e aqui estamos.
***
amanhã é meu aniversário. completo os cinquenta e quatro. que é múltiplo de nove e como gosto dos aniversários e dos múltiplos de nove, vou celebrar. ainda estamos na mesma pandemia. como tenho pés em muitos lugares, os muitos lugares onde tenho pés me deixam alternadamente aflita com o que esta pandemia quer dizer. talvez eu devesse dizer que tenho os pés no mundo e estou aflita há tanto, na verdade bem antes da pandemia, com o que o nosso estar no mundo está querendo dizer. ontem li uma história tão áspera, de uma crueldade tão, tão absurda, que não consegui ir além. eu sabia que era uma história, que não era um relato necessariamente real, mas a maldade tem andado tão à tona, que não duvidei da história. e chorei. chorei. estes choros que a gente não tem como parar. não chorei na história. não era uma história de chorar. chorei depois, como quando já passou o susto, o acidente, o enterro, sabe? e a gente chora.
***
daí uma amiga me diz que ficou emocionada com a história de um papagaio que fugiu de casa há uma semana e hoje foi encontrado e devolvido. para descrever o papagaio a família disse que ele gostava de cantar “alabaré” (que é o “eu louvarei”) e la cucaracha (que é uma música sem tradução para o português). minha amiga chorou quando soube da história com final feliz. e no áudio do whatsapp ela cantou o alabaré. e quase foi minha vez de chorar de novo. porque estamos assim todos tão despedaçados, fragmentados, os nervos à flor da pele.
***
não há tragédia que me fará deixar de celebrar a vida, as vidas. não digo festa. festa nenhuma, nem reunião de amigos, nem nada especial, mas dentro de mim estarei feliz. viver cinquenta e quatro anos, estar inteira, amar e ser amada é como uma miniestufa nos dias de inverno. as plantas protegidas do frio, do vento forte, as plantas criando entre elas um espaço amável, vivível. como não celebrar isso? e se não celebramos o pouco, o miúdo, toda possibilidade de futuro desaparece. quando penso que não há mais saída por não haver nada que me aconchegue, que me aqueça agora, não há por que seguir. talvez isso chegue um dia. ainda não. ainda penso em ondas que vão e vem, em pêndulos, em lobos que alimentamos ou deixamos de alimentar, em processos de construção em massa, de estabelecer espaços de alegria que possam se expandir.
***
a primeira vez que alguém fez meu mapa astral, confesso que fiquei um pouco decepcionada. dizia que a minha vida seria marcada pelo amor. e o amor naqueles dias me parecia uma coisa piegas e eu não queria ser piegas, queria ser alguém poderoso para transformar o mundo. ser uma grande jornalista me parecia mais coerente com o meu desejo de transformação (a ingenuidade tem destas coisas). e o amor... o que é que se faz com o amor? era o que eu me perguntava, frustrada e com vontade de descrer daquele mapa. a vida passando, outras leituras do mapa e sempre aquilo se mantendo: o amor.
***
neste balanço dos últimos tempos o amor deixou se ser um incômodo. e a transformação do mundo deixou de ser um tema. não estou no mundo para transformá-lo, mas porque estou no mundo, o mundo se transforma. e vai se transformar de acordo com os movimentos que eu fizer enquanto o percorro. não deixa de ser uma responsabilidade, mas não é uma carga, e não há nada que possa ser apressado. é viver cada dia, cuidar do em volta, cuidar dos seres que estão próximos de alguma maneira. e o que é esse cuidado se não o tal amor que antes me parecia piegas?
***
então, sou esta, a que aprende a amar aos poucos, ao longo da vida, percorrendo o mundo a pé, sem pressa. e descobrindo os mil desdobramentos que pode haver neste amor, que é este cuidar. sei não dou conta de tudo. sei que não sei bem onde ponho os pés e os olhos. sei que viver estes tempos é incômodo, nos traz muitas perguntas novas, pouquíssimas respostas, sei que às vezes me paraliso, me desmobilizo, finco os pés como se fosse árvore, mas nem por isso crio raízes nem floresço.
***
mas sou. neste tempo e neste espaço. e me lembrar disso é que é fazer aniversário. eu faço. um a cada ano. e que haja festa.