tem dias que alguma coisa pequena nos desmonta e em seguida um outro acontecimento também mínimo volta a nos organizar por dentro.
dia destes o (meu?) cão que me acompanhava na praça foi na direção de um homem que brincava com uma bola e o (seu?) cão que o acompanhava. o meu cão gosta de latir quando quer brincar. além disso pulava acompanhando a bola que o homem erguia e abaixava. de longe, vi que o homem se irritava e chamei meu cão. que nem tchum pro meu chamado. fui me aproximando e vi que o homem estava realmente alterado pelo fato do meu cão não parar de pular diante da bola que ele continuava levantando e abaixando enquanto gritava com meu cão e comigo para que eu tirasse aquele cão dali, ameaçava dizendo que o seu cão morderia o meu, enquanto lançava a ponta do pé na direção do meu cão. entre as ameaças, os latidos e saltos que foram se tornando nervoso do meu cão, pedi que ele parasse os movimentos e os gritos para que eu pudesse acalmar o meu cão, mas ele só xingava e além de ameaçar o cão com um chute, veio na minha direção, e me empurrou. aquilo me tirou do sério. e me tirou do eixo. gritei com ele que não me tocasse. que se voltasse a me tocar eu chamaria a polícia. e logo pensei mesmo em chamar a polícia mas só me vinha à cabeça o 190, mesmo sabendo que aqui o número é outro. enquanto isso, outras mulheres que passeavam com seus cães se aproximaram porque viram o movimento agressivo e ouviram seus gritos. quando consegui atar o meu cão á guia, fui me afastando, mas a confusão estava feita e o homem agora gritava com outras das mulheres do grupo, dizendo que soltaria seu cão para que mordesse nossos cães. que chamassem a polícia, mas que soubessem que ele também era daqui, do país, e do bairro, e que não estava nem aí pra nada e outras coisas ele dizia que eu não tenho vontade de repetir, que eu nem saberia ao certo repetir, mas aos poucos, enquanto nos ameaçava a todas e a nossos cães, foi indo na direção da saída da praça e por último disse que a culpa era do ramadan, porque ele não podia fumar e ficava nervoso e eu, em vez de ficar quieta e calada, precisei dizer que deus talvez preferisse que ele fumasse no ramadan em vez de sair agredindo as pessoas daquela forma e antes mesmo de terminar de dizer, já sabia que eu não sabia nada de ramadan e o melhor era ter ficado quieta, mas quando a gente fica nervosa e sai do eixo faz muita bobagem, e era uma tensão muito grande, uma violência, uma agressividade que eu nunca tinha vivido aqui neste país, embora por muitos anos ela tenha feito parte do meu cotidiano e talvez por isso, por ter feito tudo o que ia contra aquilo que acredito e aquilo que o bom senso diz que se deve fazer nestas horas, quando o homem e seu cão foi embora e ficamos umas poucas mulheres e nossos cães, quando pude dizer que então eu voltaria para casa, minhas pernas perderam a força e todas as lágrimas vieram como um rio que a gente não tem como controlar. tudo misturado: tristeza, raiva, vergonha, medo. enquanto eu parava de chorar e o coração voltava ao seu ritmo mais equilibrado pensava que este homem, que pela idade poderia ser meu filho, talvez só visse naquela praça um bando de mulher branca com seus cães e naquele bando ele pensasse no mundo que o olha torto ou, nem sei se melhor ou pior, um mundo que não o vê, talvez ele só quisesse ser visto. talvez ele só quisesse estar no lugar que nós, mulheres brancas com seus cães, estamos. nada disso justifica a violência, mas explica. penso muito no quanto os processos de exclusão são históricos e marcam as nossas vidas. uma vez entre mulheres brancas me perguntaram uma palavra em francês e eu disse que não sabia porque não era francesa, era brasileira, e uma mulher disse que se ela fosse sudaca (pejorativo para sul americanos) preferiria passar por francesa. foi nada considerando o peso do racismo no mundo. e já foi tão pesado. no fim do dia do cão e o homem violento eu estava cansada pela tensão, pela tristeza, pela constatação de como somos este mundo como somos. por muitos dias fiquei fora do meu eixo. ainda estou. se pudesse, buscaria o homem e explicaria tudo isso pra ele. não voltou à praça. nem eu tenho feito de ficar por ali.
***
conheci a angélica freitas.
na verdade, eu a conheci ao ler um de seus poemas em 2007. este:
Praia simples
Oito mil
quilômetros de areia pras garotas brasileiras, eu dizia
e você sorria como sua avó nas fotos, naquele maiô preto
nas praias de Santos
sua avó devia arrasar naquele tempo, eu dizia
e você sorria, pára com isso
uma dinastia de mulheres moldadas nos melhores biquínis
uma dinastia de mulheres dispensando automóveis
pra caminhar nas praias sem havaianas
estou com você, mas minha avó era tímida
também era muito branca
caminho na praia disfarçando o sem-jeito
que não deu pra encobrir com modelitos.
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depois, li muitas outras coisas que ela escreveu. e entrevistas. o que eu fiz ontem foi conversar com ela. e olhar o mundo enquanto andávamos a pé por esta cidade que por estes dias voltou a se encher de mesas nas calçadas e de risos.
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acompanhar a primavera olhando as plantas dá uma noção clara da urgência da vida. depois do silêncio do inverno, o que é verde se mexe, cresce de maneira quase visível. da manhã pra tarde todo broto se transforma. é bonito acompanhar. e a explosão de flores deixa quase tontos os insetos. acho que vou fazer um hotel pros insetos.
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