por muitos anos vivi impregnada de urgências. existir era apressado: eu precisava chegar. estava no mundo para transformá-lo. demorei para entender que a beleza está no caminho, no percurso. nem foi a gravidez ou o nascimento dos filhos. foi alguma outra coisa que gerou uma espécie de estancamento, que aos poucos se transformou num fluir silencioso e indeciso, muitas vezes áspero quando lutava contra, insistindo em pressa e porquês. até hoje me pego alguns dias querendo acelerar o passo para ver o que há mais adiante. nestes tempos de pandemia, no confinamento e neste semiconfinamento, mais ainda, como se fosse possível ultrapassar este momento para descobrir o que há em seguida. como se o em seguida não dependesse em nada de como atravesso este momento, de como não vou a pé, de como não invento planos de viagens, de como quase não penso, quase não crio. e evito qualquer análise por achar que quem está no meio da tempestade não está em condições de fazer qualquer análise. teremos tempo para análises.
e, por contraditório que seja diante do número de mortes, não é um tempo de urgências. se eu for com pressa, desentenderei.
daqui a uns dias é meu aniversário. e, menos do que projetar futuros, gosto de pensar o que já passou. pequenos balanços, os medos que já se perderam, as alegrias que permanecem e este sentimento de estar quase pronta para começar.
porque tudo parece estar só começando.
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há uns dias parei para pensar de quando comecei a seguir blogues e qual foi aquele que me fez pensar na possibilidade de também publicar um. era 2007. cheguei no come-se, o blogue de uma mulher que escrevia sobre o dia a dia dela, entre quintal, rua, preparo de comidas de cada dia, histórias do cotidiano. um texto simples, direto. enquanto acompanhava o que ela postava, cheguei a me perguntar se algum dia teria um blogue ou não. e montei uma estrutura de um (eventual) futuro blogue. o mais difícil foi o nome. tinha que ser alguma coisa que eu gostasse de fazer mas que desse uma ideia difusa dos meus dias. foi assim que cheguei no andar, e no ando a pé. durante muito tempo ficou lá esquecido, guardado quase, como uma possibilidade, até que as mudanças na vida e insistência da neide (do come-se, que no frigir dos ovos se tornou uma amiga muito querida) me fizeram abrir o blogue, que ficou sendo um caderno de rascunho das coisas pequenininhas que eu escrevia.
o objetivo não era para contar nada, era para experimentar o tornar público, era para reduzir minhas urgências, minha pressa de chegar.
na época cheguei mesmo a pensar que os blogues viriam a substituir os livros. que encontrando os textos na internet não haveria mais por que imprimir tantos e tantos livros. errei rude, né? hoje tenho claro que muitas coisas não precisam ser impressas nem cabem em livros, mas outras coisas só são quando são livros. livros não são papeis impressos. blogues não são livros sem imprimir.
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tem gente que chega no blogue achando que vai encontrar dicas para longas caminhadas, ou sugestões de percursos. fico um pouco envergonhada quando explico que não é nada disso. que nem falo de andar, nem falo de pés, nem de percursos. que é poesia com cara de prosa. que é só um exercício cotidiano de existir.
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no mundo, grande parte das pessoas se desloca a pé. e sempre conheci muita gente que andava a pé. desde vagamundos e pagadores de promessa até gente que vai a pé porque não tem carro. é bem diferente andar pelo mundo a pé (e alguns trechos de ônibus, metrô, trem) do que andar com carro. em geral são os pobres os que vão a pé e vêm detalhes mínimos do mundo. já os ricos têm pressa e nenhuma paciência com os coletivos. mas, como o modo de vida dos pobres não tem muita visibilidade, uma parte da humanidade fica sem saber a beleza do que acontece no mundo e que só se pode ver quando se vai mais devagar e se olha tudo mais de perto.
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em 2013 me surpreendeu saber que um jornalista faria um longo trajeto a pé, entre a áfrica e a terra do fogo, procurando refazer o caminho que os humanos fizeram no planeta. paul salopek, com apoio da national geographic, acreditou que em sete anos teria terminado seu trajeto. estamos em 2021 e ele ainda não chegou nem na china. precisa atravessar ali no alasca, descer a américa todinha.
acompanhá-lo, ler seus textos, ver o mundo por seus olhos é uma experiência e tanto, pra mim é o melhor jornalismo destes tempos. como vivem os humanos em seu cotidiano miúdo.
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em 2018 uma parte dos textos do blogue virou um livro bilingue – o a pé/a peu, com textos em português e suas traduções para o catalão, feitas pelo joan navarro. o livro foi editado pela pruna llibres (leia-se josep martinez). num primeiro momento quis usar o nome do blogue para dar título ao livro. mas adília lopes tinha publicado um pequeno livro chamado andar a pé, que é quase a mesma coisa, embora o que eu escrevo e o que eu busco não tenham nada que ver com o que a adília escreve (e busca). além disso, em catalão a tradução seria vaig a peu, ou vou a pé. que é a mesma coisa mas perde a noção de um andar que se suspende no espaço, não sendo necessariamente um ir. andar é em si, nem sempre para um onde. eo nome do livro ficou sendo a pé, assim no seco. acho que foi melhor assim porque se tivesse o mesmo nome que o blogue, poder-se-ia pensar que todo o conteúdo está ali. e não está. não cabe. não cabe em vários sentidos. o livro tem um fio condutor próprio ainda que se preencha de textos que já existiam.
o tempo passou, o livro foi bem recebido por aqui, levei uns tantos pro brasil e ele vai existindo, por caminhos que já nem sei. de vez em quando aparece alguém comentando que leu, que gostou. os que não gostam não costumam se dar ao trabalho de entrar em contato. é uma pena.
enquanto o livro ganhava o mundo, o blogue ficou bem largado, quase às moscas.
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quando cheguei a pensar em fechar, em mudar o nome, em qualquer coisa, eis que ressuscitou. por um motivo tão triste e que ainda não sabemos exatamente que dimensão tem: a pandemia. o confinamento: não sair de casa. não andar a pé. e sem muito chão para pisar, achei que escrever regularmente me ajudaria a organizar a abstração dos dias. não seriam mais rascunhos de textos a serem publicados um dia mas um derramar da aflição fragmentada e desamparada que atravessamos com a covid19. e ainda segue. não estamos confinados mas os passos ainda estão limitados. ou autolimitados. e vai ser assim até que alguma vacina nos tire desta apneia espacial em que nos metemos.
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enquanto não ando a pé, mas escrevo, recebo de um amigo um vídeo sobre o andar a pé. e o amigo diz: como não lembrar de você? achei tão bonito. trago o linque pra cá. pra me lembrar sempre do que quer dizer andar a pé. o vídeo se chama o poder esquecido de andar a pé.
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e poucos dias depois a zazie – edições, coordenada pela laura erber – divulga um dos textos de sua pequena biblioteca de ensaios chamado à escuta dos pés, da beatriz galhardo. recomendo a leitura. No texto, encontra-se coisas como:
O pé é constituído por vinte e
seis ossos de tamanhos e estruturas muito
diferentes, trinta e uma articulações e vinte músculos; essa estrutura lhe
confere ampla capacidade de movimento e ao mesmo tempo resistência.
No entanto, Blandine Calais-Germain comenta que o pé se encontra,
em geral, deformado, já que é assujeitado às forças mecânicas do peso
do corpo e do calçado. Cf. Blandine Calais-Germain. Anatomia para o
movimento, vol. 1. São Paulo: Manole, 2006, p. 257.
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tudo isso em poucos dias.
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e agora quando digo andar a pé penso no mundo de coisas que já vivi de 2009 para cá. como se fosse alguém que eu conheço há muito tempo e que já encontrei em muitas situações.
porque cada palavra contém um mundo como cada pessoa que conhecemos há tempos contém em si todos os outros que foi antes, e de alguma maneira todos os que virá a ser um dia.
um outro exemplo é a palavra sépia. pra mim, por muito tempo foi sinônimo de cor de foto envelhecida. era possível fazer o efeito sépia na hora mesmo de ampliar as fotos pb em papel. falar sépia era lembrar das tardes nos laboratórios de fotografia, o cheiro dos químicos, a luz vermelha e o papel dentro do líquido onde devagar a imagem ia aparecendo.
o título ossos de sépia, do montale, parecia uma brincadeira de palavras com o envelhecer e uma imagem do envelhecimento lento.
quando viemos morar deste lado do atlântico, descobri as sépias, parecidas com as lulas. primeiro nos cardápios. há almondegas de carne com sépia no molho, por exemplo. depois, pude vê-las no meio do gelo na banca do mercado. por fim, num aquário, a beleza do seu movimento. a tinta da sépia. seus ossos, estrutura transparente, um quase plástico, uma quase gelatina, uma delicadeza que não se rompe facilmente.
ossos de sépia: nada do tempo se depositando nos ossos.
as palavras são assim.
às vezes fico besta de pensar que a organização de cerca de 26 caracteres possa representar o mundo todo, tudo o que nele conhecemos (ou quase tudo).
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dia desses meu filho me mostrou a palavra vitupério. e assim eu sei que também ele já viaja nos dicionários.
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