20 de janeiro de 2021

e o coração de pedra

alguns dias e não preciso de espelho para saber que estou chata, ranzinza, mau humorada, como se todos os bichos do mundo me comessem por dentro. nestes dias oscilo entre ficar quieta num canto ou explicitar que estou assim como estou. a oscilação é por conta de já ter concluído que algumas vezes a ranzinzice passa se fico uns dias quieta, mas outras vezes o mau humor só passa quando consigo explicitar que estou mau humorada. quer dizer, tem vezes que é preciso ficar pro bicho fugir, outras vezes é preciso correr pro bicho não pegar. no mais das vezes nem uma coisa nem outra, mesmo sem espelho sei como estou. procuro a sabedoria de me lembrar que também isso vai passar. a roda da fortuna gira fora mas gira dentro também, alternando o eu que olha o mundo pela janelinha dos olhos, e dos outros sentidos todos, devo acrescentar para ser mais exata.

dito isso, ou escrito isso, não deveria dizer mais nada.

por que insisto?

pra ver se passa.

***

reli a montanha mágica do mann. primeiro, achei que estava lendo pela primeira vez porque não tinha registro de alguma vez a ter lido. na medida em que avançava a leitura, fui me dando conta que algum eu já a tinha lido. chegando no final, tive certeza de duas coisas: que eu já tinha lido este livro e que eu era outra quando o li. em seguida me lembrei que na mesma época em que li a montanha mágica, tinha lido a hora da estrela, da clarice (lispector). e resolvi reler, para ver se confirmava o que tinha na memória. da clarice, lembro de trechos inteiros, do fluxo das frases e das palavras, mas não me lembrava da estrutura narrativa. concluo que voltei a gostar de clarice. quando tinha uns vinte, gostava. deixei de gostar na medida em que me apaixonada pela hilda (hilst), pela marguerite (duras) e pela françoise (sagan). depois, enveredei por mil e umas escritoras e escritores e não tinha voltado com atenção para clarice. quando alguém me perguntava o que ler da clarice, dizia com determinação: a paixão segundo g.h. se me perguntarem de novo, não vou saber o que dizer.

pensando bem, quando os meninos eram pequenos, lemos clarice juntos. o mistério do coelho pensante e a vida secreta de laura são bons de se ler com crianças, e a releitura não cansa. quem já conviveu com criança sabe o que estou dizendo quando digo releitura. seria mais certo dizer releituras, assim, no infinito plural.

comentar estes dois livros é me ajudar a notar que nestes tempos de pandemia, embora eu diga que não estou conseguindo ler, li muito e muitas pessoas que antes não tinha lido.

isso deveria ser suficiente para passar a rabugice interna.

mas não é.

***

deve ser o inverno. estes dias curtos, frios. as árvores peladas e esta incerteza do que é que se pode fazer realmente, até onde se pode planejar. ainda sem pisar o chão, ainda o desamparo.

***

tenho voltado a um velho projeto que tenho, que é um diálogo com os registros que minha avó fez da vida dela. quando digo voltar ao velho projeto é mais no pensamento do que na ação. concretamente não tenho feito nada. mas imagino os cinco anos que a família passou na alemanha, no caos da guerra suspendida, e não sabiam se poderiam voltar para casa, ou seja, se ainda havia algum tipo de casa para voltar, ou se deveriam buscar um lugar para se estabelecer e que seria necessariamente fora da alemanha, fora da europa, fora do caos da guerra em suspensão. cinco anos. e não é que passaram os cinco anos num lugar estabelecido, minimamente organizado. não, foram cinco anos mudando a cada tantos meses, buscando abrigo, calor e comida. ajeitando-se no espaço nenhum que havia para eles, refugiados de guerra.

***

a guerra. vejo imagens dos campos de refugiados neste inverno e me paraliso.

vejo as embarcações no mediterrâneo. e as pessoas que só querem aportar.

não sei o que fazer. sei que isto de fronteiras não é o melhor jeito de estarmos no mundo. sei que esta lógica de produzir e consumir cada vez mais também não nos ajuda em nada. e sei também que mudar o paradigma é como construir uma horta sobre um platô de pedra. que não se sabe nem por onde começar. começa-se com vasos pequenos. depois vasos maiores.  enquanto todos repetem que o ideal seria remover o platô, ou cavá-lo até chegar na terra. vou pondo os vasos. não tenho força para remover nem cavar na pedra. mesmo o que planto nos vasos não vai assim tão bem.

***

por isso tudo, veja, por isso tudo, alguns dias estou chata, ranzinza, mau humorada, como se todos os bichos do mundo me comessem por dentro. mas é só uma pedra que ocupa o meu peito.

faz falta uma explosão.

 

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