27 de março de 2015
25 de março de 2015
estátua
escrever é
isto: me visto pra você me despir, construo passagens de pedras no rio. depois
me pergunto ansiosa quanto tempo levará para que minha língua envelheça e as
palavras carcomidas se cubram de poeira e rachaduras e os fungos e a ação do
tempo sobre elas torne cada palavra incompreensível. quanto tempo minha língua
morta e a saliva crosta seca no céu da boca? minha língua quando não puder mais
despertar sua pele e umedecer os vãos: minha língua a não me vestir mais e
ninguém saberá despir nem revelar e não se saberá quanto do que digo flor é flor
quando o que digo pétala nem se saberá quanto da terra era nome quanto era
ninguém: o rastro da língua na palavra estátua imóvel coberta de cascas e
musgos pulsará irreconhecível. para isto, veja, para isto é que se busca é que
se constrói é que se oculta toda esta palavra exílio.
.
.
24 de março de 2015
...
a comida
que faço
o amor que
a poesia
nos limites
do corpo que habito
me habitam
22 de março de 2015
branco no branco. um ovo. e me lembro da história da vida do gigante que vivia sem medo tudo o que fazia porque sua vida não estava ali, no seu peito. sua vida estava guardada no fundo do mar, dentro da boca de um peixe que dormia numa gruta. dentro do peixe havia um baú, dentro do baú uma pedra, dentro da pedra um ovo, onde dentro uma vela acesa era a tal vida. a vida oculta. o gigante exposto e sua vida guardado segredo. isso que digo preto no branco, o escrever, é um pouco o avesso dessa vida de gigante. eu faísca dentro de um ovo dentro de uma pedra dentro de um baú dentro de um peixe dentro de uma gruta no fundo do mar e as palavras construídas aí: mundo afora. ou mundo adentro: do outro. o avesso do ovo. preto no preto.
19 de março de 2015
língua água
quando traduzo de uma outra língua para a minha língua-mãe, é como se
essa outra língua fosse uma água que pego em balde, pote, copo. e, ao
lançar esta água-língua sobre as palavras, elas se revelam e quase as
posso ver, ler na minha língua-mãe. mas se, em vez de traduzir, quero
construir e escrever e falar nesta outra língua-água, não me bastam o
copo o pote o balde. nestas horas preciso me largar da margem língua-mãe
para mergulhar no rio que é esta outra língua-água. é mais bonito nadar
em rio que chafurdar em balde. num balde não se perde o pé. num rio as
braçadas podem ser lentas, sempre posso ver o céu.
17 de março de 2015
pele das amêndoas
as amêndoas têm uma
quase penugem. por dentro desta quase penugem
as amêndoas têm uma
casca rugosa e áspera. por dentro desta casca rugosa
as amêndoas têm uma
pele fina e delicada. por dentro desta pele
as amêndoas são
brancas brancas. por vezes amargas.
nunca se sabe se a
fragilidade é falta ou excesso, o gesto
que se contém porque
não se sabe ou porque
sim, sabe.
no meio da tempestade
a mulher sorri.
gosto de vir ao
cassino, sabe? quase sempre perco.
acho bom assim. é a
vida. nada me faltou.
fiquei viúva quando as
crianças eram muito pequenas
agora: nora, genro,
netos.
aos oitenta e um
preciso respirar.
o do meio sempre está
comigo, ótima companhia
e ninguém o entende
muito bem
isso de transtorno
mental
trabalhou contribuiu
tem boa pensão
não paga aluguel
sobrevive bem.
esquizofrenia:
as pessoas têm medo.
vim de outros extremos
onde a terra vale nada
quando se quer guardar
oliveiras e
amendoeiras
a terra vale muito se
quiser comprar
quem é que paga?
no portal do anjo
encontrei o alfaiate da minha cidade
aquele que me ensinou,
e era raro mulher neste ofício.
me viu e disse quero o
teu cuidado nas minhas roupas.
fui. por muitos anos.
agulha linha costura.
aqui na capital.
alimentei e criei meus
filhos.
eduquei. na retidão.
tenho muito azar no
cassino.
mas é como o azar desta
chuva, e não digo.
outro dia foi o fêmur,
muita água numa calçada.
hoje o motorista me
deu este guarda-chuva.
este guarda-chuva é
meu, senhora.
pois, que o leve, não
é meu, o motorista insistiu.
digo que sim, que vi o
homem insistindo, entregando.
ela dizia não é meu. e
ela não soube o que dizer.
eles nos olham como olhassem
duas ladras de guarda-chuvas chineses.
que nem deveriam ter
dono, ela diz, quando os inquiridores se foram.
jamais um guarda-chuva
deveria ser roubado. nem guardado numa casa num dia de chuva.
concordo. são de quem
precisa.
ela pensa: e nem todos
os guarda-chuvas chineses são ruins. há tantos bons quantos ruins.
em tudo. eu e você.
dentro de mim e dentro de você.
veja a chuva quase
parou, veja toda água quase vai pro mar.
vejo as folhas secas
do inverno boiando nas poças.
um relâmpago atravessa
o céu na horizontal. clarão.
outra vez a escuridão.
llavors quer dizer
semente
llavors quer dizer
então:
llavors
13 de março de 2015
extraer un g
no que parece ser a ponta seca de um galho seco de uma arvore seca, se
prepara uma mini mini mini explosao. um pulsar minusculo. ela perguntou:
se nao tem rima, pode ser um poema? mas se nem palavra....
12 de março de 2015
11 de março de 2015
nem digo
nem digo
plantar colher
digo
comprar comida crua e transformar em alimento, pão
nem digo
fiar e tecer ou cortar e costurar
digo
fazer barras, firmar botões, consertos pequenos. fechar vãos
não, nem
fazer filhos digo
cuidá-los
nem ser
o tempo que envelhece
mas
guardar estes últimos momentos
não digo
nunca remover pedras se é poeira que se deposita todo dia
se a
roupa suja se a louça se alguém tem que fazer as compras ver se as calças se os
cabelos as orelhas se os modos
todo
este trabalho digo invisível, e não digo mas lembro não pago, experimente
o mundo,
como é, depende dele
não
viver no abandono de serpentes
não ser
ninho de vespas
não ter
que comer insetos
e quanto
aos desertos não passar a vida atravessando areia quente e seca
digo:
experimente a água, está fresca
na
toalha xadrez ela deposita um copo vidro e transparente
a água
do copo lentamente distorce a visão que tenho de suas mãos – ásperas
depois
oferece um café
arruma
um vasinho de violetas africanas, a penugem das folhas. tira as flores murchas.
amassa entre os dedos
a tarde
no silêncio da tarde
já termina
o sol:
suspira:
...
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