9 de março de 2021

as raízes se abraçam


 

as copas das árvores não se tocam, não há galhos emaranhados ali no alto. veja, são as raízes que se abraçam. no escuro, e não onde tudo se escancara.

***

a cada oito de março penso muito sobre a minha condição de mulher e a condição das mulheres no mundo. sei que estou entre aquelas que somos privilegiadas, por conta da cor da pele, da condição de classe, do lugar onde vivemos. apesar do privilégio, não é um lugar bom de se ocupar no mundo. não que seja ruim ser mulher. mas é ruim o lugar para onde sempre somos empurradas, às vezes delicadamente, em geral com violência, explícita ou implícita. há um véu de medo sobre o ser mulher.

quando tinha uns dezesseis ou dezessete anos estava convencida de que não queria ser mulher. passou muito tempo até entender que o problema não era ser mulher, era justamente o espaço (ou não-espaço) em que a sociedade tenta nos meter, este constrangimento.

***

CONJURO PARA ATRAVESSAR AS AREIAS MOVEDIÇAS

(Chantal Maillard)

 

Morrer não é a questão. Mas submergir devagar

nas areias mornas de um pântano

e o barro que se esforça en seguir

a trajetoria habitual do ar ao respirar.

A questão é que algo, uma mão, um olho,

persista em se agitar na superficie

enquanto o coração desiste e se acomoda no fundo.

Morrer não é a questão.  Mas saber atravessar

a vida com a leve insistencia

dos insetos que andam sobre a lama,

saber se alimentar de carniça,

matar a sede nas aguas pútridas

e oferecer o espírito que germina no sólido.

Ninguém é inocente. Todos o somos, no entanto.

E não se concluirá a travessia enquanto

houver um, um que seja,vadeando pela areia movediça

em busca de sí mesmo.             Importa

aprender a olhar de esguelha as nuvens

e ver como se formam as tempestades e como

se abre logo o dia. Importa ver

o céu por trás das nuvens,

esse vazio em que todas as mudanças se organizam,

esse vazio semelhante ao que somos sob

os sentimentos que nos movem.

Há nos pântanos desejos que apodrecem

sem ter alcançado seu destino

que é passar, como as nuvens,

sem deixar rasto. Atravessá-los só pode

quem anda vazio, sem tempo, sem história.

 

***

 

FIM E PRINCIPIO

(Wisława Szymborska)

Depois de cada guerra

alguém tem que limpar

As coisas não se ordenam por si mesmas.

digo.

Alguém tem que jogar os escombros

na vala

para que possam passar

os carros cheios de cadáveres.

Alguém tem que se meter

entre o barro, as cinzas,

as molas dos sofás,

os estilhaços de vidro

e os trapos sangrentos.

Alguém tem que arrastar uma viga

para sustentar um muro,

alguém tem que por um vidro na janela

e a porta nos gonzos.

Nada disto é fotogênico

e requer muitos anos.

Todas as câmeras já foram

para outra guerra.

A reconstruir pontes

e estações de novo.

As mangas ficarão em trapos

de tanto serem arregaçadas.

Alguém com a escova nas mãos

lembrará ainda como foi.

Alguem escutará

concordando com a cabeça.

Mas ao seu redor

começará a aparecer

quem se aborreça.

Ainda haverá quem às vezes

encontre entre o matagal

argumentos mordidos pela ferrugem

e os leve ao monte de lixo.

Aqueles que sabiam

do que se tratava aqui

terão que deixar seu lugar

para os que sabem pouco.

E menos que pouco.

E até praticamente nada.

Na relva que cubrir

causas e consequências

certamente haverá alguém deitado,

com uma grama entre os dentes,

olhando as nuvens.

 

***

hoje faz dois anos que apresentei o casa de mim em são paulo. foi um dia de tempestade. dentro e fora. fora porque eram as águas de março fechando o verão. dentro porque sempre é intenso publicar o que se escreve, apresentar o que se considera digno de interromper o silêncio.

de lá para cá é como se houvesse passado só um ano porque, convenhamos, 2020 foi um ano suspenso. os ricos se meteram no mundo virtual e os pobres seguiram seu caminho de pobres, famintos, desamparados. os ricos mal sabem o que vivem os pobres. e os pobres imaginam a vida dos ricos, mas sabem pouco também. só os abismos por todo lado.

aos poucos alguns leitores do casa de mim se manifestaram. mais leitoras que leitores. é um livro difícil, eu sei. não que eu o quisesse difícil. pelo contrário. era para ser uma história contada em nove partes, e só com o essencial. tirar todo o supérfluo de uma narrativa. que o olhar de quem lê seja levado para aquilo que interessa. as imagens. os acontecimentos que geram uma pessoa. os acontecimentos e imagens que nos geram.

estrategicamente talvez tenha sido um erro estar no meio do caminho entre a prosa e a poesia. nem a história está contada como se contaria num romance, nem a poesia se constrói em seu ritmo de poesia. um híbrido que é estéril? há híbridos cheios de fruto. não é o caso. ainda acho que é uma maneira de narrar que pode ser desenvolvida: relances, fotos tres por quatro, impressões.  de qualquer modo, escrever para mim não é uma questão de estratégia. é uma questão de busca. de construção.

neste mesmo dia apresentei o a pé/a peu. este, sim, um livro mais digerível, muitos leitores, reações,  comentários. como o a pé já estava mais ou menos publicado no blogue e já tinha tido uma recepção boa por aqui (especialmente porque foi a partir do blogue que o joan conversou com o josep, editor, que achou uma boa ideia fazer um livro), não fiquei tão aflita de apresentá-lo.

a gente sempre espera que os livros escritos viagem pelo mundo e encontrem quem os leia. não é fácil. mais difícil ainda é saber o que pensa quem os leu. desencanar disso. considerar a escrita como um lançar pontes. deixar que o rio passe por baixo,e a vida que passa por cima é sempre uma incógnita. toda vida é uma surpresa.

***

toda vida é esta pontinha meio aveludada que pode ser um broto novo ou só um pequeno mofo que cresce lento. esperar o tempo para saber. não há como antever o futuro. mas sem espetar o galho da videira, a única certeza é que não haveria vida, sem surpresa, seria a morte sabida.

 

 

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