19 de fevereiro de 2025

ah estas canções


na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora: exercícios. o principal foi concluir que eu não queria versos na minha poesia. queria a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostasse de poesia. no fim das contas, afastaram-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.
quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo recheio. a palavra como recheio é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, fazer para conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palavra.
depois de fazermos algumas canções, o compositor das músicas publicou a primeira, e a reação de quem ouviu foi que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo. fiquei impactada.
foi como me des-locar, foi o tal de perder o rebolado. e foi também como perder a palavra, perder todas as palavras que poderiam ser matéria para fazer recheio de melodia.
demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch comenta sobre a rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perde. mas também serve pra música: se a música ganha, a canção perde. o desafio numa canção, tanto quanto num poema, é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro, mas não deixar rastros da lasca de pedra nem deixar ver o cinzel.

 

10 de fevereiro de 2025

betta splendens

era um peixe pequeno e azul. veio morar comigo no dia dos meus vinte e cinco, quando uma mini multidão que eu (des) conhecia encheu o salão do prédio. o peixe, o peixinho azul minúsculo, chegou na água de um vidro gordo de maionese hellmans e ficou no chão do salão junto com as flores e presentes que eu mal lembro. na hora de levar tudo aquilo pro apartamento, pro quarto onde eu dormia e já era madrugada quase azul e toda a mini multidão tinha ido embora e a solidão daquele fim de festa tomou conta de mim, tomou conta dos meus olhos, do meu cansaço, foi então que vi no pote bojudo, no pote de hellmans com água até a borda, com uma água limpa e transparente que tinha feito o papel de lupa ampliando máximo o tamanho mínimo do peixinho azul, naquela água vi uma mancha, um algo que boiava, um trapo, um fiapo, um pedaço caído do céu da manhã. naquele dia aprendi o quanto as festas celebram o que já passou, a morte boiando nos meus olhos, o reflexo azul entre as mãos.

27 de janeiro de 2025

BWV974

a vizinha é professora de piano. ainda que não tenha sido lá uma boa vizinha, é uma boa professora. sei disso porque os alunos começam o semestre tocando muito mal. e rapidamente ficam bons, vão embora. é bom para os alunos, mas não tão bom para nós, que ouvimos como tudo recomeça: as notas inseguras e desafinadas de aprendizes. semanas difíceis para quem mora ao lado.

como sempre são os alunos que tocam, sabemos também quando eles faltam porque nestes dias nada de musiquinhas bestas em repetições exaustivas. só o silêncio. uma hora de silêncio.

uma tarde destas choveu muito, justo na hora da aula de piano da vizinha. o aluno que teria que vir não veio mas no lugar do silêncio, o piano soou. e soou de um jeito muito bonito. obviamente era a vizinha tocando. foi uma tarde bonita. pela janela víamos a chuva, a tarde lenta e cinza de inverno, enquanto a música do piano da vizinha nos fazia companhia sem atrito, sem aspereza.

no dia seguinte, escrevi para ela pelo aplicativo de mensagens. desta vez, em vez de reclamações, era um agradecimento. disse que tinha sido uma tarde bonita, disse da chuva, do cinza e da música que nos fez companhia. a vizinha, que em geral não é lá uma boa vizinha, agradeceu. se desculpou pelo barulho. eu disse que não era barulho, não era incômodo.

dali em diante a vizinha passou a sorrir para mim nas poucas vezes que nos vimos nos corredores, no elevador, na portaria do prédio.

agora ela toca mesmo quando não é hora de aula e já não espera que faltem os alunos.

nalgumas tardes, estamos só nós duas: eu e a vizinha, cada uma de um lado da parede. ela toca e eu sei que ela sabe que eu escuto. escuto atenta, acompanho os erros e a repetição, me alegro com ela quando por fim se apropria da melodia e segue segura de si. ela sabe que eu sei que ela sabe que sou seu público e que desde aquela tarde de chuva ela toca pra mim e me faz companhia nestes tempos cinzas e tristes de inverno.

 

22 de janeiro de 2025

paciência

me lembro da minha avó jogando paciência enquanto meu avô fazia yoga no chão da sala seguindo as lições de um tal hermógenes num livro que guardei mas não me lembro aonde.

me lembro, sim, da minha avó pacientemente inventando sopas saladas musses flores de pano panos de prato roupas de boneca e teorias que explicassem a formação do universo enquanto meu avô resolvia palavras cruzadas do estadão, e ainda hoje me lembro do cheiro do jornal que nos esperava de manhã na porta de casa.

como meu avô esperava as manhãs para caminhar até o fim do mundo.

como minha avó já não esperava, porque sabia o quanto há muito tudo era noite.

me lembro que até hoje sempre houve um depois.

enqiuanto isso jogo cartas no chão da sala e o mundo se aproxima perigosamente de algum fim.

17 de janeiro de 2025

baby, eu sei que é assim

quando meus filhos eram bebês, eu ficava horas parada olhando o minúsculo peito deles subindo e baixando a cada respiração. o movimento, como um pássaro que sai do ninho e procura, me dava a certeza da vida contínua que nos atravessa.

agora que os filhos respiram longe de mim e já não posso passar horas olhando para eles enquanto dormem, observo meu cachorro. a cor do pelo dele é igual a cor dos cabelos dos meus filhos e ele respira compassado ao sol de inverno. nesses momentos meu amor, feito luz, se amplia multiespécie sabendo que desentende suas alegrias e suas tristezas tanto quanto desentendia a mim mesma e os meus bebês.

 



choices
(tess gallagher)

I go to the mountain side
of the house to cut saplings,
and clear a view to snow
on the mountain. But when I look up,
saw in hand, I see a nest clutched in
the uppermost branches.
I don’t cut that one.
I don’t cut the others either.
Suddenly, in every tree,
an unseen nest
where a mountain
would be.