27 de março de 2020

cidade fantasma


todas as noites às oito, batemos palmas nas janelas ou balcões dos apartamentos. a ideia é reconhecer o trabalho do pessoal da saúde que está na linha de frente para atender as vítimas do vírus e também para reter sua disseminação, mas eu penso também em todo mundo que está trabalhando porque são serviços que não podem parar. reconheço a importância de todas estas pessoas, mentalmente agradeço. bato palmas. mas sei que sair nas janelas e balcões em uma hora definida do dia é um jeito da gente se ver e fazer uma espécie de catarse coletiva. de dizermos uns para os outros que sentimos falta de estarmos juntos e próximos. e é bonito ver como vão se acendendo luzes e as pessoas vão aparecendo nas janelas, sozinhas, em dois, três, e batem palmas, há quem toque algum instrumento, alguém põe uma música feliz. dura no máximo cinco minutos. todos que eu vejo são desconhecidos, mesmo assim, dá um calorzinho no coração. um sentimento de seguir fazendo parte de uma humanidade mais ampla, que ultrapassa o vínculo familiar e próximo.
este sentimento de fazer parte ficou mais forte hoje quando fui ao supermercado. estava ansiosa e me preparei desde ontem para sair. foram 12 dias sem sair para nada, só vendo de longe esses vizinhos dos aplausos, essas luzes que a gente é sem nem se dar conta. cheguei a pensar em fazer uma volta maior para aproveitar bem o caminho até o supermercado, sempre do lado ensolarado. mas bastou por o pé na calçada e ver a cidade fantasma para me fazer mudar de ideia e seguir direto pra onde eu tinha que ir: comprar comida.
não tinha fila. nem tinha a alegria própria dos mercados. cada um buscando manter o metro recomendado de distância, luvas, máscaras, e de vez em quando cruzar o olhar com algum conhecido. dois minutos passando ali entre as prateleiras e eu já chorava. de alegria de ver a vida seguir pulsando, mas também chorando pela impotência diante do caos que tudo isso está acentuando no mundo. as desigualdades, a pobreza, a falsa ideia de que mais controle sobre nossas vidas evitaria este tipo de situação. tudo isso misturado me encheu e me enche os olhos de lágrimas.
me organizei por dentro, pra conseguir ler a lista e fazer a compra rapidinho.  
cheguei em casa num misto de alívio e vazio. alívio de ter casa e, nela, as pessoas que amo tanto. e este vazio, o de não saber bem o que fazer com tudo isso. porque fazer parte da humanidade não é seguir vivendo como viemos vivendo. é fazer o quê?
e quem é que sabe?

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