19 de agosto de 2025

da nossa incapacidade de ver e gritar

o cão descobriu há algum tempo um ninho de pombos no oco da parede ao rés do chão. pensei que fossem ratos, não eram.
cada vez que passavamos por perto, metia o focinho tentando alcançar o ninho, o filhote. sem conseguir. estavam fora do seu alcance e eu respirava aliviada (e ainda certa de que fossem ratos).
hoje, perto do oco de parede, lá estavam a mãe pombo e seu filhote ensaiando voos.
e porque acreditei que ninho e filhotes estivessem fora do seu alcance e porque não reparei na aula de voo ali bem pertinho do oco ao rés do chão, deixei o cão solto.
o cão correu, saltou, abocanhou e matou o filhote. foi para um canto do parque com o pombinho na boca. enquanto devorava cabeça, vísceras, patas, partes mole, a mãe pombo não deixava de dar voltas e mais voltas onde seu filhote tinha desaparecido sem explicação.
em seus olhos a tristeza infinita de uma mãe que perde seu bebê.


a tristeza infinita de uma família quando matam seu bebê.
a tristeza infinita de um clã, de uma cidade, de um povo.
a tristeza infinita.
a tristeza da nossa humanidade quando matamos os bebês.
quantos bebês mortos se calcula que sejam necessários para que a tristeza seja densa, consistente a ponto de nos mover?
quanta tristeza é preciso?
quantos bebês alvejados, mutilados, mortos de fome para que se interrompa por fim o gesto, a mão de quem obedece e cale para sempre a boca de quem manda matar?

 

11 de agosto de 2025

não olhe

quem adivinharia as fomes da minha avó? quem veria as fomes da minha mãe? uma neblina densa nos cega e não vemos as crianças na beira de um mundo que se esfacela.
minha avó dizia para minha mãe que dizia para mim e minhas irmãs: não olhe para o lado ruim da vida, e desviávamos a vista do medo, do assédio, dos acidentes. vivíamos docemente instaladas num coração que nada vê por não conhecer as sombras.
foi preciso um raio, um talho na pele inflada e túrgida, para que a ferida purgasse os vermes, os venenos, os estupros, a dor.
para que, enfim limpa, a ferida fosse fome.
a fome que move o mundo, não a que o mata e nos devora desde dentro.

8 de agosto de 2025

o poder da opressão

aprendi com meu pai a cortar cordas, a cortar de uma só vez os tantos fios de que é feita uma corda: um golpe seco, e logo um nó para que o trançado não se desfaça.

quando é uma corda sintética, de plástico, aprendi com ele a queimar a ponta cortada e num movimento cuidadoso e certeiro de dedos umidecidos juntar toda aquela maçaroca ainda quente e derretida.

em ambos casos, nó ou fogo, não se podia perder tempo para manter a integridade da corda.

só estes dias, na ferrateria, aprendi que uma fita adesiva pode delimitar o lugar do corte mantendo unidos os fios para que não escapem da chama.

pode-se respirar e contemplar o processo sem pressa porque os fios unidos não se dipersam quando os aproximamos da vela acesa.

fiquei tão perplexa diante da ideia de conter à força e queimar o que tende a se esgarçar que nem notei o fogo invadindo a casa.

6 de agosto de 2025

o que parece um pesadelo

noite destas sonhei que uma lagarta verde incrustada no meu antebraço esquerdo era meu pai me lembrando alguma coisa que assim que acordei já não sabia mais o que era.

amanheci descompassada com o dia, ainda me arrastando dentro do sonho enquanto buscava com pressa alcançar o tempo que se antecipava e rompia copos e ritmos, os ritos e as palavras gentis.

quando enfim eu disse como aquela que disse que iria ela mesma comprar as flores ainda que não fossem flores que eu quisesse, quando eu disse vou eu mesma, e saí, nas ruas vi que nos braços esquerdos de todas as pessoas havia uma lagarta verde incrustada como lembrança de alguma coisa que nossos pais tinham dito não se esqueçam, e nós nos esquecemos.

umas crianças imóveis com o olhar meio morto esperavam nas calçadas enquanto nós nos mantínhamos ocupados tentando decifrar o mistério das lagartas.

não reparamos nas crianças, nem notamos que pouco a pouco todos nos dissolvíamos numa neblina densa. no ar o cheiro das carnes que apodrecem depois da explosão.

4 de agosto de 2025

das lágrimas

em outros tempos, alguém inventou um pote para guardar lágrimas: pequenas ânforas de vidro e uma tampa que mal fecha. depois de guardadas as lágrimas, era preciso esperar que secassem. quando as lágrimas desapareciam, encerrava-se o luto.

tem vezes que a morte se aproxima e ronda, ronda, ronda e não se afasta por nada, repara.
olho em volta e constato tanta morte, tanta morte, e chego a ter medo do meu próprio fim.
depois, de tanto vê-la, a morte, entendo melhor as duas pontas desta vida e uma flor se abre em pleno verão.
o medo se reclui e me preparo para quando for, de fato, minha vez.
aprendo a chorar o tanto que escave na pele uns vãos por onde passe, de leve, uma brisa.