31 de março de 2020

onde a vista alcança


é o medo da morte que nos faz ficar em casa.
por mais voltas que dê meu pensamento, é nesta conclusão que chego. a morte é a única força que nos imobiliza tão rapidamente.
aqui, por exemplo, nos primeiros dias ainda passava um carro de polícia chamando a atenção de quem estava na rua. mas, agora, faz tempo que não passa ninguém. nem por isso as pessoas saem. não acho que seja solidariedade, não. acho que é medo, mesmo. da morte.
as notícias são suficientemente vagas e aterrorizantes para deixar claro que o vírus pode atingir qualquer um, que as estatísticas procuram explicar em que casos é uma doença fatal, mas de vez em quando aparecem as exceções e fica mais do que óbvio que todos podemos ser alcançados e não haverá lugar suficiente nos hospitais. daí que o nosso medo de que os hospitais fiquem superlotados é o medo de precisarmos de hospital e não encontrarmos lugar. nós e nossos .... (e no lugar dos pontinhos você pode completar com filhos, pais, amigos, irmãos...) como costuma ser a solidariedade: alcança as pessoas que estão de alguma forma no nosso entorno.

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penso na trilogia do kieslovski: azul, vermelho e branco. (no brasil ficou conhecida por a liberdade é azul, a igualdade é branca e a solidariedade é vermelha. ou alguma coisa assim.) gosto sempre de ver os três filmes em sequência e na ordem em que foram feitos. por mais vezes que já tenha visto os filmes, sempre que chego no final do vermelho, me dou conta do quanto  kieslovski me desmonta e me expõe à minha pequenez: como todos os personagens conhecidos se salvam, a sensação que se tem é de um final feliz, e não nos importamos com a mega tragédia que mata milhares de pessoas, que não conhecemos. quando a gente sonha algumas coisas “para o mundo” em geral sonha só até onde a vista alcança.
esse momento em que cada um de nós está trancado num quadrado e vendo só o que as telas nos deixam ver,  me dá um pouco de claustrofobia, porque a vista alcança pouco.

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uma amiga me escreve que agora, que não sai de casa, tem todo o tempo do mundo para olhar as plantas e assim pode acompanhar uma folhinha de manjericão crescendo aqui, um galinho de hortelã ali.
é, talvez seja tempo pra isso, mesmo, ver o que cresce em surdina. e se ficássemos todos em silêncio saberíamos o som do crescer das nossas unhas e cabelos. muito além de onde a vista alcança.

suspiro.

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