entro num bar numa esquina da praça da sé. espero alguém. quatro homens atendem no balcao e uma mulher atende as mesas. não há mais ninguém. peço uma média. que já não vem num copo americano. o copo é grande, mais quente do que eu esperava. não quero ficar em pé junto ao balcão. pego a média e vou até uma das tantas mesas do mini salão deserto. é muito cedo? não sei. a praça também tem o centro vazio, o chão lavado, uns policiais fazem a ronda. nas calçadas do entorno, o povo todo que dorme na rua.
quando quase me sento, passa por mim um homem jovem, com uma mochila e na mão uma sacola plástica com roupas, atrás dele vem sem vontade uma mulher jovem, também com sacola plástica de roupas. ela visivelmente preferiria não estar seguindo o homem. não sei se onde eles saíram, se o bar estava todo deserto. enquanto passam por mim, me pergunto quem serão, as histórias que existentes, carregamos e explicamos sem dizer nada. no gesto do homem que se vira para ver se a mulher o segue, em sua mão já se revela um ato que aponta para uma violência silenciosa, a violência dos que ainda ou já não têm palavras para se expressar. reduzo o movimento do meu corpo como quem se prepara para defender a jovem mulher se fosse preciso.
nesse momento - em que vou para mesa segurando a média e passam os dois por mim e me pergunto quem serão e meu corpo se retém para o caso de uma agressão e logo se relaxa por saber que não, que ele não vai fazer nada - meu olhar cruza com o olhar da mulher muito mais jovem do que eu que trabalha no bar e, ao cruzar o olhar, sei que ela quer me dizer alguma coisa.
sei que se eu ficar quieta, ela não vai me dizer nada. vai seguir calada e tudo o que ela pensa ou sabe ou imagina vai se perder no movimento do dia que está só começando e nunca mais vai se repetir.
mas eu, que nasci para perguntar, pergunto. procuro dentro de mim a pregunta que a levará a me contar muito muito mais coisas do que estas que agora mesmo testemunhamos e das quais de certa forma fomos cúmplices. pergunto, então, sem perguntar. faço a ela uma afirmação. na afirmação está explícito que eu a considero uma igual, considero todo o seu potencial de observadora e guardiã da memória dos que entram nos bares do velho e pobre centro da cidade às sete da manhã.
e então ela me conta. e ao me contar o que viu e o que pensa de tudo o que viu, ela me diz quem é, de onde vem, o que busca, o que sonha, o que já fez na curta vida e tudo o mais que acredita que não chegará a fazer. ela fala. com a boca, os olhos, as mãos. e ela sabe que eu a escuto.
diante dos meus olhos e da minha atenção ela cresce como as árvores quando chega a primavera.
o patrão a interrompe: entrou um novo cliente.
e a magia toda se desfaz.
é a pessoa que eu esperava.
pago a média, sorrimos uma para outra.
ela fica. eu saio.
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