7 de outubro de 2018

fermento na massa

voto.
volto pra casa e preparo pão. farinha, fermento, água, sal. o pão é um exercício de confiança no futuro e de nenhuma arrogância. que o pão fique bom não depende só de mim e do que eu seja capaz. depende muito da farinha, que por sua vez depende do trigo, que depende da terra e da água e da semente que dá origem ao trigo. a farinha depende de quem plantou o trigo, de quem o moeu, de quem o armazenou e o fez chegar até mim. as minhas mãos que o amassam. o sal e sua trajetória desde o mar. a água e seus caminhos. o fermento é sempre uma confiança no futuro. o fermento é feito de farinhas e águas juntadas a outras farinhas e águas fermentadas, remetendo a vidas passadas e variadas que vieram muito antes de nós. este amassar me lembra que minha mão é necessária mas não suficiente para que esta mistura de sólidos e líquidos e fermentos cresça e, ao assar, se transforme em pão. sei que a esperança de um pão compartilhado aumenta as chances de que a massa que amasso e asso se torne um bom pão. mas sei também que as mãos que plantaram a semente, que colheram, a que moeram e fizeram o trigo se tornar farinha não conhecme a minha mão e, no entanto, delas também, de todas nossas mãos – passadas e presentes - depende este momento, em que uma massa se transforma, e que tenhamos todos pão para comer.
pus o pão no forno.
espero.

20 de setembro de 2018

gabriel: um poema

há duas elegias que carrego comigo há tempos. a do drummond (Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria também chamada noite, e o frio ao frio em bruma se entrelaça, num suspiro. E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil para mim que esperava os grandes sóis violentos, me sentia tão rico deste dia e lá se foi secreto, ao serro frio.) e a do rilke (Quem, de toda a legião dos anjos, se eu gritasse me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração Aniquilar-me-ia sua existencia demasiado forte. Pois, que é o belo senão o grau do terrível que somos capazes de suportar Porque impassível desdenha destruir-nos? Todo anjo é terrível.)
este ano, Aníbal me apresentou gabriel, do edward hirsch. e há meses, trago comigo esse longo poema que é, dentre muitas outras coisas, a elaboração do luto pela perda de um filho. traduzo (toscamente) um dos poemas. recomendo (vivamente) que leiam o livro, agora também traduzido para o espanhol, numa edição kriller.


o poema do hirsch:

Eu não sabia que o trabalho do luto
É como carregar um saco de cimento
Morro acima na noite

Nâo se vê o cimo
Porque não há cimo
Pobre aflição de Sísifo

Eu não sabia que seria uma luta
Entre arbustos rasteiros
Sem caminho para cima

Porque não há caminho
Só uma rocha abrupta
Com um rio onde cair

E o tempo com seus aposentos medievais
O tempo com suas arestas irregulares
E instrumentos contundentes

Eu não sabia que o trabalho do luto
É uma lida na escuridão
Que carregamos por dentro

Ainda que às vezes quando durmo
Estou de novo com ele
E logo desperto

Pobre pena de Sísifo
Não estou preparado para este pesadelo
Cimentado em meu corpo

Observe atentamente e você verá
Quase todos carregando sacos
De cimento em seus ombros

Por isso é preciso valentia
Para se levantar da cama a cada manhã
E escalar o dia

6 de setembro de 2018

pedras

é pelas pedras que a gente sabe onde está.
nosso saber tem sido isso, pedras.
e onde elas estão.

17 de agosto de 2018

...

um atentado
um atentado é um atentado
um atentado quer chamar a atenção e chama
quer despertar o medo e desperta

o atentado deixa a gente frágil como o diabo
imaginando coisas que podem poderiam poderão acontecer
com os amigos os filhos os conhecidos
e os desconhecidos

o atentado assusta assim tão perto
o atentado assusta assim tão conhecido o lugar
onde tudo explode um carro passa por cima feridos sangue mortos
a explosão

tudo
um atentado libera tudo: os monstros

foram os chamados bárbaros que impuseram um novo modo de atar os cavalos. antes, para puxar um carro, eram amarrados pelo pescoço e perdiam o fôlego. ao serem presos pelas omoplatas, aumentaram até quatro vezes sua força de tração.

25 de junho de 2018

o que parece longe

se me perguntassem eu diria nem tanto pelas palmeiras nem tanto pelo gorjeio do sabiá. mas mais, muito mais, pela manga, a banana, a tapioca, o quiabo, o jiló, os feijões, o pastel, a garapa, a feira. os perfumes da feira. o gosto amarelo da lima da pérsia. o sol morno logo de manhãzinha. mais ainda as mesas fartas, os abraços que a gente é capaz. os risos. as chuvas fortes. minha mãe. as comadres. os irmãos, os amigos. algum vizinho. qualquer canção.
vou ali. e demoro. estarei mais perto, parecendo longe.

12 de maio de 2018

guerra, guerras

para chegar em alguns lugares que se quer chegar, nem sempre os caminhos são amáveis. por exemplo, me ocupo da segunda guerra mundial. e as mulheres violentadas de tantas formas pelas tropas, por todas as tropas. me pergunto o que havia no cotidiano daquele país, daquela população que apostou numa ditadura racista, assassina, absurda, e que havia perdido. e porque sabia que havia participado, ainda que indiretamente do horror, se calava.
entre as tantas leituras, chego em sebald, sobre a história natural da destruição.
“Com a data de 20 de agosto de 1943, na passagem anteriormente citada, Friedrich Reck informa de uns quarenta ou cinquenta fugitivos que tentaram assaltar um trem em uma estação da Alta Baviera. Na tentativa, uma mala de papelão “caiu numa plataforma, se arrebentou e todo o seu contéudo virou. Brinquedos, um estojo de manicure, roupa interior chamuscada. Finalmente, o cadáver de um menino assado e mumificado, que aquela mulher meio louca levava consigo como resto de um passado que poucos dias antes estava intacto.” “
ou
“(...) só com os lança-chamas podiam abrir caminho até os cadáveres que jaziam nos abrigos antiaéreos, tão densas eram as nuvens de moscas que zumbiam ao seu redor, e as escadarias e o chão dos porões estavam cobertos por vermes resvaladiços, mais grossos que um dedo. “Ratazanas e moscas dominavam a cidade. Insolentes e gordas, as ratazanas corriam pelas ruas. Mas mais repugnantes eram as moscas. Grandes, de reflexos esverdeados, como nunca se tinha visto. Davam voltas como caroços pelo asfalto, pousavam nos restos de parede copulando umas sobre outras e se aqueciam, cansadas e fartas, nos vidros quebrados das janelas. Quando já não podiam voar, arrastavam atrás de nós através das mais mínimas fendas, sujavam tudo, e seus sussurros e zumbidos eram a primeira coisa que ouvíamos ao despertar.”
no brasil, agora temos documentos que nos explicam que os generais da ditadura estavam informados e decidiam, caso a caso, quem viveria e quem morreria. nome por nome. por que a gente faz isso? por que a gente acha que a supressão do outro, sua morte, é que nos salva a vida?

3 de maio de 2018

tucum

em setembro de 1989, no pará e numa situação muito especial, ganhei um anel de tucum. nestes anos todos, até anteontem, este anel esteve no meu dedo. sempre. sempre. sempre me lembrando o que não me esqueço, a tal opção preferencial. nestes anos todos o anel aproximou e afastou gente, como um farol (quem vive ao lado já nem nota, mas é importante para quem navega na escuridão). há dois dias o anel quebrou em quatro. o preto noite do tucum era só um anel. eu sei. dois dias que vou e volto numa viagem no tempo. a água sob a ponte. a ponte. o rio. tudo o que fomos. o pouco que fiz. depois, na mesma noite, talvez, sonhei que cuidava de alguém que não conseguia andar. eu acolhia, abraçava, acalentava. o pão e os abraços.

ao sol


dia desses, sentada ao sol na praça do rei, me dei conta que fazia figuração pras fotos dos turistas. eu e umas tantas pessoas, nosso intervalo  de um dia qualquer e ninguém se pergunta  quem somos por que esperamos por que um de nós chora num canto quem é este mendigo. os turistas chegam, sobrevoam, riscam de sua lista “praça do rei”.  há grupos de turistas instalados em alguns pontos da cidade. olhando com atenção é possível notar que os grupos parecem permanecer, mas a cada vez são outros. os turistas, todos tão iguais. eles vão, a gente fica, sentado nas escadarias da praça do rei num intervado de um dia qualquer. fazendo figuração. entre eles, há adolescentes de pernas desproporcionais, movendo-se, como bandos de pombas quando se joga umas migalhas de pão. o gótico. o tempo. penso na morte. nesse exato momento ao sol sei que figurantes, adolescentes e turistas evitam pensar na morte. porque sempre evitamos o pensamento morte entre um cigarro e outro uma foto e outra um dia e o seguinte mesmo que os sonhos a cada noite se tornem pesadelos e horror. neste, e em todos os momentos, queremos ser sempre eternos. sorrisos congelados. fumaça de cigarros. na praça do rei. ao sol. 

no centro de são paulo um prédio desaba. eram cento e cinquenta famílias. quarenta e nove mortos e há quem condene os que não voltaram para salvar seus bichos.

23 de abril de 2018

baba yaga baba vanga


nas montanhas de rupite, na bulgária, antes da primeira guerra, nasceu uma menina. crescia como todas as meninas. até que uma tempestade a arrastou por quilômetros. foi encontrada num bosque, os olhos, que haviam sido azuis, ficaram cheios de pó e areia.  cegos. cegos para o mundo tal como o vemos. em sua cegueira, começou a dar notícia de futuros, vivos e mortos. em seus olhos fechados ela via fora do tempo, além do tempo. antes de morrer, ela diz: uns anos mais e faremos pactos construindo uma sociedade comunista em que a natureza será recuperada. que trezentos anos mais e saberemos o que é viajar no tempo, que a terra não será mais habitável mas os humanos seremos bilhões e imortais e poderemos falar com deus. no ano cinco mil este universo terá fim.
buscava uma foto que vi no consultório do dentista mas que na hora não me pareceu tão marcante e agora. nas primeiras páginas da revista, havia a imagem de uma medusa muito delicada, que a um simples toque se pulveriza. na foto, a medusa -  ou eram muitas medusas? – parecia uma galáxia luminosa mergulhada na escuridão, ou parecia as fotos que se divulgam quando se anuncia galáxias distantes e sabemos que estas fotos foram coloridas artificialmente, para que acreditemos, tanto quanto pintam as fotos do sol – que é branquíssimo – usando tons de amarelo e laranja, para que não duvidemos do que os olhos não veem.


quando tudo me desconforta, gosto de ler notícias do cosmos, como se o cosmos fosse uma coisa lá longe, desconectada do que sou. ou leio noticias do microcosmos, as pequenas descobertas, as novas teorias para compreender energia espaço tempo, como se não fosse eu também energia espaço e tempo,como se não estivesse eu também neste micro e neste macrocosmos, todos tão desconhecidos: o micro o macro e eu.
de uns tempos pra cá passei a ler também notícias sobre profecias. daquelas a la nostradamus. mas há outras, havendo muitos profetas em todos os cantos. um tipo específico de profecia que me encanta não é a que simplesmente anuncia tragédias que cabem na nossa concepção de mundo atual, e vamos buscando a coincidência entre profecias e fatos pra ver se fazem sentido. o que eu gosto nas profecias é quando, depois de anunciar uma tragédia contemporânea, nos falam de mundos e possibilidades para daqui a muitos mil anos. e ao fazrem isso, rompem com a lógica que temos de mundo.
recentemente li umas profecias que se conectavam com o macro e o microcosmos. as profecias já são antigas, sendo novas só para mim, que cheguei nelas buscando uma foto de uma antomedusa que vi numa national geographic à espera no dentista. pois estas profecias, desta mulher que ficou cega ao ser levada por um vendaval e só depois de cega passou a ver o futuro, falam de coisas como humanos vivendo em marte, sociedade comunista que recupera a natureza, catástrofes naturais que levam o humano para muitos outros lugares, humano que aprende a viajar no tempo, que os humanos seremos bilhões e imortais e poderemos falar com deus. no ano cinco mil este universo terá fim. mas seguiremos.
se se cumprir a profecia, penso com um misto de medo e assombro que um dia seremos imortais e poderemos falar com deus.
enquanto isso leio (e choro) uma longa, triste e linda elegia. um poema para um filho morto.

14 de abril de 2018

orides

quando na adolescência o umbigo é enorme, me lembro de achar que eu é que tinha nascido em tempos ásperos. o tempo era de pobreza e ditadura no brasil, ocupação soviética na hungria (de onde minha família tinha saído), a guerra fria como uma lâmina sobre o pescoço do mundo. o mundo injusto. o mundo em guerra. e nas histórias que ouvia, me surpreendia que houvesse amor na guerra. que pudesse haver quem se apaixonasse quando tudo bombas e escombros, que tivesse filhos na fome, que cantasse na dor, que escrevesse poesia nos horríveis tempos da guerra. depois, bem depois me dei conta que o mundo está todo o tempo em guerra. em guerras. no meio das guerras nascemos e morremos e, de uma ponta a outra, a vida.
cresci e os pés no chão me lembram o tamanho que sou. o tamanho de todo ser vivente, existente. a guerra, as guerras, e a gente canta. a gente ama, tem filhos ou não tem, cuida de uma planta, um bicho. cada um percorre os dias, o ar entra e o ar sai dos pulmões. no meio disso que vemos guerra, é possível abrir espaços para o que não é guerra. sementes de espaço-tempo de não guerra.
pensando nisso é que consegui me organizar para ler poesia nestes tempos. ler orides.
porque alguém um dia entrou estrangeiro numa livraria em são paulo, pegou um livro quase ao acaso e o abriu. e o leu. e alguma coisa ecoou. o poema de orides escrito muitos anos antes sobreviveu como uma semente de possibilidades.
e pelos caminhos que a vida nos leva, estou aqui, vivendo o momento em que a obra de orides é traduzida para o catalão por aquele um alguém que a encontrou ao acaso.
mesmo que os tempos sejam de guerra, respiro e cuido sementes.
 

“Semeio sóis
e sons
na terra viva

afundo os
pés
no chão: semeio e
passo.
Não me importa a colheita.”
(Orides Fontela)

5 de abril de 2018

falta de censo


tantas pessoas morrem e a gente não sabe quantas nascem fazem parte da nossa vida e a gente nem: uma luz se acende no andar de cima se apaga quarto ao lado ninguém vê os dias que passam manhã tarde noite um café um passeio na praia a gente não sabe a cara do vizinho quem vive perto quem vem de longe as luzes que se apagam que se acendem no inverno mais cedo no verão este calor e há quem sinta frio e há também quem diga eu sinto eu desisto. quantas pessoas. quem sabe.

18 de março de 2018

cegos desciam as escadarias


muitos cegos desciam as escadarias do metrô em fila indiana. o primeiro deles conduzido por um cão. ultrapassei-os na minha pressa. depois, sentada à espera do trem, eles me rodearam e se sentaram também. fechei os olhos para saber o que sente um cego entre outros cegos à espera na multidão. quando veio o trem nos levantamos todos e seguimos. para que eu não me perdesse, um deles me deu a mão. agora que subimos escadas, sei o cheiro do dia claro, alguém com pressa nos ultrapassa, vou de mão dada, seguimos aquele que leva o cão. cegos entre cegos, nos guia este arfar.