê, o verde ventando na janela da sala. a cor entardecida das paredes, os móveis grandes, pesados, feios – um espaço em branco – e já não me lembro como era barulhento viver ali, nem lembro do assoalho que rangia, do chão do banheiro imitando madeira. tudo ali éramos nós e nada era nosso ali. nunca deixar de ser nômade.

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dia desses, desmontando a árvore de natal encontrei a bola de lantejoulas que a soraya fez em sua sapiência à espera da morte, buscando, ao mesmo, adiá-la. um alfinete espetando uma miçanga, espetando uma lantejoula minúscula, espetando uma lantejoula um pouco maior e mais outro alfinete e mais outra miçanga e mais outras lantejoulas e mais outras e mais de duzentos alfinetes com miçangas e lantejoulas espetadas numa bola de isopor, até chegar num brilho de escamas. lampejo das mãos dela, que um dia estiveram dadas às minhas, que ainda não têm a paciência de adiar a morte porque não sei nem suspeito quando é que ela vem.

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mesmo nas árvores peladas há pássaros.

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as ervilhas produzem aos poucos, sobrevivendo aos vendavais.

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colhi quatro fisalis. quase amarelos.

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plantei salsinha, que gosta de brotar no frio. e plantei tomates nuns tubos, deixei dentro, no quentinho da casa.