1 de maio de 2021

abril fechando-se em chuvas

e acabou abril. nuvens e garoa. alguns dias de chuva. a umidade tão rara nesta cidade entrando pelas frestas da vida.

as sementes brotam, os brotos se abrem em folhas, o que tem flor aproveita para florir, o colorido dos matos nos canteiros de obras abandonados, nos pés das árvores o cardo roxo e espinhento, o dente de leão amarelando, as papoulas vermelhas, as mil florezinhas que não sei o nome, brancas, alaranjadas, rosas, quase azuis.

isso foi antes de passarem os da jardinagem da prefeitura: cortaram o que puderam ao rés do chão, deixando a terra nua, feridas abertas no cimento. e cada árvore isolada no seu quadrado, sozinha. os pés pelados.  

muito perto daqui os novos projetos paisagísticos das praças combinam arbustos e flores e árvores de pequeno porte que reproduza a lógica dos bosques próprios destas terras.  e tudo viceja. há insetos e movimento mesmo quando tudo parado e sem humanos por perto. é tão bonito. há quem diga confuso. para um continente que insiste no mono, imagino que este pluralismo soe desconcertante.

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estes dias ouvindo edward hirsch falando sobre poesia norte-americana me surpreendeu sua abordagem. num resumo muito rasteiro, ele dizia que a história da poesia norte-americana precisava ser contada de outra forma. que o primeiro de tudo eram as canções e as histórias dos povos originários, depois, chegaram os puritanos ingleses com a sua poesia e agregou-se a isso o canto dos que vieram da áfrica, escravizados. ou seja, ele inverte o que em geral as pessoas fazem: começa-se a história pela poesia europeia que chega na américa e ali é influenciada pelo que os povos originários faziam, etc.

o mesmo acontece com o que se chama de poesia brasileira: a história nos fala dos gregos e romanos, das cantigas de amigo, dos trovadores, os sonetos e outras mil formas, a idade antiga, a idade média e o tempo dos descobrimentos quando, ao chegarem no brasil, a tal poesia é influenciada pelas línguas indígenas e africanas. um ponto de vista mais honesto seria falar de todos que viviam no território hoje chamado brasil: dos yanomami aos guarani, dos tuxá e pataxó aos huni-kuin e madiha e suas canções e suas histórias e suas narrativas e compreender os processos de incorporação que ocorreram a partir da chegada, impositiva ou não, da língua portuguesa em suas vidas e das inúmeras línguas africanas, cada uma com sua cosmovisão e sua própria  poesia, musicalidade e ritmos. em vez de pensar numa poesia que chega desde fora e é influenciada, pensar na poesia desde dentro, que já havia, e como ela é transformada no processo da invasão e da violência subsequente. como a poesia brasileira é a poesia que se fez apesar da violência ou a partir da violência que nos constitui enquanto nação.

alguns olhares só me foram possíveis a partir do momento em que saí do território que considerava meu e onde transitava familiarizada com os processos. passar a viver na europa é a confirmação de uma intuição que eu já tinha tido em alguns períodos passados aqui, em viagens: no brasil tenho cara de europeia, alguns hábitos europeus, modo de pensar e língua materna europeias. mas na europa, apesar da pele branca, sou uma mistura de hábitos, modos de agir e pensar, desejos, sonhos e pesadelos que refletem tudo o de que somos constituídos nós, brasileiros, ou, num pensamento ainda mais amplo, nós, latino-americanos.

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e hoje, dia das trabalhadoras e dos trabalhadores, penso que deveria ser um marco para que nesse dia, ao menos uma vez por ano, nos obrigássemos a pensar uma sociedade que encontre novos caminhos para garantir o acesso a direitos que não seja pelo emprego. trabalho há e muito e para todo mundo e não conheço ninguém que não goste de trabalhar (no sentido de contribuir para transformação do mundo). já  emprego há cada vez menos e, na realidade, jamais foi um mecanismo de distribuição de renda ou de acesso a direitos. foi um só um faz-de-conta. renda de cidadania, estado de bem-estar, socialismo, podemos dar o nome que quisermos. o fundamental é que todos possamos existir com dignidade e ampliar a vida no planeta. (preciso pensar mais em tudo isso. deixo a anotação tosca aqui, para não perdê-la.)

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estou chata, eu sei. nada de poesia.

talvez me falte viajar de ônibus: estas viagens em que não adianta ter pressa, que não depende de nós chegar em qualquer lugar, e que são como se o tempo e o espaço se fundissem num movimento rítmico, quase um mantra existencial. dia desses tenho me lembrado de longas viagens de ônibus em que tudo se suspendia. era bom.

 

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