15 de março de 2021

planeta dorso craca

se tem imagem que me faz bem é baleia no mar amplo. este ritmo quase camara lenta, estes sons também em rotação mais baixa que a nossa fala agitada, que nosso agudo grito no mundo. as baleias cruzando o espaço como se o mar estivesse pleno de constelações e não de perigos. sua craca, seus filhotes, seu mistério: o que fazem as baleias quando estão longe dos nossos olhos? e o que fazemos nós quando estamos perto dos olhos delas? a lágrima de uma baleia é uma pequena bolha de ar que escorre, que percorre sua pele secular, seu acúmulo de mundo?

e a baleia cantando com seu filhote? é um dos momentos mais doces que já ouvi, me remete à cantiga que me lembro na voz do meu avô enquanto de verdade me sinto no colo da avó. um colo verde de bolinhas brancas, um peito macio.

***

uma vez, ou muitas vezes, me senti uma enorme baleia que inspira fundo e desce para o escuro com toda a calma que pode haver ao se prender a respiração sem saber quando se vai voltar à tona:

os meninos, quando nasceram.

ou quando lhes faltou o ar.

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escrevi muito pouco sobre o nascimento dos meninos.

e, no entanto, estes nascimentos me marcaram profundamente. como seus desdobramentos.

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“debaixo d’água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido só faltava respirar... mas tinha que respirar...”

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parir é fazer o outro vir à tona enquanto a gente submerge.

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quando há um ano começou o confinamento, o primeiro medo, maior ainda que o medo do vírus, era não termos o que comer. que faltasse o mínimo para as crianças. não só as minhas, as do mundo. não comprei papel higiênico, comprei quilos de arroz integral. inventei cardápios sem carne, otimizando ao máximo o uso de tudo. não saí mais desta lógica. talvez nunca tenha feito outra coisa: pouca proteína animal, nada de desperdício.  

mesmo assim me intriga que não tenha faltado nada nestes meses em que tantas pessoas em tantos países ficaram isolados ou confinados ou suspensos de seu cotidiano.

nada se produz com mágica.

isso quer dizer que teve muita gente que precisou se expor e seguir trabalhando presencialmente para que não nos faltasse nada. ninguém produz batata em home office.

***

sigo pensando nas crianças do mundo.

***

e uma baleia imensa desliza seu dorso sob os meus pés que flutuam.

***

a gente é uma coleção de medos e perspectivas.

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Debaixo D'agua

(Arnaldo Antunes, cantado por Maria Bethania)

Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água se formando como um feto

Sereno, confortável, amado, completo

Sem chão, sem teto, sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

Todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto

Sem lamento e sem saber o quanto

Esse momento poderia durar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente

Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia

Todo dia, todo dia

todo dia

Todo dia, todo dia



Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo

Aliviado, sem perdão e sem pecado

Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar



Debaixo d'água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia



Agora que agora é nunca

Agora posso recuar

Agora sinto minha tumba

Agora o peito a retumbar

Agora a última resposta

Agora quartos de hospitais

Agora abrem uma porta

Agora não se chora mais

Agora a chuva evapora

Agora ainda não choveu

Agora tenho mais memória

Agora tenho o que foi meu

Agora passa a paisagem

Agora não me despedi

Agora compro uma passagem

Agora ainda estou aqui

Agora sinto muita sede

Agora já é madrugada

Agora diante da parede

Agora falta uma palavra

Agora o vento no cabelo

Agora toda minha roupa

Agora volta pro novelo

Agora a língua em minha boca

Agora meu avô já vive

Agora meu filho nasceu

Agora o filho que não tive

Agora a criança sou eu

Agora sinto um gosto doce

Agora vejo a cor azul

Agora a mão de quem me trouxe

Agora é só meu corpo nu

Agora eu nasco lá de fora

Agora minha mãe é o ar

Agora eu vivo na barriga

Agora eu brigo pra voltar

Agora

Agora

Agora

2 comentários:

jean mafra em minúsculas disse...

gosto das coisas que leio aqui. leio os posts quase todos. mas esse, em particular, emocionou. o ponto é que eu já estou quase também lhe querendo enviar emails, pois vez ou outra penso em lhe dizer algo ou em lhe indicar uma música ou falar de uma amiga escritora ou contar que andei ouvindo jessé e que não sou alguém que leva a sério essa história de "música brega" e tudo mais. era isso. forte abraço. sigamos pra cima deles, pois eles já estão em cima da gente.

v. paulics disse...

embaixo ou em cima ainda não é dentro. que eles fiquem sempre fora de nós. e escreva, jean, sempre que quiser. para criar pontes é que se publica o que se pensa, né? e é bom saber que na outra ponta da palavra há alguém. abraço pra voce e pras meninas.