contar uma história sempre nos pede uma decisão de onde recortar o tempo vivido, onde dizer aqui começa e onde o aqui termina. esta é uma história bem pequena, de um acontecimento que quase não tem importância para o momento-mundo que vivemos, e ao mesmo tempo é uma reserva de não-inferno, porque são estas reservas que nos fazem seguir respirando e buscando uma nova maneira de estarmos vivas.
há alguns meses alguém me mandou uma mensagem perguntando se poderia me apresentar uma proposta de um projeto coletivo que envolvia poesias e joias. minha primeira reação foi: será que eu conheço esta pessoa e não me lembro dela? e a segunda reação foi pensar que eu não sou alguém que se interesse muito por joias, se joias forem ouro e pedras preciosas. sou mais de tucum e outras sementes, contas de vidro e miçangas. mesmo assim, fiquei curiosa e topei receber o convite.
não, eu não conhecia a pessoa que tinha me convidado.
a proposta era simples: vinte e duas palavras disparadoras para vinte e duas joalheiras que dialogariam com vinte e duas poetas. o resultado final de cada parceria seria uma obra composta por uma joia e um poema.
não costumo escrever poesia por encomenda, acho dificílimo. mas como tem sido difícil escrever, e os diálogos sempre me levam a lugares inesperados (e eu gosto disso) topei.
minha parceria seria uma joalheira alemã. e nossa palavra disparadora seria “mãos”.
escrevi para ela propondo um café para que nos conhecessemos, imaginando que vivia na mesma cidade que eu. me respondeu em outra língua, explicando que não sabia escrever na língua que eu tinha escrito e que morava bem longe de mim. faríamos tudo por escrito.
como dependeríamos de um mecanismo de tradução, decidimos que cada uma escreveria em sua língua materna, para que o texto fosse fluido: ela em alemão e eu em portugues. (sim, eu sei, os mecanismos de tradução não são perfeitos mas seriam suficientemente bons para esta correspondência que inspiraria uma joia e um poema.)
e foram várias semanas de trocas, pensamentos, ideias em torno de mãos, de heranças, de origens, do significado da continuidade, do nos vermos refletidas nas que vieram antes de nós, nas que nos são contemporâneas, no que sentimos sobre palavras, pedras, joias.
sempre que eu enviava o meu email, sabia que em algum momento entraria um “liebe veronika” e eu conheceria um pouco mais da “querida julia”.
ela não sabia bem que joia fazer. me explicou a origem das pedras que usava, eu comentei um pouco do meu jeito de escrever. mandei para ela o meu poema “as mãos da minha mãe”, porque me parecia que tudo o que eu poderia dizer sobre mãos estava ali.
e na medida que o tempo passava, algumas palavras foram ganhando mais presença na nossa troca de correspondencia. e eu comecei a guardar estas palavras, uma lista, como quando eu escrevi as letras para as composições do remo.
ela me mandou fotos das pedras e das suas mãos trabalhando as pedras.
também eu compartilhei fotos das minhas mãos.
vi seu sorriso.
e revi tudo tudo tudo o que para mim querem dizer as minas - a nossa história de colonia e escravidão, as serras peladas, as violências, as misérias, o desmatamento e tudo tudo tudo que acompanha. a desigualdade no mundo. mas pensei também no quanto tudo isso é decisão. decisão: caminhar ou não no escuro à procura de luz.
e escrevi uma primeira versão.
e julia me mandou uma primeira ideia do que faria com as ágatas.
avancei no meu poema enquanto ela avançava na joia que seria composta por duas partes, que poderiam ser levadas pela mesma pessoa, como quem cruza as mãos sobre o peito, ou levadas por duas pessoas diferentes, que se dão as mãos, que se conectam e conectam seus destinos.
ela me mandou fotos da joia pronta e eu mandei o poema traduzido para o ingles (porque os tradutores automáticos não sabem traduzir poesia) e mandamos as duas partes da obra - joia e poema - para a galeria onde seria a exposição.
no final de maio, na abertura do 22 Mudanzas na Galeria Amaranto, fui lá ver joia e poema expostos juntos, formando um todo no meio de outras obras.
sempre me emocionam as ações conjuntas, alguma espécie de coletivo. escrever pode parecer muito solitário, mas nunca é. a origem é uma multidão e o destino também. mesmo quando a gente acha que está escrevendo pra gaveta.
uns dias depois da abertura da exposição, houve um recital, com a presença de várias das joalheiras e várias das poetas. e foi muito bonito. uma casa com quintal e árvores que me lembrava a casa onde morei quando as crianças eram pequenas, gente amorosa, bem humorada, querendo ver e saber e escutar. eu sabia que julia não viria. mas foi como se estivesse. botei no meu peito uma parte da joia e marta, uma amiga que se dispos a ler o poema em castelhano, botou a outra metade em seu peito. um broche de ágata conectando linhas e luzes, cruzando caminhos. e um poema que fala disso, de mãos.
não sei bem onde esta história começou nem onde vai terminar, mas o que eu tinha para contar agora era isso, esse momento diáfano no meio do caos. e as nossas mãos.
agradeço à marina gurman e à grego garcia pelo convite.
e à julia obermaier pela parceria.
se quiser conhecer as obras que compõem o 22 Mudanzas, visite:
https://amarantojoies.blogspot.com/2025/05/22-mudanzas.html