18 de outubro de 2024

histórias de um nome



dia desses, nalguma das redes digitais, alguém comentava sobre nomes e sobrenomes e mudanças quando se muda de país. pensei em escrever sobre isso também, depois mudei de ideia - a quem interessa, se não a mim mesma? então, escrevo, registro para organizar o pensamentto para mim mesma.

a questão sempre é onde começar a narrativa. mesmo que seja de uma coisa besta e supérflua como essa: o nome oficial.

posso começar com a minha mãe se casando com meu pai. ela, vindo de uma família aristocrática húngara decadente, e ele, vindo de uma família de camponeses húngaros, se encontraram no brasil, se gostaram, resolveram se casar. com todo o conflito da diferença da origem de classe. minha mãe tinha seis nomes e um sobrenome von alguma coisa, numa pseudo-nobreza. meu pai tinha um nome e um sobrenome que quer dizer filho de alguém. na hora dos papeis, minha mãe pediu para tirarem os nomes que sobravam e também o sobrenome que tinha herdado do pai. (nesse momento me lembro que o sobrenome que ela teria recebido por parte da mãe também não era simples porque minha avó tinha trocado de sobrenome quando foi adotada oficialmente por sua tia e madrinha.) minha mãe, depois de casada, ficou com um nome e um sobrenome (o do marido).

quando nasceu minha irmã, que era a primeira filha dos meus pais, minha mãe quis colocar um nome simples, curto e bonito que ela tinha visto num dos romances do josé de alencar. o padre húngaro, que não conhecia muito de literatura brasileira, disse que aquele nome supostamente indígena não servia para batizar. precisavam acrescentar algum nome cristão. meus pais, então, acrescentaram os nomes de suas mães ao nome da minha irmã. daí ella ficou com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

quando eu nasci, ainda que meu nome fosse de uma santa católica, pareceu pouco pros meus pais, ou lhes pareceu injusto que minha irmã tivesse três nomes e eu ficasse só com um, ou eles tinham uma reserva de nomes que não sabiam se poderiam aproveitar depois e decidiram usar tudo de uma vez. assim eu fiquei com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

nascidos meus irmãos, o primeiro recebeu, além do seu nome, os dois nomes dos meus avôs, e o segundo ganhou uns nomes aleatórios, ou quase aleatórios, como eu.

éramos quatro filhos e tínhamos doze nomes. nada mal para quem gosta de nomear.

e nenhum dos quatro herdou sobrenome da mãe.

passam os anos, a gente aprende a ler, a escrever e a soletrar os nomes raros, aprende a soletrar com paciência o sobrenome e vai se acostumando a ser aquela multidão.

uma das vezes que fui fazer o passaporte, a moça na polícia federal brasileira me diz: não tem lugar para tres nomes. e eu: ? e ela: não tem problema, eu posso colocar aquí no campo dos sobrenomes porque tem espaço para vários… e concordei. o que é se pode fazer numa situação dessas?

o tempo passou. viemos para espanha. na hora de me registrarem como estrangeira, colocam meu primeiro e segundo nomes como nomes e eis que o meu terceiro nome transformado em sobrenome por falta de campo para incluir tres nomes no passaporte brasileiro se transforma no meu principal sobrenome. quando me chamam senhora fulana, sempre penso: que engraçado, também sou fulana, não é comum esse nome… e logo me dou conta que sou eu, a senhora fulana….

paralelamente a isso, antes mesmo de me mudar para espanha, foi reconhecida minha cidadania húngara, por ser filha de húngaros emigrados pro brasil. quando vou preencher os documentos me dizem: não cabem tres nomes no registro civil húngaro, é preciso escolher. na dúvida, ficou com o primeiro e o segundo nome. o sobrenome? não me dão alternativa, será o do meu pai, esse que já carrego a vida toda. dou entrada nos papeis e espero os documentos. que demoram.

vivendo na espanha, como iberoamericana, em dois anos podemos pedir a cidadania por residencia. entramos com o pedido. passam os meses, quando me chamam pro registro civil, olhando meu registro brasileiro, me dizem: tem que escolher dois dos tres nomes. digo: fico só com um, o meu. eles dizem: não, não pode, tem que ficar com dois dos três. como sou senhora fulana, digo: então, fico com o meu nome e o terceiro, esse que pensam que é meu sobrenome. eles dizem: ótimo. e acrescentam: e o seu sobrenome de pai e mãe é igual então seu nome será primeiro nome, segundo nome, sobrenome e sobrenome (repetido). eu digo: não, minha mãe tinha outro sobrenome. eles dizem: traga isso registrado num papel.

então, suspendo o processo e peço uma cópia da certidão de casamento dos meus pais porque ali está registrado o nome e o sobrenome de solteira de ambos. meu irmão me manda o documento, levo o documento pro registro civil e ganho um terceiro nome no mundo: meu primeiro e terceiro nomes, sobrenome do meu pai e sobrenome de solteira da minha mãe (aquele metido a nobreza, mas eu faço de conta que não vi o “von” e eles fazem de conta que não viram também. ao menos disso eu me livro…).

há quem diga que uma das grandes questões que vivemos em processos de migração voluntária ou involuntária é a crise de identidade. não temos velhos amigos, não reconhecemos os espaços, a história do lugar onde passamos a viver, não sabemos as canções de infância, não temos em comum isto que se chama trivialidade cotidiana nem as referencias culturais. além disso, quase nem nosso nome conservamos.

no registro brasileiro sou uma, no registro húngaro sou outra e no espanhol sou uma terceira. se somos nosso nome, já não sei quem sou. mas sempre multidão.

antes eu era só uma: verdadeira imagem mística presente de deus filha de paulo. 


 

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