21 de fevereiro de 2024

o espírito da pedra

 

(Ricard Garcia)

A partir de LIQUENS de veronika paulics e Joan Navarro


Atravessar a porta e as sombras de dentro da porta. O caminho e tudo o que se amontoa às margens do caminho. A poeira que flutua entre vozes antigas. Os passos assustados do viajante. O diz-que-diz dos trilhos. As linhas que atravessam o infinito. A lâmina afiadíssima das facas. As carnes do bicho, abertas. Os grunhidos da morte. O jato de sangue, quente e roxo. O coração nas mãos, ainda tenso, ainda ensanguentado, ainda morno... O lugar algum e uma estranha luz vermelha e doce, como a polpa dos caquis. A matéria e seu esvaziar-se.

Morder a fruta. Morder as carnes e rir e que a seiva fecunde todos os vasos da terra. Também omensurar fogo e os exércitos de formigas que povoam a terra e os fungos e as bactérias e o musgo. Escarvar entre as almas, mensurar as esferas do não-tempo, os movimentos circulares, o zumbido das abelhas, a lama de chuva, a luz que resplandesce nas pedras.

Dizer, dizer a palavra e seguir as ondas do som, os rastros íngremes do pensamento, os murmúrios do meio-dia, a cadência das tardes antes que seja sempre escuro, enquanto ainda pingam monótonos o passado e a memória do passado, antes que a poeira se enrole sobre todas as coisas do mundo, enquanto o olho espera o sinal da chuva e que a amêndoa seja semente e raiz, caule, broto, flor e fruto, carne luminosa, água e terra, ar que te preenche, te abraça, te fala das coisas de viver. Ar da terra onde se enraizam as oliveiras que o pai plantou.

Sentir que chove uma chuva lenta, que se tempera a terra, que o musgo te cobre os olhos como cobre a pedra. Sentir que o tempo flutua dentro de ti como uma lamparina, entre o aqui e o depois, sob as sombras de um céu caído, preso entre tu e o olhar da raposa que te desafia. Sentir o uivo dos lobos, metálico e glacial, entre as árvores frondosas. Ouvir as vozes do medo. Uma ferida que não cicatriza.

Abraçar a montanha. Abraçar os limites quebradiços e tão frágeis da vida. Dar nomes ao mundo. Costurar a existência: razão e desejo, ser e não, escuridão e luz, fogo e argila, granito e fungo. O céu que se espelha nas lagoas. Os peixes de prata. As noites estreladas de antes do abismo. O naufrágio sob a curva do tempo. O aqui e o além. A laje que nos separa. Os tremores secretos da alma: amamentar as crias, curar as feridas, o pulsar do bosque, a vivacidade úmida de sob as pedras, o húmus, os caminhos da noite, a luz primeira, o perfume da mimosa. A beleza. O milagre de nos sobreviver. Os liquens. A pedra. O espírito da pedra.

 

(lido por ricard garcia no dia 21 de fevereiro de 2024 na apresentação do liquens na biblioteca gabriel garcia marquez, de barcelona)

19 de janeiro de 2024

oito meses

hoje faz oito meses que ela morreu. era uma sexta-feira. eram 5:43 da manhã, como é agora.
desde que pari meu primeiro filho penso que a morte se parece com um nascimento, meio às avessas. o susto do momento, depois a expectativa ao observar a vida se fazendo vida, firmando-se. primeiro contamos as horas, depois os dias, completando semanas até chegar a um mês. e então contamos os meses e as primeiras vezes de cada ciclo: o primeiro natal, o primeiro ano novo, o primeiro sorriso, os dentes, os gestos que vão se firmando, as primeiras férias de verão, a primeira grande chuva e chega o primeiro aniversário. e contamos os anos.
quando fiquei grávida não soube bem o que fazer com a ideia de estar preparando alguém e de que este alguém entraria na minha vida de certa forma para sempre. de todos lados ouvi que não me preocupasse porque os meses de gestação nos preparam para esta mudança no mundo, não só do meu mundo, mas do mundo ao redor no presente e no futuro. com o passar dos anos, entendi o que na hora me pareceu insensato.
e agora se completam os oito meses que me prepararam pouco a pouco e um pouco para este mundo presente e futuro que segue girando sem ela.

9 de janeiro de 2024

de alguma fome nasce a luz

(Manuel Rodríguez-Castelló, outubro de 2023)

As correspondencias e diálogos artísticos são há muitos anos parte substancial do trabalho poético de Joan Navarro (Oliva, 1951). E se apresentaram até agora principalmente de três formas: através da revista digital de arte e literatura sérieAlfa que o autor mantém desde 1999 e que já trouxe à luz 99 números com excelentes mostras de poesia contemporânea de todo o mundo na língua original e em traduções multilingues; no trabalho de tradutor (toda tradução é acima de tudo uma correspondência) passando para o catalão novelas de Pasolini, a obra poética de Orides Fontela, Ossos de Sípia (com Octavi Monsonis) de Eugenio Montale e poetas brasileiras como Elisa Andrade e, precisamente a poeta que ora os ocupa, Veronika Paulics, dentre outros; há também os livros feitos conjuntamente com o pintor Pere Salinas (Barcelona, 1957 - Vilanova del Vallès, 2023), uma extraordinária correspondencia entre imagens pictóricas e poemas, Atlas (2008), Grafies-Incisions (2010), O: Llibre d’hores (2014) e Llum cinabri/Calma tectonica (2015), com a incorporação neste último da poeta argentina Lila Zemborain.

A poeta brasileira Veronika Paulics, a outra voz deste tão sugestivo Liquens, nasceu em São Paulo em 1967 e há uns anos vive em Barcelona. Além de ter traduzido para o português, dentre outros Magrana/Romã de Joan Navarro, é autora dos poemários cães da memória (2002), a pé/a peu (2018) e casa de mim (2019) e dos blogues ando a pé e vem e devora (coletivo).

Liquens, o trabalho que hoje resenhamos, reúne 31 composições duplas e espelhadas (tantas quanto o número máximo de dias de um mês) ou 62 poemas datados entre 6 de setembro de 2019 e 11 de janeiro de 2022 que se apresentam no formato de poemas em prosa. Ainda que não estejam assinados, algumas constantes nos permitem distinguir nitidamente a autoria, os poemas de Veronika Paulics nas páginas pares, sempre em minúsculas, datadas em Barcelona com o dia, nome do mês e o ano, os de Joan Navarro nas ímpares, com a data em numerais e uma breve citação ao final de cada poema. O título deste magnífico poemário, o primeiro em que assistimos à correspondência puramente textual entre dois poetas (nos livros já citados de Joan Navarro estavam sempre presentes as imagens de Pere Salinas), remete à ideia de colaboração simbiótica. De fato foi o estudo dos liquens que levou ao surgimento do termo symbiotismus, inventado em 1877 por Albert Bernhard Frank, para explicar “este organismo de natureza dupla, produto da simbiose entre um fungo e uma alga ou uma cianoficia, que apresenta morforlogia e fisiologia próprias, geralmente bem adaptado a ambientes pouco favoráveis às plantas vasculares”. Dois seres vivos, portanto, trabalham conjunta e solidariamente e o processo de relação entre eles dá à luz uma coisa nova que os ajusta e ao mesmo tempo os transcende, duas vozes que harmonizam, acoplanto ao seu canto ecos de perguntas e respostas que se entrecruzam e se superpõem, que atingem o zenit do mesmo silêncio, a infinitude de paisagens das palavras que se atraem e se repelem, que nascem e se extinguem, uma criação que somente pode ser um ato de amor, os frutos de uma paixão, as viagens inspiradas da correspondencia me múltiplos sentidos, dentro e fora, para frente e para trás. A vida vivida na própria carne e a vida nos outros. A vida transformando-se no ritmo das palavras. Na sutil interação, no intercambio mensal de cartas que incendeiam cada manhã e abrem a fome onde nasce a luz, a voz que se oferece ao outro retorna como um eco aumentado e corrigido, pleno de novos matizes, material verbal onde tudo se aproveita, nivel da criação mais alta, sutil ecologia poética. Os pigmentos com os quais os poetas pintam o mundo se mesclam e iluminam novas formas e cores. A voz, misteriosamente, é a mesma e é diferente a cada caída de folha: é a sabedoria do diálogo que se afasta das armadilhas e estratégias dos discursos de poder, que é só poesia que afirma o seu canto, que reinventa a vida, que reinterpreta os arcanos da memória. Volta-se mais para o passado no caso de Veronika, é concreta mais em passagens de memória, em referentes que se identificam em respirar somente umas palavras (um incêndio, o sacrifício de um animal, momento da infância, a amargura do exílio, a escuridão de um extermínio, a quietude das mãos amorosas…) ordena mais narrativamente as sequências, enche o ar com verbos que engendram ações, pule mais o verso em que desemboca uma espécie de história que é o rio da vida. A escrita de Joan é mais substantiva e entrecortada - sintagmática, como dissemos em outras ocasiões - , encadeia-se em jogos infinitos de analogias e sutis correspondências internas, abstrai-se no que se pode dizer mas mal se pode pensar (“Vértebra do impulso. Óxido das órbitas”), cartografia o terreno inexpugnável da poesia, cresce no ritmo de uma respiração, da sístole e da diástole com que se diz o mundo, os processos invisíveis da natureza, o silêncio insondável de tudo o que é vivo, a fenomenologia do dizer, escrita fractal com a qual a consciência se faz universo e sentido.

Se a voz de cada um não produzisse eco e efeito no outro, se não modificasse o seu próprio transcurso, não estaríamos falando de diálogo ou correspondência poética mas de simples intercâmbio de surdos, tão frequente na vida cotidiana. As duas vozes assim se entrelaçam e se transformam no decurso criativo de maneira perceptível. Joan se impregna da potência de evocação do passado com que Veronika dava os seus primeiros passos para incorporar, por sua vez, através de apóstrofes tão peculiares de sua obra, o irmão e o pai ausentes, a casa familiar, a paisagem da infância, certas noites de verão. Vai se entregando Veronika de pouco em pouco ao êxtase de dizer, à pura abstração, ao voo da imaginação que se adentra no fenômenos naturais, na contemplação maravilhada do mundo. Os ecos que ressoam de um lado e outro dos poemas-espelho vão pautanto a sinfonia de uma altíssima densidade poética. Multiplicação dos caminhos que se percorrem em todos os sentidos, todo de janelas abertas para o infinito.


Veronika Paulics e Joan Navarro, Liquens. Epílogo de Ricard Martínez Pinyol, Edicions del Buc, nº28, La Pobla de Farnals, 2023

original publicado aqui: https://lapedraielmarge.blogspot.com/2023/12/dalguna-fam-neix-la-llum.html


8 de janeiro de 2024

epifanias

sou alguém que carrega seus mortos consigo. carrego também os vivos, ainda que os vivos, tantas vezes tão distantes no tempo ou na geografia, nem saibam que são carregados por mim. já os mortos, sim, esses sabem. sabem que os carrego e sabem que isso faz diferença. não tanto pra eles. entre os mortos, carrego amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. carrego uns nomes sem sentido, e até mortos sem nome que sobrevivem em pedaços de histórias que alguém me contou. carrego comigo a menina que desistiu quando tínhamos uns doze anos. carrego minha bisavó, meus avôs, minhas avós, carrego meus pais. carrego os irmãozinhos da minha mãe e do meu pai, de um tempo em que tantas crianças “não vingavam”. carrego tias, primos, amigos mortos. carrego amores antigos, sua pele delicada, seus abraços, seus olhares e tudo o que não foi dito ao longo de não-vidas, eu carrego. às vezes, de manhãzinha, vou desfiando nomes e datas, ladainhas de gente que eu quereria aqui, nesse momento, nesse dia. na noite da epifania muitos me visitam, como se fossem os magos, e no dia oito de janeiro, como hoje, penso na ana, que está viva, e penso na janaína. falo com ela. como converso com todos os mortos que carrego. às vezes me respondem com arroubos, outras vezes sussurros. ou nem isso. me esforço pra escutar no vento um murmúrio qualquer que me lembre tudo o que fomos e fizemos ou que me confirme que ainda seguimos vivas.

3 de janeiro de 2024

douglas

 

este ano faz quarenta anos que fui aprovada pro curso de jornalismo da usp. já me esqueci de muita coisa. outras, permanecem pra sempre. o jornalismo, em si, não durou muito. já a escrita nunca mais me deixou. vários tipos de escrita, várias formas de relatar o mundo que vejo e ouço. poesia em quase tudo.
mas no ano em que me formei, já me achava adulta e muito profissional. mas eu tinha 20 anos! e ninguém, absolutamente ninguém, levava a sério a informação de que eu era uma jornalista profissional, com carteirinha do sindicato e tudo. na época tinha me convencido que escrever não seria muito o meu caminho e tinha enveredado pela foto jornalística e formação em comunicação pros que viviam nas beiras, nas periferias, nos espaços distantes do poder.
uma das pessoas que me abriu espaço e me apoiou e me ajudou a olhar o mundo respeitando sempre a opção preferencial pelos pobres e o afeto que isso envolve foi o Douglas Mansur. douglas era da equipe do jornal o são paulo da arquidiocese. suas fotos sempre tiveram e ainda têm um olhar direto e amoroso, e nunca deixou de estar ao lado da luta por justiça e igualdade, abraçando especialmente a pauta da reforma agrária e o mst.
se já são quarenta anos que entrei em jornalismo, já faz quase quarenta anos que o conheço. e admiro. e respeito e serei sempre, sempre muito agradecida a ele, por me dar a mão, por me abrir espaço, por me fazer ver que o caminho que eu queria seguir era possível.
me desviei muitas vezes do jornalismo, já não vivo no brasil, faço fotos só de detalhes dos lugares por onde transito, mas sempre mantive o foco. e o douglas, o querido douglinhas, sempre ali, uma referencia pra mim.
quando entendi o quanto douglas está presente no que hoje sou, agradecer é o mínimo que posso fazer.

28 de dezembro de 2023

já chega

na madrugada o baque de um corpo que cai. o ladrar de um cão. o corte do laser na pele delicada. uma chamada telefonica e nenhuma voz. os ossos frágeis movendo-se sob a musculatura antiga. um pássaro deposita um graveto no ninho em construção, equilíbrio quase aéreo. a máquina registra um último bip e se cala. enquanto um relógio parado aquece os dias. o som dos abraços, das folhas novas se abrindo na ponta do galho, das ondas que vão e vem, da brisa, sempre a brisa. a casa vazia e um jardim imóvel. os retratos e as cartas incendiadas. as gemas entre os dedos. o celular que toca anunciando a voz do irmão. não preciso dizer, né? eram dez da manhã e eu tomava um café e a chuva fina mal molhava a calçada. eram quatro da madrugada. eram paredes de chumbo. eram ipês amarelos. eram músicas. eram gestos. era gente que eu não via há tanto tempo. era tudo tudo e era nada. uma dor ali onde o fígado e os olhos marejados, os olhos todo tempo marejados de um mar cinza que antes era azul e agora silencia.

que venha logo a magia de se acabar um tempo e nascermos outros.

 

 

23 de novembro de 2023

meu tio

logo cedo meu tio lembrou que há 67 anos ele tinha voltado correndo pra casa da escola na hora do almoço porque sabia que entregariam um fogão novo. e ali ele encontrou minha avó e minha bisavó na frente do fogão chorando porque meu pai tinha ido embora da hungria.

era 1956.

 

12 de outubro de 2023

para o meu pai

alguns momentos na vida parece impossível fazer o que sempre se fazia. 

um jardim, por exemplo. 

volto de uma longa viagem e encontro muitas plantas mortas. umas secas por falta d’água e outras, por excesso, raízes asfixiadas.

a mesma quantidade de água. como remédios e venenos.

 
meu pai que só cuidava de flores vistosas me dizia pra que buscar a utilidade? quando o que eu buscava nessas ervas rasteiras era perfume pra minha secreta cegueira das horas difíceis.

 

22 de setembro de 2023

para noemi


disse a ela: receba estes estilhaços, e ela os acolheu, irmã que é de passados quase antigos e nesta escrita -- pasto e procura. levou com ela dois pequenos pedaços, sobras de uma casa desmontada em choro, de uma vida transmutada em ocos de paredes vazias.

recolho e distribuo. desmonto e amontoo. sou a guardiã que nao conhece o que guarda. atenta aos movimentos suspeitos da noite, com medo dos ladrões. mas eles passam longe: buscam ouro e joias e eu só tenho trapos e papeis, fotos opacas, livros comidos por traças.

ninguem quer roubar silencios e memórias. cada um que se ajeite com os seus.

 

28 de junho de 2023

quarenta dias e quarenta noites depois



anyu

esta noite minha mãe dormiu entre crisantemos.




sempre chamei minha mãe de mãe em húngaro, anyu.

anyu morreu às cinco e quarenta e tres da manhã do dia 19 de maio de 2023.

aqui já eram dez e quarenta e tres da manhã. eu estava numa terraça tomando um café, estava um dia de sol mas um pouco de chuva. antes esperando a anna, escutei a conversa de duas pessoas, uma delas com sotaque brasileiro fazia uma digressão interessante sobre a situação política da america do sul. tudo parecia de cores intensas. eu mesma deveria ter chegado lá só às dez e meia, mas me equivoquei e cheguei antes, as dez. naquela manhã a vida parecia ter retomado um fluxo, tudo parecia possível. minha mãe sairia do hospital e eu iria para o brasil em junho, estaria com ela na casa dela, cuidaria dos remédios, da alimentação, do ânimo. naquela manhã me sentia super potente para resolver todos os problemas de saúde dela e faze-la voltar a ter ânimo para viver.

antes mesmo que eu voltasse para casa, ela já tinha morrido. mas eu não sabia.


voltei para casa na garoa, peguei metro, conversei com o ricardo, talvez, e quando o telefone tocou e vi o nome do meu irmão, eu já imaginava o que poderia ser. e ele disse exatamente isso: você já sabe. mas eu não queria acreditar que fosse isso.

ela sozinha na uti, sedada e sem ninguém pra dar a mão. eu tão longe dela. tudo parecia um pesadelo, destes tristes. minha vida escorrendo das mãos e ela morta. e eu sem poder ir até lá. e talvez já nem fizesse mais sentido ir até lá. a sensação de solidão foi entrando devagarinho pelos poros, ocupando o pensamento.

choro. por ela, por mim. por tudo que não foi e nunca mais será.

mas também por tudo o que foi. e que permanece, se mantém em mim.

aqui, ninguém sabe quem sou, muito menos quem foi minha mãe. e eu preciso que outras pessoas estejam comigo, que lamentem a morte de uma pessoa que em tantos momentos da vida foi genial, linda, engraçada, acolhedora. minha mãe foi tantas coisas. como todas as mães. como todos nós.




ela morreu no mesmo dia que a dora, sua irmã. tres anos depois. dora viveu 92 anos, minha mãe viveu 84.

minha mãe morreu 22 anos depois da minha avó.

minha avó morreu 22 anos depois da minha bisavó.

as coincidencias numéricas.




no dia seguinte, sábado, foi o velório. minha mãe dormindo entre crisantemos.

na sexta, o bubi tinha me chamado por video para escolhermos uma roupa pra ela. rimos um pouco. mexer nas gavetas proibidas, escolher meia, calcinha, saia, blusa. um morto pode estar bonito?




o velorio não foi em casa. a casa não estava em condições, disseram. seria impossível receber as pessoas ali.




quando meu pai morreu, o velorio foi em casa. e foi bom. mas havia quem limpasse a casa: minha mãe. ela sempre arrumou tudo, organizou a casa, preparava comida para não faltar nada pra gente. quando foi para cuidar de si mesma não viu graça nenhuma. isso: ela existia pelo olhar do outro. o proprio olhar não foi suficiente para manter o desejo de estar viva.




meus irmãos acionaram as cameras do celular pra que os que estavamos longe pudessemos participar ao menos um pouco. vimos anyu entre as flores. as duas coroas, lado a lado. nenhuma vela. o coral cantou haleluiah numa versão brasileira estranha, e ave maria de gounod, que nós não conseguimos ouvir na transmissão do telefone. mas ouvimos os elogios à nossa mãe, ouvimos o padre dizer que ela agora estará nos braços de deus. e tudo isso era mais para nos confortar. não sei se minha mãe estava ouvindo qualquer coisa que fosse.




como se conta a história de alguem?

meus irmaos e minha irmã foram pra casa juntos, comeram, riram, choraram e eu aqui, longe. eles começaram a desmontar a casa. tirar o lixo, eles dizem. e o que a gente chama lixo diz muito de alguém. o que é que juntamos nas gavetas, nos espaços mínimos de uma casa, nos armários, nos vãos? e o que é que ninguém guarda. como entender o que é importante para o outro?

o que é importante para mim?




aqui tem muita gente que preserva a casa dos pais no pueblo porque a casa não tem valor de venda, ninguém quer comprar. e a casa fica lá, fechada nos invernos, frequentada nos verões. ficam lá os móveis, os tapetes, a louça, as panelas, o cheiro permanece. ha um ponto possível de retorno. muitas vezes desde menina sonhei em ter este lugar. um sótão onde as cartas nos baús, onde as roupas velhas os chapeus, os moveis um pouco destrocados, os quadros, uma foto reveladora. onde a nossa história se mantivesse para não sermos esquecidos.

e por que não quero ser esquecida?

se a vida é um fluxo e todos morreremos da memória do mundo?






quando minha mãe morreu, deixei de ter um país.

quando minha mãe morreu deixei de ser um terrítório.

quando minha mãe morreu entendi que nunca mais eu seria princípio de nada.




quando minha mãe morreu, depois que passou o tranco - sim, um tranco, porque a gente sabe, a gente se prepara, a gente espera, mas a gente sempre se assusta - meu pensamento mínimo pequeno foi: para quem enviarei fotos e notícias do nosso dia a dia? quem quererá saber?

mãe é o nosso primeiro espelho, é nos olhos dela que existimos no começo de tudo. ser gestado e parido, ser amamentado. buscar nos olhos a aprovação, o amor, e ter medo das tempestades que invariavelmente chegam. e agora sei que nem sempre têm a ver com a gente, têm a ver com o amplo da vida que também nossas mães vivem embora sempre pareça que vivem só para nós.




quem se interessará se o aspirador funciona bem, se o arroz daqui não tem a mesma consistencia, se os preços no supermercado são parecidos, coisas bobas e que constituem o cada dia que a gente mal nota.




durante o dia penso: agora seria uma boa hora pra ligar pra anyu. das outras vezes, o cotidiano me engolia ou ainda me dissuadia a ideia de que ela estaria fazendo uma siesta. agora entendo que a qualquer hora que um filho nos procure, estaremos atentas, à espera. mas há uma semana eu ainda não entendia isso.

há muita coisa que a gente demora demais pra entender.




primeiro eu gritei bem alto para não estar sozinha diante da sala vazia, das mãos sem as mãos da minha mãe. sem seu abraço. depois silenciei. agora, digo as coisas nos cantinhos, como aqui. espero que tudo se acalme na tempestade que desaba dentro da minha cabeça e às vezes sai pelos olhos.




desamparo

orfandade

o fim do princípio

os retalhos de memória

o esgarçado do tempo

os ossos

os ossos

ultrapassando a pele. estirando a pele fina como uma seda, antiga como um pergaminho.

era setembro e ela me levou ao aeroporto, dirigindo. ou minha memória inventa e já não foi ela que me levou? foi ela, sim, me lembro que dirigia bem, que me avisou quando chegou em casa. quem eu avisarei que chegamos bem, que o avião pousou, que os meninos estão felizes, que deu tudo certo? quem?

quem se importará em saber com a mesma alegria com que uma mãe se importa?

5 de maio de 2023

o que me habita

submerjo nesta água, não inspiro não expiro não pauso. espero. no fundo, pedras e decantado lodo. a água, este abraço, afunda os dedos em meus cabelos, busca raízes, frestas, invade lentamente as porosidades, transborda meus olhos e, outra vez, o oco da boca vaza meus peitos fartos, fontes, fomes.
pouco a pouco eu toda inundada, pedregosos vãos. esta caverna em meu centro é muitas.

algumas serão luz. a terceira, um obtuso som no escuro úmido e ofegante onde dorme um pequeno monstro devastado, sem presas, sem garras, narinas dilatadas pelo medo.

e uma folhagem brota entre seus olhos vazios.

 

4 de maio de 2023

silêncio

um silêncio.

seria preciso impor um certo silêncio. impor-me silêncio. colocar-me silêncio que não vem se não houver, em vez de espaço, tempo: silêncio é tempo em prontidão, espera, ausência. o silêncio, o abrir-se nada. impor-se nada. dentro de mim tudo balbucia murmura resmunga, dentro de mim marulhos. queria o instante silêncio que me localiza no mundo – braços. saber-me. o  quem sou.

então, eu o  vejo. a atravessar a rua, o um que escrevo, que procuro escrever. não deveria estar aqui. disse a ele: ei, você não poderia estar aqui, criação minha que é e eu.  me respondeu decidido: se escrevesse fatos sequências, colecionasse a história em si, eu me reduziria ao que fosse mas um alguém, veja-se, que não detém os gestos de seus personagens, não ocupa seu tempo, vai sim me encontrar no atravessar a rua na banca no balcão na biblioteca ainda na janela do carro que passa e para na calçada oposta.

e meu personagem, quando digo vejo, é uma mulher um menino outra vez um homem a multidão que acena raivosa fora de contexto.  penso que o deveria ordenar, organizar o que pode e o que não pode ser, dizer a ele que se decida quem. e que não fale muito, que me sorria e não sinta medo, e se sentir medo que me diga e aponte o dedo para o trecho aquele e o destaque nas páginas me mostre o que é preciso dizer e não sei, como os espíritos a bailar nas florestas negras, a violência a propagar incêndios, o áspero da chuva de granizo e areia, tempestades de absurdo. me repita, sem saber quem sou, que um qualquer escreve porque tem medos e nos escritos se reinventa e se protege e se lança e alcança o silêncio por trás de muros.

 o medo de não se perpetuar também, estou nesse que me vejo a atravessar a linha delirante de uma rua, a frágil distância entre o que sou e o que me queria, entre mar e mundo, o escrito, este lado um e aquele lado outro da calçada, o que digo é quero também ser este que não vê, que pergunto e não responde e não reage e segue não sombra nem abraço no escuro  que somos medo, palavra e música, a mão espalmada um segredo, os olhos o desejo, meu personagem estes todos meus desejos que desfio e teço, que costuro e silencio, neste silêncio de mudos, neste silêncio sempre, este silêncio que guardo, com que me alimento e com que procuro o que sou e não tudo aquilo que temo e quero e peço os pequenos exercícios de ser galho e ramo que nos tornam a cada noite o quem fomos no universo paralelo sendo no obscuro dos gestos grutas gritos minhas mãos mariposas suas mãos surpresas de pedras úmidas de musgos no meu pensamento que o tempo esgota o corpo desiste os cabelos brancos peles opacas rugas lábios beijam dizem venha neste caminho de folhas neste caminho de humus cercas que plantei e quando vejo sei que não deixei frestas construção sem portas casa de só janelas por onde agora eu possa ver o trecho que me leve à fonte onde outras mulheres a lavar a roupa e estende-la a lavá-la roupa e estender a lavar a roupa e entender onde eu me lave roupa e me estenda além do que prisão se anuncia meu corpo que entrego horta que entrego fruto adubo meu pensamento que eu queria além, bem além, que eu queria sol.

um som.

27 de abril de 2023

de livros e rosas



das alegrias que não cabem em fotos:



algumas coisas passam na vida da gente feito um vendaval.

este 23 de abril, dia de são jorge, festa do livro e da rosa na catalunha, foi assim, um vendaval.

uns poucos dias antes, soube que o livro que joan navarro e eu escrevemos entre setembro de 2019 e janeiro de 2022, o liquens, estaria pronto e presente na parada de livros da edicions del buc numa das maiores - se não a maior - festas da cidade de barcelona. e eu, não seria aquela que passa na multidão vendo todos os livros do mundo mundial, todas as editoras, todos os autores, e seria aquela que espera amigos e leitores, para que venham conhecer um livro novo, para que venham conhecer a editora que o acolhe e publica. daí o vendaval.

ao contrário do que costumam ser as apresentações de livro aqui ou os lançamentos de livro no brasil, no dia de são jorge mal dá pra falar do livro, do processo, do conteúdo. mal dá pra falar. proque há uma multidão que passa, pessoas que se amontoam, falam alto, querem ver e saber. querem uma dedicatória mas querem seguir adiante, pra ver o tanto de coisa que há pra ver. muita gente se perde - como eu me perdi um pouco - e depois se encontra.

e foi tão bom, foi tanta gente que passou pra dar um abraço, pra festejar esse momento único, que provavelmente nunca mais se repetirá na minha vida, porque não é fácil coincidir de ter um livro novo justo em abril e estar em barcelona para apresenta-lo. o carinho de quem veio vai ficar registrado na história da minha vida, entre momentos especialmente bonitos. agradeço demais.

me lembro bem do primeiro dia de são jorge que passei em barcelona e os muitos anos que levei até entender a dimensão desta festa no imaginário popular e no comércio de livros. as pessoas compram livros e se dão livros de presente. as pessoas se reúnem e saem a passear pela cidade cheia de livros, de editores, de autores. há uma feira na parte central, mas há outras, muitas, descentralizadas pelos diversos bairros de barcelona. e é festa. este ano caiu no domingo, mas quando cai durante a semana, não é feriado e, mesmo assim, a cidade se movimenta em torno do livro. as pessoas se encontram. as pessoas se alegram. e parece que ninguém pode viver sem ler. e é tanta alegria de primavera, que as pessoas, além de festejar o livro, celebram o amor, com rosas. (não vou discutir aqui a sustentabilidade do modo de produção de livos e de rosas, fica pra um outro dia.) pra se ter uma ideia, segundo dados oficiais, foram vendidos 26 milhões de euros em livros e seis milhões de rosas nesse dia. e o liquens ali, não fazendo feio...




(pra quem me perguntou mais sobre o liquens, comento rapidamente: é uma correspondência poética com joan navarro, poeta de valência e querido amigo. nos conhecemos há muitos anos e, depois de traduzirmos muitas coisas um do outro e de outros, ele me propôs de escrevermos um livro juntos: ele escreveria um poema, eu responderia com outro poema, ele escreveria, etc. no fim das contas, começamos com um primeiro poema meu, que ele respondeu em seguida e então eu respondi, e seguimos ao longo de dois anos e meio, atravessando inclusive a pandemia. cada um com sua maneira de escrever, compartilhando palavras ou imagens. em catalão o liquens foi editado pela edições del buc e em português está sendo editado pela patuá. deve estar pronto em meados de 2023, se tudo correr como previsto.)

24 de fevereiro de 2023

pra viver sobre as ânforas

para construir o parlamento húngaro, escavaram as colinas sob os vinhedos de um povoado que ficava próximo a buda, na beira do danúbio. toneladas de pedras foram retiradas sem destruir os campos transformando o subsolo num imenso recorrido de cavernas. cavernas extensas que serviram de adegas de vinho e espumante. cavernas que foram casa para os pobres de marre-de-si. covas e grutas abandonadas. resgatadas tempos depois para a produção de champignon, com denominação de origem. instalaram-se ventilações, circuitos de transporte, vias de acesso para caminhões e barcos fazendo funcionar estas fazendas subterraneas de cogumelos. com o passar dos anos, na medida em que o povoado se conurbava com budapest, esqueceram-se vinhedos e cogumelos, cada vez mais e mais casas erguiam-se ocupando os campos e as colinas. algumas destas casas chegam a aproveitar as grutas subterraneas como se fossem porão. em outras casas, que estão a trës ou vinte metros acima do teto da caverna, os moradores às vezes nem suspeitam do oco sob os pès. em outras, ainda, nos jardins os escorregadores das crianças convivem com os respiradouros por onde sai o ar gasto das grutas usadas para sabe-se-lá-o-quê (de clubes de tiro e paintball a adegas, restaurantes, armazéns. fungos. e nadas.) um imenso mundo subterrâneo de grutas úmidas e escuras e misteriosas, repletas de mofo e silêncio, conectadas entre si ou não em um intrincado desenho de caminhos quase desconhecidos. um distrito inteiro vivendo em cima de uma pedra que mais parece um queijo suiço. uma das cidades de calvino. a paisagem, sim, é linda.

3 de janeiro de 2023

no texto dos outros

(Edmond Jabés)

Um dia me dei conta que uma coisa me importava mais que as outras: como me definir como estrangeiro?

E isto foi o objeto do livro que intitulei Um estrangeiro com um livro de bolso sob o braço.

Em seguida me dei conta que, em sua vulnerabilidade, o estrangeiro podia contar tão somente com a hospitalidade que o outro poderia oferecer.

Assim como as palavras se beneficiam da hospitalidade da página em branco, e o pássaro da hospitalidade incondicional do céu.

E é o objeto deste livro.

Mas o que é a hospitalidade?



2 de janeiro de 2023

quando eu ainda era surda



nas noites de ano novo me lembro sempre de uma vez em que os meninos eram pequenos e estávamos na casa dos meus pais,. da varanda da casa, olhando pra direção do mar, dava pra acompanhar a explosão dos fogos de artifício. os meninos não estavam acostumados a ficar acordados até bem tarde, tinham aflição com multidão e muito barulho. estar ali, sentados no aconchego da casa e poder ver no céu o espetáculo dos fogos, era uma boa solução. eu já sabia que os cães não suportam estes barulhos, mas andava ainda um pouco surda pra o que não fosse animal humano. e por estar um pouco surda, podia assistir a explosão de cores no céu.

meu pai tinha sido químico. e sempre gostou de explicar as coisas pra nós. também nessa noite, olhando as cores que explodiam, ele explicava pros meninos que elemento químico gerava cada uma daquelas cores. nunca entendi muito bem como se faz um fogo de artifício, como se organiza os intervalos entre as luzes, mas naquela noite eu sabia exatamente o nome de cada um dos elementos químicos que geravam explosões em cor.

com o tempo me esqueci disso também.

com o tempo permaneceu a sensação do aconchego daquele ano novo. estar entre as pessoas que eu amava e ver nos olhos o brilho de aprender a grandeza do mundo e de se alegrar com a explosão da luz.

agora, que já sou surda aos sons, me comove a memória.

1 de janeiro de 2023

dois mil e vinte e três

o ano começou quieto, lento. como um riozinho que mal se vê entre pedras e folhas caídas. o brilho da água. o murmúrio. o que vem depois a gente nunca sabe.

o tempo é sempre um presente que vai se abrindo aos poucos e aos poucos vai se revelando. abre-se a primeira aba de papel e parece uma estatueta de elefante. não, não é. abre-se outra aba e o que parecia uma estatueta de elefante é a ponta de uma tampa de um bule talvez. mas, não. outra parte do papel se desdobra e o que parecia a ponta de uma tampa de um bule é o encosto de uma poltrona, ou é o portal de uma cabana, ou a porta, simples e direta, de um túnel escuro e frio.

o tempo, este presente que vai se desdobrando, nunca deixa de nos surpreender.

que 2023 seja um presente bom. mas se for escuro e frio, que seja também bonito porque "iluminado pela beleza do que aconteceu há minutos atrás"...

11 de novembro de 2022

elegia (carlos drummond de andrade)

gaveta de guardados. na minha memória, este poema tem a voz do tom jobim que o recitou uma vez nalgum especial de algum programa de tv e eu gravei num k7 que carreguei comigo até os k7 não terem mais serventia.

Elegia (Drummond)
 
Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaça, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As árvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.
Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.
Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quanto aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.
E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia, em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.

9 de novembro de 2022

instruções para dar fim a um embuste

(para gina dinucci)

 

olhou em volta e viu a mata toda queimada, os animais mortos, patas e bicos imóveis, quando viu tudo cinzas, silêncio, carvão, sentou-se e chorou.

toda floresta um dia nasceu. cresceu lenta e lentamente se formou espaço entre árvores, onde novas plantas buscam o sol, e outras preferem a sombra ao rés do chão. o tempo trouxe as epífitas, suas raízes aéreas, e também os bichos que não vemos. insetos minúsculos, aranhas, aves que aí gorjeiam, macacos, onças, preguiças, um tamanduá. tudo, tudo o que nos fez ser floresta, um dia nasceu. e se fez.

depois do incêndio, éramos muitas ali sentadas chorando a devastação.

enquanto chorávamos, raízes e sementes, insistiam, depois de resistir ao fogo. repare.

levante-se, portanto.

tire o poder das mãos de quem incendiou este país.

aguce a vista e busque as ferramentas para afastar as cinzas onde mínimos verdes despontam.

chore pra regar a vida até a próxima chuva.chore e dance.

insista em seu verde, como insistem as sementes e as raízes, até que voltem as aves, os insetos e outros animais, até que a floresta seja. seja sinfonia, cores, sombras, luz. 

 

 

8 de novembro de 2022

o rio

há oito mil dias apostei
num posto avançado de observação da beleza. 


a hipótese? um mistério
que de tanto ser observado
se desvaneceria -- névoa
no mar bandada
de maritacas águas entre os dedos.

sem saber que a beleza era o mistério, em si,
desfazendo-se e fazendo-se a cada manhã
o escuro no caminho dos teus olhos,
a luz acesa
quando ninguem mais me espera,


a palavra que se deposita na boca e sem dizer
nada é toda mistério em sua máxima beleza.