16 de junho de 2025

mãos, joias e poemas

contar uma história sempre nos pede uma decisão de onde recortar o tempo vivido, onde dizer aqui começa e onde o aqui termina. esta é uma história bem pequena, de um acontecimento que quase não tem importância para o momento-mundo que vivemos, e ao mesmo tempo é uma reserva de não-inferno, porque são estas reservas que nos fazem seguir respirando e buscando uma nova maneira de estarmos vivas.
há alguns meses alguém me mandou uma mensagem perguntando se poderia me apresentar uma proposta de um projeto coletivo que envolvia poesias e joias. minha primeira reação foi: será que eu conheço esta pessoa e não me lembro dela? e a segunda reação foi pensar que eu não sou alguém que se interesse muito por joias, se joias forem ouro e pedras preciosas. sou mais de tucum e outras sementes, contas de vidro e miçangas. mesmo assim, fiquei curiosa e topei receber o convite.
não, eu não conhecia a pessoa que tinha me convidado.
a proposta era simples: vinte e duas palavras disparadoras para vinte e duas joalheiras que dialogariam com vinte e duas poetas. o resultado final de cada parceria seria uma obra composta por uma joia e um poema.
não costumo escrever poesia por encomenda, acho dificílimo. mas como tem sido difícil escrever, e os diálogos sempre me levam a lugares inesperados (e eu gosto disso) topei.
minha parceria seria uma joalheira alemã. e nossa palavra disparadora seria “mãos”.
escrevi para ela propondo um café para que nos conhecessemos, imaginando que vivia na mesma cidade que eu. me respondeu em outra língua, explicando que não sabia escrever na língua que eu tinha escrito e que morava bem longe de mim. faríamos tudo por escrito.
como dependeríamos de um mecanismo de tradução, decidimos que cada uma escreveria em sua língua materna, para que o texto fosse fluido: ela em alemão e eu em portugues. (sim, eu sei, os mecanismos de tradução não são perfeitos mas seriam suficientemente bons para esta correspondência que inspiraria uma joia e um poema.)
e foram várias semanas de trocas, pensamentos, ideias em torno de mãos, de heranças, de origens, do significado da continuidade, do nos vermos refletidas nas que vieram antes de nós, nas que nos são contemporâneas, no que sentimos sobre palavras, pedras, joias.
sempre que eu enviava o meu email, sabia que em algum momento entraria um “liebe veronika” e eu conheceria um pouco mais da “querida julia”.
ela não sabia bem que joia fazer. me explicou a origem das pedras que usava, eu comentei um pouco do meu jeito de escrever. mandei para ela o meu poema “as mãos da minha mãe”, porque me parecia que tudo o que eu poderia dizer sobre mãos estava ali.
e na medida que o tempo passava, algumas palavras foram ganhando mais presença na nossa troca de correspondencia. e eu comecei a guardar estas palavras, uma lista, como quando eu escrevi as letras para as composições do remo.
ela me mandou fotos das pedras e das suas mãos trabalhando as pedras.
também eu compartilhei fotos das minhas mãos.
vi seu sorriso.
e revi tudo tudo tudo o que para mim querem dizer as minas - a nossa história de colonia e escravidão, as serras peladas, as violências, as misérias, o desmatamento e tudo tudo tudo que acompanha. a desigualdade no mundo. mas pensei também no quanto tudo isso é decisão. decisão: caminhar ou não no escuro à procura de luz.
e escrevi uma primeira versão.
e julia me mandou uma primeira ideia do que faria com as ágatas.
avancei no meu poema enquanto ela avançava na joia que seria composta por duas partes, que poderiam ser levadas pela mesma pessoa, como quem cruza as mãos sobre o peito, ou levadas por duas pessoas diferentes, que se dão as mãos, que se conectam e conectam seus destinos.
ela me mandou fotos da joia pronta e eu mandei o poema traduzido para o ingles (porque os tradutores automáticos não sabem traduzir poesia) e mandamos as duas partes da obra - joia e poema - para a galeria onde seria a exposição.
no final de maio, na abertura do 22 Mudanzas na Galeria Amaranto, fui lá ver joia e poema expostos juntos, formando um todo no meio de outras obras.
sempre me emocionam as ações conjuntas, alguma espécie de coletivo. escrever pode parecer muito solitário, mas nunca é. a origem é uma multidão e o destino também. mesmo quando a gente acha que está escrevendo pra gaveta.
uns dias depois da abertura da exposição, houve um recital, com a presença de várias das joalheiras e várias das poetas. e foi muito bonito. uma casa com quintal e árvores que me lembrava a casa onde morei quando as crianças eram pequenas, gente amorosa, bem humorada, querendo ver e saber e escutar. eu sabia que julia não viria. mas foi como se estivesse. botei no meu peito uma parte da joia e marta, uma amiga que se dispos a ler o poema em castelhano, botou a outra metade em seu peito. um broche de ágata conectando linhas e luzes, cruzando caminhos. e um poema que fala disso, de mãos.
não sei bem onde esta história começou nem onde vai terminar, mas o que eu tinha para contar agora era isso, esse momento diáfano no meio do caos. e as nossas mãos.
 

agradeço à marina gurman e à grego garcia pelo convite.
e à julia obermaier pela parceria.

se quiser conhecer as obras que compõem o 22 Mudanzas, visite:

https://amarantojoies.blogspot.com/2025/05/22-mudanzas.html


 


3 de junho de 2025

abre os olhos

quando envelheceu, minha mãe, deixou de ir à praia caminhar, mas a cada dois ou três dias, ia ao encontro dos pescadores quando voltavam com seus barcos e redes, carregados de peixes.
ela nao gostava muito do cheiro do peixe fresco, nem se deixava impressionar pelos reflexos prateados à luz da manhã. o que ela gostava, mesmo, era das conversas: saber notícias da pescaria, da vila, dos filhos e netos dos pescadores que ela, à sua maneira, tinha ajudado a crescer.
na última vez que estive com ela, me acordou muito cedo dizendo estou indo. eu, morrendo de sono, tive vontade de dizer que não, que não ia ou talvez no dia seguinte. mas nao disse nada, me levantei, lavei a cara, me vesti.
vimos os barcos chegarem, vimos trazerem os peixes e os camarões, e minha mãe, enquanto escolhia, foi puxando conversa com um, com outro, até que o pescador com quem ela conversava de repente interrompeu o que dizia e apontou para o limite difuso entre os azuis do céu e do mar.
baixou um silêncio sobre todos nós, um silêncio mínimo, denso, e na linha do horizonte vimos o jorro de dezenas, dezenas de baleias que seguiam a caminho de abrolhos.

7 de maio de 2025

o tortuoso caminho da floração

misturo tudo e amasso. amasso e espero.

ontem reavivei o fermento. na noite, cresceu esponjoso, amplo, fresco, como cresce meu pensamento em pontes e oquidões construídas com a matéria áspera do mundo, buscando o tortuoso caminho de ser alimento.

meu pensamento fermenta as palavras que comi ontem hoje amanhã, e entre elas formam-se bolhas, espaços aéreos inflados, umas sobre as outras, construindo uma estrutura que se mostra frágil e firme -- matéria e vãos -- alegria e suavidade, ou não.

numa das páginas do livro de receitas encontro anotações da minha filha, de quando ela ainda não sabia escrever, de quando eu nem sabia que seria minha filha. as letras inventadas me lembram minúsculos animais e plantas nascidos da chuva alegre de farinha espalhada pelo chão e nossas mãos polvilhadas e olhos repletos de um mistério azul, que ainda estava por vir. o que ela ali escreveu enquanto eu preparava outras massas não fazia sentido algum até que agora, anos depois, com a minha infinita lentidão sou capaz de olhar e ler, agora olho e sei, sei e intuo tudo aquilo que, naquele momento já estava dito, mas nem ela sabia nem eu teria sabido como dizer.

 

22 de fevereiro de 2025

listas

 

gosto de listas. das tantas listas que gosto, esta, do asas do desejo é, para mim, uma das mais lindas:

"do asas do desejo:
ao subir a montanha, o vale brumoso recebeu o sol,
o fogo no pasto,
as batatas na cinza,
o extremos oriente,
o oeste selvagem,
o lago do grande urso,
tristão da cunha,
o delta do mississipi,
stromboli,
albert camus,
a luz da manhã,
os olhos da criança,
a queda d'água,
as primeiras gotas de chuva,
o sol,
o pão e o vinho,
a esperança,
a páscoa,
os veios das folhas,
a cor das gemas,
os seixos no leito do riacho,
as toalhas de mesa no varal,
o sonho da casa na casa,
o ente querido dormindo no quarto ao lado,
o vôo noturno,
o belo forasteiro,
meu pai,
minha mãe,
minha esposa,
meu filho..."

19 de fevereiro de 2025

ah estas canções


na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora: exercícios. o principal foi concluir que eu não queria versos na minha poesia. queria a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostasse de poesia. no fim das contas, afastaram-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.
quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo recheio. a palavra como recheio é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, fazer para conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palavra.
depois de fazermos algumas canções, o compositor das músicas publicou a primeira, e a reação de quem ouviu foi que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo. fiquei impactada.
foi como me des-locar, foi o tal de perder o rebolado. e foi também como perder a palavra, perder todas as palavras que poderiam ser matéria para fazer recheio de melodia.
demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch comenta sobre a rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perde. mas também serve pra música: se a música ganha, a canção perde. o desafio numa canção, tanto quanto num poema, é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro, mas não deixar rastros da lasca de pedra nem deixar ver o cinzel.

 

10 de fevereiro de 2025

betta splendens

era um peixe pequeno e azul. veio morar comigo no dia dos meus vinte e cinco, quando uma mini multidão que eu (des) conhecia encheu o salão do prédio. o peixe, o peixinho azul minúsculo, chegou na água de um vidro gordo de maionese hellmans e ficou no chão do salão junto com as flores e presentes que eu mal lembro. na hora de levar tudo aquilo pro apartamento, pro quarto onde eu dormia e já era madrugada quase azul e toda a mini multidão tinha ido embora e a solidão daquele fim de festa tomou conta de mim, tomou conta dos meus olhos, do meu cansaço, foi então que vi no pote bojudo, no pote de hellmans com água até a borda, com uma água limpa e transparente que tinha feito o papel de lupa ampliando máximo o tamanho mínimo do peixinho azul, naquela água vi uma mancha, um algo que boiava, um trapo, um fiapo, um pedaço caído do céu da manhã. naquele dia aprendi o quanto as festas celebram o que já passou, a morte boiando nos meus olhos, o reflexo azul entre as mãos.

27 de janeiro de 2025

BWV974

a vizinha é professora de piano. ainda que não tenha sido lá uma boa vizinha, é uma boa professora. sei disso porque os alunos começam o semestre tocando muito mal. e rapidamente ficam bons, vão embora. é bom para os alunos, mas não tão bom para nós, que ouvimos como tudo recomeça: as notas inseguras e desafinadas de aprendizes. semanas difíceis para quem mora ao lado.

como sempre são os alunos que tocam, sabemos também quando eles faltam porque nestes dias nada de musiquinhas bestas em repetições exaustivas. só o silêncio. uma hora de silêncio.

uma tarde destas choveu muito, justo na hora da aula de piano da vizinha. o aluno que teria que vir não veio mas no lugar do silêncio, o piano soou. e soou de um jeito muito bonito. obviamente era a vizinha tocando. foi uma tarde bonita. pela janela víamos a chuva, a tarde lenta e cinza de inverno, enquanto a música do piano da vizinha nos fazia companhia sem atrito, sem aspereza.

no dia seguinte, escrevi para ela pelo aplicativo de mensagens. desta vez, em vez de reclamações, era um agradecimento. disse que tinha sido uma tarde bonita, disse da chuva, do cinza e da música que nos fez companhia. a vizinha, que em geral não é lá uma boa vizinha, agradeceu. se desculpou pelo barulho. eu disse que não era barulho, não era incômodo.

dali em diante a vizinha passou a sorrir para mim nas poucas vezes que nos vimos nos corredores, no elevador, na portaria do prédio.

agora ela toca mesmo quando não é hora de aula e já não espera que faltem os alunos.

nalgumas tardes, estamos só nós duas: eu e a vizinha, cada uma de um lado da parede. ela toca e eu sei que ela sabe que eu escuto. escuto atenta, acompanho os erros e a repetição, me alegro com ela quando por fim se apropria da melodia e segue segura de si. ela sabe que eu sei que ela sabe que sou seu público e que desde aquela tarde de chuva ela toca pra mim e me faz companhia nestes tempos cinzas e tristes de inverno.

 

22 de janeiro de 2025

paciência

me lembro da minha avó jogando paciência enquanto meu avô fazia yoga no chão da sala seguindo as lições de um tal hermógenes num livro que guardei mas não me lembro aonde.

me lembro, sim, da minha avó pacientemente inventando sopas saladas musses flores de pano panos de prato roupas de boneca e teorias que explicassem a formação do universo enquanto meu avô resolvia palavras cruzadas do estadão, e ainda hoje me lembro do cheiro do jornal que nos esperava de manhã na porta de casa.

como meu avô esperava as manhãs para caminhar até o fim do mundo.

como minha avó já não esperava, porque sabia o quanto há muito tudo era noite.

me lembro que até hoje sempre houve um depois.

enqiuanto isso jogo cartas no chão da sala e o mundo se aproxima perigosamente de algum fim.

17 de janeiro de 2025

baby, eu sei que é assim

quando meus filhos eram bebês, eu ficava horas parada olhando o minúsculo peito deles subindo e baixando a cada respiração. o movimento, como um pássaro que sai do ninho e procura, me dava a certeza da vida contínua que nos atravessa.

agora que os filhos respiram longe de mim e já não posso passar horas olhando para eles enquanto dormem, observo meu cachorro. a cor do pelo dele é igual a cor dos cabelos dos meus filhos e ele respira compassado ao sol de inverno. nesses momentos meu amor, feito luz, se amplia multiespécie sabendo que desentende suas alegrias e suas tristezas tanto quanto desentendia a mim mesma e os meus bebês.

 



choices
(tess gallagher)

I go to the mountain side
of the house to cut saplings,
and clear a view to snow
on the mountain. But when I look up,
saw in hand, I see a nest clutched in
the uppermost branches.
I don’t cut that one.
I don’t cut the others either.
Suddenly, in every tree,
an unseen nest
where a mountain
would be.