26 de março de 2020

murados


conversamos sobre figuras de linguagem. metáforas metonímias aliterações jogo de palavras paradoxos. em geral, as metáforas são usadas para representar todo esse universo. basta falar em poesia, por exemplo, e já vem a rima de amor com flor. terra e guerra. guerra.
a metáfora da guerra não tem saído do meu pensamento. dou voltas, quero escapar disso, e ela volta. talvez por vir de uma família que nasce do que a guerra provoca – para o bem e para o mal. não sei. olho em volta, vejo as pessoas, leio as notícias e isso: guerra. falo com minha mãe e ela também me diz: guerra. o medo de que nos falte comida, esta incerteza, a suspensão da vida em seu fluxo. mas não há bombas. é o silêncio que domina as ruas. e, ao contrário de fugir de casa, é preciso que permaneçamos. uma guerra às avessas ainda é guerra?
então me chega o texto de daniel innerarity. a guerra não é uma boa metáfora, ele diz. não há um inimgo. ou, melhor, somos nós os nossos próprios inimigos. porque o vírus não é bom nem mau. ele existe e é o nosso modo de vida que talvez nos deixe debilitados diante dele. talvez a nossa lógica política masculina, que não se preocupa com o cuidado de uns com os outros, é que nos leve à morte. às muitas mortes. porque o vírus é só uma gotícula de gordura (que qualquer sabão dissolve) com um dna dentro, que busca uma célula para estar vivo. a nossa célula. não se pode matar todos os vírus. é preciso não dar espaço para ele. que o nosso jeito de viver não dê espaço para isso que é invisível e pode estar em todas as partes.
pensar no que é invisível e pode estar em todas as partes, me faz voltar para as figuras de linguagem, para as metáforas. penso que é assim que se fala do deus: o invisível que pode estar em todas partes. e senhor dos exércitos, neste caso, se junto as duas metáforas. tudo me fala de combate. de guerra. de esperar que deus me eleja e me salve, ainda que mate o vizinho. não quero combater, não quero ser eleita, não quero um senhor.
sei que a poesia não nos salva de nada. mas pode iluminar o que não está encontrando a luz. um dos livros de gemma gorga, poeta catalana, se chama muro. se subdivide em três partes, muradas, murta e murmúrio. murmúrio  não precisa explicação. murta é uma planta de flor muito perfumada. muradas é que me surpreende: “as muradas eram mulheres que se enclausuravam por toda a vida em uma cela construída no entorno do corpo e ancorada em geral no muro de uma cidade, igreja ou mosteiro; mantinham-se das esmolas que as pessoas lhes passavam por uma pequena janela, dedicavam-se à contemplação e exerciam uma função pública de conselho a quem as visitava. é um fenômeno urbano, claramente delineado no século xii, que perdurou durante o resto da idade média”, gorga citando rivera garretas.
mais que qualquer metáfora, penso nestas três palavras juntadas num muro – muradas murmúrio e murta. penso em que corpo humano queremos construir, que nos dê imunidade, que se permita abraços. mais que metáfora, a concretude de aceitar, contemplar e aconselhar, em meio ao murmúrio desta primavera. e aconchego para todos que estamos tão cansados.

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