20 de dezembro de 2011

sob uma chuva de flores e galhos

perdi o rumo. aquele rumo exato de quem não sabe para onde vai. debaixo do galho a ferida aberta. a memória é um bicho doido, aleatório. o nome da menina que a parede cobriu e matou. armadilha em pequenas flores amarelas? o nada da solidão que sou no ponto de ônibus na banca fechada sem táxi que passe. um cotovelo na minha clavícula. roupas não revelam índoles nem disfarçam. o homem que amo está ao meu lado apesar do pouco que sou.

16 de dezembro de 2011

bico de pena e nanquim

veio de são paulo. a franja parecia diferente das nossas franjas. as roupas. o jeito de falar. vinha na nossa casa porque era da turma da minha irmã mais velha. eu sofria por perder (pra ela) a atenção do menino que eu mais gostava.
um dia, num daqueles jogos de menina predizer futuros, descobrimos que ela se casaria com o ique. eu olhava o papel, olhava: ali, o que parecia o fim do mundo.
assim como veio, um dia ela foi embora. o tempo passou até não ficar nenhuma de nós. todas estrangeiras.
a internet reduz o mundo e um dia os olhos da luli na minha tela. escrevi, perguntei: você é ela? e era. uma história de risadas largas.
do tal henrique, nunca mais tive notícia.

no limiar, veja


Se uma imagem vale por mil palavras, nas palavras se condensam mil imagens.

15 de dezembro de 2011

pintura em aquarela sobre tela rarefeita de papel de arroz

chegou, fez perguntas. ouviu isso aquilo. me fez lembrar de muitas coisas intensas. eu respondia, ela perguntava. então, agradeceu, deu-se por satisfeita. desligou o gravador.
respirei e disse como quem pergunta: você sabe quem eu sou, não é?
nossas mãos sobre a toalha xadrez, próximas e sem se tocarem.
os olhos dela marejados. foi a minha vez de ouvir. sem gravador, sem perguntas, o pão a crescer esquecido na mesa da cozinha. o passado, uma explosão contida, um resto de memória, nunca toda ela. a dor um registro difuso. ou não sobrevivemos. a faca de cima abaixo e as vísceras. depois tudo outra vez contido. ninguém sabe o estrago de decisões, de palavras ditas no escuro do cinema e um desconhecido a desinterpretar, de copos de uísque a mais, de saquê uma bomba sob o balcão do bar o punhal. do medo e a mão que vem em meu socorro deixa alguém largado na beira no mar nas pedras.
depois que ela saiu, eu me sentei e chorei.

via aérea

um jeito de balançar as pernas, mexer as mãos e desviar os olhos e eu sei que mente. conversa com outro homem, conta vantagens e o outro se admira de si mesmo por despertar a atenção de um homem que se declara tão importante. mas ele mente. e o outro homem, aquele que se admira por achar que é admirado, é tolo e vaidoso o suficiente para não prestar atenção àquilo que ouve e saber, assim, que tudo o que houve é mentira.
o mentiroso, quando quase se delata, põe e tira os óculos escuros e se ajeita na cadeira da sala de espera do aeroporto, abre a maleta, tira um alicate de unhas e começa a fazer as unhas sob o olhar atento e embevecido do outro, que não sabe ao certo o que ou para onde olhar. os olhares se perdem, as palavras caem no chão, ocas, barulhentas e se quebram.
o voo vai sair. forma-se uma fila. o homem mentiroso fecha a mala, vai até o começo da fila, diz qualquer coisa que o promoveria a primeiro da fila. a mulher olha para ele, olha seus sapatos e num gesto contido diz não, não há por quê. ele que vá ao final da fila.
constrangido, ou quase constrangido, finge que seu telefone toca e finge que o atende e finge que tem alguma coisa para dizer e diz baixinho coisas ininteligíveis. depois vai até o final do corredor olhar vitrines.
sou a última da fila, logo atrás do homem que antes admirava o mentiroso. sorri amarelo ao perceber que era tudo mentira. e me pergunta as horas. não respondo. não entendo o que me diz.
é a minha vez.

9 de dezembro de 2011

o sonho

Quando os relógios da meia-noite prodigarem
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os voga-avantes de Ulisses
À regiao do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.

(jorge luís borges, a rosa profunda, tradução de josely vianna baptista)

8 de dezembro de 2011

dia a dia

escrever o que me acomete, o simples, simples, nem sempre consigo.
reduzir um pouco a densidade.
faço uma dança para explicar aos meninos o que é o denso. um abraço é denso. brincar de roda não é tão denso. mas é intenso também, eles dizem.
entre concordar ou discordar há distâncias. e também elas nos socorrem.

7 de dezembro de 2011

ana também teve pesadelo

sonhei com o deus. e o deus era o valmor chagas. entre nós, um capinzal e, no meio do capinzal, as cobras. e o barulho delas, rastejantes. por mais que ele dissesse vem, não tive coragem. acordada, pensei: se era ele o deus, por que não vinha?

o medo. às vezes é uma merda.

(inspirado em texto de ana ramos)

29 de novembro de 2011

metamórfica

santa maria da silva de nome nenhum, que tua misericórdia acolha nossa miséria cotidiana, nossa pequenez, nossa infinita vontade de nunca morrer. que a minha dor seque na medida das lágrimas que insistem e a minha mão possa de novo florescer. que a terra dura de sob os teus pés não me pise e cada verso que leio dos velhos poetas malditos me estrele o céu que silencioso me protege. santa nenhuma dos perdedores dos bêbados dos mutilados da alma que eu me entregue como um cão à vida, que saiba percorrer o horror do tempo que me faz fechar olhos para logo abri-los na miragem da galáxia do vendaval do mistério do ônibus lotado na cidade que não transita nossos corpos tatuados cheios de cicatrizes. que no sol do teu tempo, que feito um ventre me pariu, eu me pare e apodreça sem sofrer muito e morra sem me perder e desapareça como pó que cubra e recubra teu santo manto também nenhum. amém.

22 de novembro de 2011

ao pote

a palavra um poço, um fosso, uma planta. a palavra uma construção. o que tem que ser. palavras que sobram não florescem não constroem nem protegem. palavras que sobram, nem água. em volta da palavra exata frase, todas as outras minas terrestres, armadilhas, muros, cercas, sustos. não me aproximo. desarmo, derrubo, destruo. gasto energia para chegar e quando chego palavra nenhuma posso. tanta palavra e eu a morrer de sede.

11 de novembro de 2011

faixa

listras no chão e um semáforo entre a minha casa e a estação reduziram o volume de adrenalina que meu corpo produzia a cada ida a toda volta.

10 de novembro de 2011

do outro lado do atlântico

Andar a pé (publicado aqui)

Para as crianças dos pobres, a estrada é no Verão como um quarto de recreio. (...) Malditos sejam os automóveis sibilantes que frios e pérfidos avançam para os jogos das crianças, para o paraíso da infância, e chegam a pôr estes pequenos seres inocentes em perigo de ser esmagados. A ideia tremenda de que uma criança possa de facto ser atropelada por um desses triunfantes monstros mecânicos, quero afastá-la completamente, pois doutro modo a indignação levar-me-ia a declarações rudes, as quais, como é sabido, não levam a grandes resultados.
Às pessoas que passam num automóvel sibilante, lançando nuvens de poeira, mostro sempre um semblante carregado e duro e elas não merecem, realmente, mais. Pensam então que sou um controlador ou polícia civil, encarregue por altas entidades e autoridades de vigiar o trânsito e de registar as matrículas dos veículos para depois fazer uma denúncia. Mas o meu olhar sombrio recai sobre os veículos, sobre o conjunto, e não sobre os ocupantes, que só desprezo por uma questão de princípio e não por razões pessoais. Pois não entendo nem nunca entenderei que se considere um prazer passar acelerando por todas as formas e objectos que o nosso belo planeta exibe, como se um ataque de loucura nos obrigasse a fugir para evitar cair num terrível desespero. De facto, amo a tranquilidade e o repouso. Amo a parcimónia e a moderação e sinto a mais profunda aversão pela pressa e pela precipitação. E não é preciso acrescentar mais nada à pura verdade. Não é por causa destas declarações que deixará de haver automóveis em circulação nem o correspondente mau cheiro que polui a atmosfera e que, seguramente, ninguém aprecia e defende. Seria mesmo antinatural que algum nariz inspirasse com gosto e satisfação aquilo que para qualquer nariz humano normal, mesmo atendendo às mudanças de humor, só pode ser revoltante e nauseabundo. Mas deixemos o assunto por aqui e continuemos com o passeio. Que prazer celestial, benéfico, ancestral e simples o andar a pé, desde que os sapatos e as botas estejam em bom estado!

Robert Walser, O Passeio (1917). Tradução de Fernanda Gil Costa.

5 de novembro de 2011

stoskopf


na pressa, disse ao peixeiro deixa que eu limpo. ao abrir o peixe abriu-se em mim o mais antigo livro ilustrado de anatomia animal. há tanto só supermercados em bandejas pedaços higienizados filmes plásticos brancos.
vísceras. também eu oculto.
um dos segredos da poesia é parecer ao outro que são suas as tripas que são minhas.

2 de novembro de 2011

cinquenta e seis

num dia vinte e três de outubro milhares de pessoas derrubaram uma estátua de seis toneladas. as estátuas – todos sabemos – não nos fazem mal. as ditaduras nos lembram que o percurso vale tanto ou mais que a chegada. o tempo passa, dou um laço que junta o fim ao começo. cinqüenta e cinco é um sopro. por dentro do sopro a vela em sua chama. a parafina fina cera de abelha um dia guardou mel. a flor vem da raiz. a raiz persiste. algumas, como algumas cigarras, adormecem quase décadas.

1 de novembro de 2011

como proceder ao encontrar animais feridos

primavera gelada e vento. olho pela janela e nada vejo. minha garganta rouca, os músculos imóveis. primavera céu azul e espero. espero. silenciosa. outubro quase sempre assim. nada posso. não estou triste. o ciclo vida morte vida de cada manhã. os filhos. somos sete bilhões e um espanto. há um cacho novo na bananeira. aos poucos me adaptei às saúvas. trocamos uns móveis de lugar. escrevo uma palavra por dia e parece demais.

20 de outubro de 2011

pouco a pouco

"as cinzas foram acomodadas numa mini-canoa caiçara lançada ao mar em chamas, à maneira viking. flutuou bem e ficou queimando por mais de uma hora, sob uma chuvinha fina, adentrando no mar e na noite."

19 de outubro de 2011

6 de outubro de 2011

senhora pereira

colocou nosso nome num papel na fresta da pedra.
nada de um lamento: muitas bênçãos.
deus dos exércitos? não, não. outro.
o que no princípio era o verbo e é mãe de todos que estamos cansados.

4 de outubro de 2011

no caminho, é...

"Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.

Lá vai São Francisco
De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos."

(Vinícius de Moraes e Paulo Soledade)

3 de outubro de 2011

um belo horizonte

exercício número um

"o que deus precisa saber

deus precisa saber que eu conto com ele,
que preciso dele,
que confio nele,

que ele pode contar comigo,
que precisa de mim,
que pode confiar em mim,

que não importa para que lado as coisas caminhem,
ele não pode se comportar como um diretor de banco,
como um senhor ministro ou uma miss universo,

que não importa para que lado as coisas caminhem,
eu não posso me comportar como um diretor de banco,
como um senhor ministro ou uma miss universo,

que eu não espero dele que passe o aspirador em todo canto,
que sacuda o pó dos tapetes, que pratique natação
e deixe de fumar,

que ele não espere de mim que eu passe o aspirador em todo canto,
que eu sacuda o pó dos tapetes, que pratique natação
e deixe de fumar,

que ele leve em conta que não é só do bem que vêm as coisas boas
que não queira ser perfeito,
nem queira que o mundo seja perfeito,

que eu levo em conta que não é só do bem que vêm as coisas boas,
e não quero ser perfeito,
nem quero que o mundo seja perfeito,

mas que tudo tem limite,
que ele não acredite que eu o deixarei esquecer
que há coisas irremediáveis,

que tudo tem limite,
que eu não acredito que ele me deixe esquecer
que há coisas irremediáveis,

e afinal se ele é nada para ninguém, com certeza
se deve consigo mesmo
para mim,

e afinal se eu sou nada para ninguém, com certeza
eu me devo comigo mesmo
para ele."

(Peter Kántor)

26 de setembro de 2011

mangas verdes

ele se virou para entender melhor quando ela disse que preferia não saber onde estavam os sapatos perdidos nem onde se pode comprar um bom azeite ou as opiniões das senhoras no mercado, que preferia nunca ter ouvido que houve um satélite a cair sobre o mundo, que preferiria esquecer o que disse nostradamus – era um livro na banca e há muitos anos ela pegou ao acaso para olhar e preferia não ter pego e não ter lido. uma vez quê, preferiria não se lembrar – e também não saber o que vai nas capas dos jornais e no recheio das salsichas. depois, bem depois, chorando ela gostaria de dizer que acompanhava cada movimento do vento no quintal e mesmo o quintal era um mundo muito grande para ela. por menor que seja o tamanho de quem morre, é a morte inteira que vem buscar. e a morte no mistério do nada e do tudo torna as coisas todas particularmente imensas e universalmente minúsculas, como nós.

23 de setembro de 2011

plural

"A condição poética

Como se tivesse em vez de olhos binóculos ao contrário, o mundo
se distancia e pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada
nada perde a clareza, fica mais denso.
Já tive antes momentos assim, escrevendo poemas, conheço então
a distância, a contemplação desinteressada, sei assumir
um eu que é não-eu, mas agora é sempre assim e me pergunto
o que significa isso, se entrei numa permanente condição poética.
As coisas difíceis antes, agora são fáceis, mas não sinto desejo
forte de transmiti-las por escrito.
Só agora estou sadio, e era doente, porque o meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria.
A cada momento o espetáculo do mundo é para mim de novo
surpreendente e tão cômico que não entendo como a literatura
podia querer dominá-la.
Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso
o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros?
Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que se olhasse, cairia. Virei, então,
agarrei-me nas asperezas da parede rochosa,
e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho."

(Czeslaw Milosz, tradução de Ana C. César e Grazyna Drabik)

21 de setembro de 2011

singular


“Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.”

(Hannah Arendt, A condição humana)

20 de setembro de 2011

em camadas


"são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia"

(Bénédicte Houart, daqui)

19 de setembro de 2011

onde estou

...
alice tirava o silêncio dos cantos da casa.
depois abria janelas. dizia está calor. está ouvindo os grilos?
aqui, é sempre calor, lili. sempre este insuportável calor. as cigarras. é de enlouquecer.
ela se levantava, afastava a cadeira, afagava o rosto do homem que amava e dizia venha vamos um pouco ali fora ver o céu. está todo estrelado.
não reconheço as constelações.
mas se deixava conduzir pela mão. olhavam o céu. sentiam o cheiro úmido de mato. ouviam os barulhos das casas vizinhas, os bichos nos quintais. uma brisa.
as cigarras que silenciavam.

***


donde estoy
alicia sacaba el silencio de las esquinas de la casa.
después abría ventanas. decía hace calor. ¿estas escuchando los grillos?
aqui, hace siempre calor, lili. siempre este insoportable calor. las cigarras. es como para enloquecer.
ella se levantaba, echaba para atrás la silla, acariciaba el rostro del hombre que amaba y decía, vamos a  un poco a fuera a ver el cielo. está todo estrellado.
no reconozco las constelaciones.
pero se dejaba llevar de la mano. miraban el cielo. sentían el olor húmedo de la hierba. oían el barullo de las casas vecinas, los animales en los patios. una brisa.
las cigarras que se callaban.
  
juan yanes, em sua maquina de coser palabras, traduziu para o castelhano.

14 de setembro de 2011

os faróis daqui não sinalizam ilhas nem silêncios

tenho a vista curta. e eu disse isso a ela. o céu desabava na cidade, não enxergo um palmo, veja. depois disso, havia guarda-chuvas de toda cor. a cidade profusão.
não entendo a língua também eu disse. meus ouvidos moucos e a cidade enlouquecida em sílabas tremas consoantes de anúncios incompreensíveis.
se a banda passasse eu nem saberia. que banda? ela perguntou.
sinto muito ou nem sinto nada não disse porque disso não saberia dizer a ela: a ponte entre o dentro e o fora perdi no último dos poemas que escrevi sentada à espera no metrô.
e porque ela não perguntou, não pude dizer do gosto que a cidade me deixa na boca – sabendo a açúcar e metal – as coisas que a ferrugem devora.
também não disse que há redomas. e então sou capaz de me mexer e estender a mão. verto sobre o mundo aquilo que não sou.
poderia ter dito sonhos sem nexo. o medo que tenho do mar no escuro.
não poderia, a cidade revirada em terremotos.
este momento.
selei.
e não há correios.

8 de setembro de 2011

o que a meteorologia não prevê

este ano as folhas novas chegaram antes que caíssem as antigas.
reparei porque ventou na porta de casa e eu saía. olhei para cima. isto deve dizer alguma coisa? que eu deveria estar atenta aos tempos? ou às folhas? ou à porta enquanto venta?
eu, no limiar: outra vez o dentro e o fora.
já consigo alguns diálogos, sabe, mas preciso de tempo pra sincronizar. todo o tempo o que eu preciso mesmo é de tempo: de um bom tempo: do tempo preciso de um tempo.
bom.

6 de setembro de 2011

aromas

aromas. aromas podem ser pequenas redomas que num instante nos protegem do mundo. no aroma do manacá sou outra vez uma menina que olha o sol da tarde debaixo de uma goiabeira. outra vez descobrindo as paredes caiadas e as sombras. cachorros que nos seguem em ruas desertas. na pequena redoma do manacá tudo é calmo. ninguém ouve nossas respostas. ninguém espera nossas perguntas. cássia eller canta e eu escrevo coisas de se jogar fora.

5 de setembro de 2011

amplidão

"Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espetáculo do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste."

(Fernando Pessoa)

2 de setembro de 2011

vamos combater a violência (ou visão de um ônibus num dia triste)

o homem me olha como olham os caranguejos do mercado na corda um pouco moribundos as presas peludas lentas na minha direção ela chora quando me diz e sou eu que estou atada sem poder sair mesmo que eu ligue no um oito um e me prometam absoluto sigilo o que eu faço se daquilo só eu sei e se souberem ele saberá que eu antes a corda me atravessasse e fosse eu nesse lodo desse balde esses olhos mortos fossem meus e os braços peludos em pinça e ela chora quando.

1 de setembro de 2011

e me rendo ao céu de setembro




Então eu disse com um sorriso que me amava:
"O céu, quando entra em mim, o vento não faz, voar, esses papéis"

(Ana Cristina César, Inéditos e dispersos)

30 de agosto de 2011

cristalizadas

escrevo como se fizesse casquinhas de laranja.
gosto delas. daquelas que acompanham café, sabe?
não é simples fazer destas casquinhas. é preciso cortar em quatro três ou quatro laranjas, tirar a parte de suco e bagaço, colocar as cascas de molho na água. elas devem ficar de molho durante dois dias e, no meio deste tempo, deve-se trocar a água duas vezes. depois de dois dias, é preciso escorrer as cascas, colocá-las em água fria, com uma pitada de sal. levá-las ao fogo. quando a água começar a ferver, é preciso contar quinze minutos, escorrer a água fervente. acrescentar água fria às cascas, uma pitada de sal, levar ao fogo, esperar ferver, deixar quinze minutos, escorrer a água. novamente água fria, o sal, ferver, quinze minutos, escorrer.
depois é preciso picar as cascas amolecidas em tiras mínimas. juntar uma xícara de açúcar e meia xícara de água e levar ao fogo. deixar ferver sem deixar de misturar para que a água evapore e as casquinhas se impregnem de açúcar por igual.
quando elas estiverem meio vitrificadas, é hora de escorrer as casquinhas numa peneira, depois envolvê-las em açúcar, espalhando-as num papel manteiga, para que sequem. ficam alguns dias secando. é preciso revirá-las no processo de secagem para que fiquem soltinhas: cada casquinha uma casquinha.
às vezes ficam duras demais. algumas vezes ficam moles demais. ou muito doces ou muito amargas. também acontece de queimarem na calda de açúcar ou que eu me esqueça delas no primeiro molho ou na primeira fervura. e se o tempo está úmido, são capazes de embolorar.
queria escrever como arroz feijão: tempera e cozinha ou cozinha e tempera. ou ainda como batatas: cozinha escorre tempera com sal, azeite. um tomate maduro que se corta em quatro e sal.
e que ficasse bom.

26 de agosto de 2011

no vento




...a janela dentro ou fora sempre era o infinito dentro que só se revela quando salvação alguma, quando o precipício é princípio e nele mesmo vôo. nele mesmo o caminho e pedras. a cada passo sua própria pequena alegria, na pequena pedra, no grão. o mistério.

24 de agosto de 2011

que caiba no bolso

sentia-se sozinho.
trago seu amor na palma da mão.
uma faixa. um número. exato.
ligou. mais caro do que supunha.
mas a ideia.
passou por muitos até que coube no seu bolso.
a amarração, apesar de barata, trouxe a mulher para viver ao seu lado.
a amarração, porque barata?, trouxe-a pela metade.
devo ter guardado o número nalgum bolso, ele pensou.
não encontrou.

o mau humor ocupa seus dias e o amor, a palma da mão.

23 de agosto de 2011

a cada dia


"a calma é irmã do simples e o simples resolve tudo...
mas tudo na vida, às vezes, consiste em não se ter nada..."

(renato teixeira)

15 de agosto de 2011

na porta da caverna

de manhã cuido cada palavra que se afasta. como pedras de polifemo, cada uma uma ovelha um sentimento esparso trazido do sonho. de noite, eu os recolho – os sentimentos – e guardo – as palavras – também as ovelhas não são as mesmas depois de um dia intenso nos pastos.

12 de agosto de 2011

lunar






o estilete desde dentro desveste cíclica uma película pequena morte a vida em seguida sangra e do avesso sou um mar morto vermelho numa pedra uma sereia num mirante nenhum pássaro no cais afundado no sangue um navio

11 de agosto de 2011

dois mil e seiscentos anos


Senhor Cogito medita sobre o sofrimento

Todas as tentativas de afastar
o assim chamado cálice de amargura -
pela reflexão
a frenética ação em favor dos gatos de rua
a respiração profunda
a religião -
fracassaram

é preciso aceitar
baixar manso a cabeça
não torcer as mãos
usar o sofrimento com medida e ternura
como uma prótese
sem falsa vergonha
mas também sem orgulho inútil

nada de brandir os restos da amputação
sobre a cabeça dos outros
nada de bater com uma bengala branca
sobre a janela dos saciados

beber o extrato de ervas amargas
mas não até o fim
guardar por precaução
algumas gotas para o porvir

acolhê-lo
mas ao mesmo tempo
diferenciá-lo de si
e se isso for possível
criar da matéria do sofrimento
uma coisa ou uma pessoa


jogar
com ele
sim
jogar
brincar com ele
com muito cuidado
como se brinca com uma criança doente
para arrancar-lhe por fim
com truques bobos
a sombra
de um sorriso

(Zbigniew Herbert. Tradução direta do polonês de Olga Kempinska e Carlito Azevedo.)


9 de agosto de 2011

milenar


estar no pensamento dela faz qualquer um deixar de se sentir um qualquer e se tornar antigo. antigo como só algumas pedras e um ou outro alguém conseguem ser.

7 de agosto de 2011

na raiz da água


"escrever de certo modo também é um exílio, um certo estrangeirismo que nos incita a criar raízes de palavras".

(fabiana jardim)

3 de agosto de 2011

couto magalhães

era o nome de uma rua. não sei quem foi. também não sei o que me fez lembrar das janelas cinzas tipo guilhotina. as duas folhas ficavam abaixadas, vidros cracolentos, e quem passasse na calçada não enxergaria o dentro do quarto. no chão de taco brincávamos de casinha: susis e ursos, um vidro grande de alfazema.
se a gente levantasse - não era fácil - as duas folhas da janela, poderia ver do outro lado da rua a casa onde morava o luiz fernando. dele, num aniversário, ganhei o meu primeiro asterix. entre os bretões.

2 de agosto de 2011

me liquido evaporo e choro


"O verdadeiro contacto entre os seres só se estabelece pela presença muda, pela aparente não-comunicação, pela troca misteriosa e sem palavras que se assemelha a uma prece interior."

(emil cioran, daqui)

1 de agosto de 2011

no ar


"Fazemos listas desde sempre, desde antes de escrever. Nenhum garoto precisa conhecer o alfabeto ou as regras de concordância para enumerar o que quer em seu aniversário.
Basta ele desejar e compreender que algo tão despótico quanto o desejo requer algum tipo de lógica. É essa a função da lista: colocar certa ordem no desejo. Uma ordem básica, simples, rudimentar, mas absolutamente decisiva. Porque, sem ela, o garoto (ou seja: nós) se perderia. Ficaria à mercê de duas imensidões oceânicas: a do seu próprio desejo (por definição ilimitado) e a de tudo o que o mundo tem para lhe oferecer.
Elementar e ao mesmo tempo milagrosa, a lista é a primeira maneira que temos de não naufragar no mundo e de não aceitá-lo como ele é. Serve para recortar o mundo, capturá-lo, deixar uma marca que fale de nós nele."

(alan pauls)