5 de setembro de 2019

sons de alinhavo


de vez em quando ela abria umas revistas burda, que tinha modelos e moldes de roupas, e perguntava qual? era mais comum quando o calor já estava e chegava o tempo do natal e do ano novo. eu e minha irmã olhávamos aquelas roupas todas, pesávamos, pensávamos, tomávamos a decisão. sempre equivocada do nosso ponto de vista porque a roupa quase sempre saía bem diferente daquilo que a gente estava vendo na foto.
mas entre a escolha e a (tantas vezes) frustração havia um caminho sempre mágico, cheio de expectativas, cumplicidades, discussões. a principal discussão era na loja de tecidos uma vez que a oferta jamais dava (e ainda hoje não dá) conta de sonhos e texturas. mesmo assim, era uma alegria levar o pacote fofinho pra casa, com linha da mesma cor e, se fosse o caso, botões e outros acabamentos.
e então nas noites, sobre a mesa vazia de depois do jantar, minha mãe colocava o tecido bem esticado e sobre ele os moldes que ela já tinha recortado em papel craft ou jornal, prendia o papel ao tecido com alfinetes de cabeça colorida, marcava com um giz de tecido e cortava. o barulhinho da tesoura cortando o tecido sobre a mesa de madeira é um dos sons mais reconfortantes pra mim (mesmo quando sou eu mesma quem corta, mesmo quando não uso moldes e vou na raça inventando coisas de vestir).
o som seguinte vinha associado a um perfume de óleo de máquina. o tec tec tec tec tec e pausa, tec tec tec tec tec tec tec tec e pausa, tec tec tec e pausa, tec tec tec tec tec tec tec tec tec, clac, troc. e tudo de novo tec tec tec tec tec... eram as grandes costuras.
depois era a vez das costuras menores, os acabamentos, o colocar do avesso para re-alfinetar, alinhavar, deixar marcadas as casas dos botões. e este é outro barulho que me enternece: a agulha abrindo espaço entre a trama do tecido, fino, pra passar a linha, numa delicadeza que não deixa de ser áspera, violenta, um som sussurrante, um movimento repetitivo, um movimento mântrico, rascante, seria um som silencioso se houvesse barulho em volta, mas, em geral, não há barulho nas horas em que ela costura (em que eu costuro) agulha, fio, detalhe.
em algumas épocas ela fazia as roupas com todos os detalhes previstos na revista. outras vezes, não. antes eu não entendia o porquê. agora entendo.
não leio revistas de moda. invento roupas como quem inventa textos e em algumas épocas uso  palavras sem molde, dispenso os detalhes, o alinhavo, o acabamento. mesmo longe, minha mãe aqui perto, cada uma em seu mundo, cada uma em sua máquina, em seus próprios panos e linhas, vamos nos dando ânimos e broncas. sei que de algum modo sempre partilhamos agulha e tecedura. outras vezes, silêncios.

3 comentários:

Edu Covas disse...

Descia ao quartinho no quintal, entrava em mundos que não eram meus mas onde eu transitava confortável, o galpão que dava para nosso quintal tocando batuques de umbanda, tanto que minha mãe já cantava junto. E as costuras, e máquinas, e cheiros.........

v. paulics disse...

lembro tão bem da tua mãe. a risada larga e os biscoitinhos de polvilho na cozinha onde o sol entrava amplo e amarelo.

Luciana disse...

Nossa, a lembrança do barulho - que percebo reconfortante, aqui contigo - da tesoura, pano e mesa me transportou a um passado infantil... gratidão