20 de setembro de 2021

a história do sofrimento do mundo

ontem, 19 de setembro, fez trinta anos que encontraram o ötzi. eu só o conheci em 2012 quando por acaso, passeando por montjuic entramos no museu de arqueologia e lá estava a exposição com uma réplica da múmia e de todas as suas coisas. me lembro de ter ficado muito impressionada, de ter anotado coisas, de ter pesquisado depois. mais que tudo, o tempo passando sobre um corpo morto no meio da neve, seus pertences espalhados em volta, e tudo ali, intacto. um corpo morto é frágil, não é um monumento construído com pedras. e no entanto. cinco mil anos no meio da neve, caído, depois de levar uma flechada não se sabe de quem. meu texto sobre o ötzi virou uma postagem no blogue.

quando o a pé/a peu começou a ser pensado, o texto do ötzi entrava e saía da lista de textos a serem incluídos. até vencer a inclusão. e sempre que vamos fazer uma leitura juntos, joan me diz: e o ötzi, você não vai ler? e eu leio. leio os dois textos que o joan mais gosta (ötzi e ajka) e vou variando os outros. sei que o público não se repete, mas imagino a minha voz viajando pelo universo e talvez eu gostasse que outros poemas também ganhassem a imensidão na minha ou em outra voz, mas numa voz. por isso vario ao máximo o que leio.

a versão final que entrou no livro ficou um pouco diferente do que estava no blogue. e eu gosto mais.

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ontem também foi aniversário da neide rigo. fez sessenta. um número que assusta quando trinta, quarenta ou cinquenta já perderam seu poder de assustar. mas quem diz que a neide se assusta com alguma coisa? a neide é quem mais insistiu com a ideia de dar vida ao ando a pé. como agradecer, né? difícil. agradecer é tão difícil quanto dizer o amor. porque não é dizendo que se diz, mas sem dizer o outro pode não saber. mas por que é que o outro precisa saber o quanto a gente agradece ou o quanto a gente ama? deveria bastar estar agradecido, e amar. mesmo sem dizer nada.

e basta?

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voltando de leucate onde fomos para escapar do final de semana com fogos em barcelona e aproveitando para comer ostras, passamos por portbou, onde está o memorial para walter benjamin. por coincidência, um dia antes eu tinha comprado figos e no final de setembro é aniversário de morte do benjamin.

uma vez li acho que nalguma postagem do carlito o texto do benjamin sobre sofreguidão ou intensidade ou alguma humana maneira de vivermos. o que mais me marcou do texto era sua paixão por figos e como o acaso decidiu se ele deveria ou não mandar uma carta.

comentei este texto com os meninos quando eram pequenos, a história de estar com a carta no bolso, a indecisão, depois o encontrar os figos, a descrição dos figos com todas as cores, comprar os figos e descobrir que não havia um papel para embrulhá-los e ele teve que meter tudo nos bolsos do paletó, da calça e foi comendo e se lambuzando com os figos maduros. quando comeu o último figo viu que a carta no bolso estava toda destroçada. algum tempo depois, conversando com meu filho mais novo, ele fez algum comentário sobre filosofia como se soubesse o que era. ele disse: pessoas que pensam sobre a vida. perguntei: você conhece algum filósofo? e ele disse que sim, o dos figos! e depois: ele não tinha mãe?

meu filho, agora crescido, disse que não gostava de pensar nas grandes questões da vida. que o deixavam sem chão. e achava que as mães podiam resolver tudo. ele agora gosta de pensar. mas algumas coisas ainda lhe dão vertigem: o pequeno que somos diante da imensidão do universo.

conversando sobre isso, paramos em portbou. seguindo pelo google maps, não foi fácil encontrar o monumento. talvez eu esperasse um lugar com mais infraestrutura, não sei, que desse para ver de longe. mas é tão escondido quanto deve ter sido a passagem de benjamin por ali. 

o monumento é àspero e bonito ao mesmo tempo. uma escada de ferro, num corredor de ferro, descendo íngreme para o precipício, um vidro que impede cair no mar. descemos os degraus, lemos a citação, olhamos o mar azul do mediterrâneo neste divisa entre frança e espanha (ai, as fronteiras...). fiz uma oração do meu jeito. por mim e pelo joan, em nome de quem eu também estava ali. pensei também nos meus avós. para quem a guerra durou até o fim da vida. pensei em mim e nas tantas guerras que testemunhamos e calamos.

pensei nos figos. nos meus filhos. e na imensidão das vertigens.

 

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