16 de setembro de 2021

nas histórias de que é feito o cotidiano

em março um amigo poeta me convidou para participar de um recital que seria em julho. o convite, em si, me deixou bem feliz. não é fácil construir uma nova identidade depois dos cinquenta e menos fácil ainda se a gente faz isso num outro país, não naquele em que passou boa parte da vida. é como se depois de muitos anos alguma coisa esteja soltando raiz. como quando se quer fazer uma muda de manjericão, por exemplo, tira um galhinho, põe na água e espera. às vezes espera à toa, o galhinho só vai apodrecendo com o passar do tempo. outras vezes, não. outras vezes um dia a gente vê uma ponta intumescida, no dia seguinte a ponta cresceu um milímetro e, eis! me senti assim com o convite.

conheci o ricard, este amigo que me fez o convite, primeiro pela sua poesia. temos um amigo poeta em comum que dizia que nossos escritos tinham um diálogo de ritmos e temas. nos víamos em lançamentos de livros e nos seguíamos nas redes sociais. estas aproximações lentas. quando ele me fez o convite, vieram muitas surpresas mais.

a primeira era que uma cidade de uns dois mil habitantes, organizasse a cada ano uma noite de poesia, oferecendo uma ajuda de custo para os poetas participantes. conheço estruturas administrativas e sei quanta coisa é responsabilidade de um município. e municípios pequenos têm todas as responsabilidades e menor arrecadação. organizar uma noite de poesia me diz muitas coisas deste município e de quem está à frente da gestão.

e então chego na parte mais bonita de toda esta história.

para receber a ajuda de custo, ricard me passou um endereço de email para onde enviar um recibo com os meus dados e o valor a ser cobrado. envio o email, me dirigindo formalmente à pessoa responsável. rapidamente recebo uma resposta, não só dizendo que havia encaminhado o recibo ao departamento de contabilidade, como também desejou um bom recital: “o espazo, o son negro das ras e o mesmo zumbido dos mosquitos fano especial! (en galego que es portugués aínda non sei)”. acrescentava que não poderia estar, mas tinha deixado reservado um exemplar do meu livro com o livreiro que estaria presente.

depois de trabalhar tantos anos em gestão pública, uma mensagem daquelas me deixou realmente desconcertada e feliz. que a estrutura administrativa não tenha sufocado a delicadeza das trocas humanas, ainda que virtuais e com desconhecidos. escrevi agradecendo. e ela me respondeu de novo dizendo que gostaria que eu pusesse uma dedicatória no livro, mesmo ela não podendo estar presente (“palabras e máis palabras recollidas nun libro-prisión, que maior pracer darlles liberdade coa voz, aínda que non poda vir a recollelas mañan”). e, de quebra, me explicava que não é galega, é catalana, mas seu companheiro, sim, é galego.

a noite não podia ter sido mais bonita. na véspera, joan já tinha chegado de valência e estávamos colocando em dia os mil temas que ficaram suspensos pela pandemia – há muitos muitíssimos temas que não encontram lugar nas conversas por telefone ou nas vídeo-chamadas, todo mundo sabe disso. no dia do recital tudo foi muito rápido, organizamos os textos que leríamos, almoçamos, nos arrumamos e de tarde pegamos a estrada, até a casa do ricard, o organizador do evento. conversar em volta de uma mesa, a família nos recebendo, a gente dando risada, celebrando, as trocas de que somos feitos (e foi uma pausa). de lá fomos até o povoado, ao lado do tanque comunitário, espaço onde antigamente as pessoas se reuniam para lavar a roupa e aproveitavam para conversar e falar da vida. os recitais de poesia também são um jeito de lavar roupa. ao longe se avistava montserrat, uma tarde de luz alaranjada, entre as árvores, as râs no tanque, os mosquitos, o perfume de citronela, numa tentativa sempre em vão de afastá-los, os mosquitos. chegou a terceira poeta, chegou o público, chegou a hora de ler, lemos. e quando se está ali lendo, não importa a língua, tudo parece entrar numa outra dimensão, uma dimensão que nem é mais rápida ou mais lenta, é como bolha de sabão, o universo dentro da bolha de sabão, onde tudo se cria, do big bang ao final do mundo, num instante mínimo. e acabou. o recital acabou. as pessoas se aproximaram. meu filho emocionado me deixou emocionada também, houve quem quisesse uma dedicatória. o livreiro trouxe o livro da moça da secretaria de cultura que eu não conheço e escrevi umas palavras, sempre poucas e sempre estranhas como são as palavras das dedicatórias.

na segunda-feira, lá estava o email dela, agradecendo e destacando uma das minhas frases  prediletas de todo o livro. (que eu não vou contar qual é, cada um que vasculhe o a pé/a peu e encontre o que mais gosta.)

quis dar um presente para ela também, porque ela foi a pessoa que mais esteve naquele recital, foi a pessoa do público que mais atenta estava a toda palavra. e achei que ficaria feliz se eu mandasse uma série de quatro poemas que eu e joan havíamos lido e que não está ainda em nenhum livro, os tais inéditos que trazemos à tona nestas noites especiais. e mandei para ela a sequencia de quatro poemas do joan e meus. em catalão e portugues.

e esta mulher de novo me tira do eixo: a sua leitura dos poemas é também uma leitura da nossa forma de escrever, minha e do joan, é também uma leitura daquilo que é a correspondência que estamos criando, o encontro entre duas maneiras tão distintas de escrever e que, no entanto, têm pontes e conexões. mais que tudo, ela leu e me contou que leu. talvez ela não tenha ideia da força desta declaração de haver lido o que ali estava escrito.

quem escreve sabe que é difícil escever um livro. quem escreve um livro sabe o quanto é difícil publicá-lo. quem chega a publicar um livro sabe que o mais  difícil é ter leitores. e quem tem leitores sabe o quanto é raro um leitor nos dar um presente assim. esta mulher, que vive numa cidade pequena da catalunha, que está envolvida na administração desta cidade pequena, e está atenta à poesia, foi o meu grande presente neste ano tão estranho.

mas então o verão nos inundou com todas as transformações e frutos maduros próprios do verão e os dias à toa, e os dias de calor e os dias longos e largados... e eu não consegui dizer mais nada. digo aqui, digo agora.

e digo que algumas vezes tenho revisitado esta troca de emails para ver se o mecanismo interno da escrita volta a se acender em mim e a me movimentar. estes tempos escuros e ruidosos. e eu sem saber abrir silêncios entre as palavras.

obrigada, mercè, muito obrigada.

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