29 de junho de 2020
caixas, caixas e mais caixas
17 de junho de 2020
muda
gosto de fazer caixas como gosto de fazer malas: sem gostar.
a perspectiva de ver e viver o mundo desde um outro ponto de vista sempre me deixa excitada. também a ideia de tirar todas as coisas dos seus cantos, desempoeirar a memória das mil coisas que somos capazes de guardar, também disso eu gosto.
mas ir embora de um lugar, sabendo que o lugar deixa de ser o que foi, que nunca mais voltará a ser porque nunca há volta, isso, tudo isso me deixa um pouco sem ar, me desconforta.
ao mesmo tempo que vou fazendo caixas e malas, vou me despedindo das paredes e janelas, das vistas e dos sons, do desenho dos passos quando vão à cozinha buscar água, da luz da tarde que bate nos móveis e na louça que escorrre. nada disso se repetirá. e até as coisas que eu não gosto numa casa, numa rua, num país, até estas coisas vão me deixar saudade.
antes, não sabia disso com tanta clareza. olhava para o que vinha, carregava tudo comigo, atravessando a correnteza dos rios, subindo caminhos escarpados, me metendo nas selvas para chegar. chegar aonde? carregar o mundo cansa. não carregar nada é um exercício. ser nômade não quer dizer que não se sinta saudade, que não se lembre. é outra coisa. que não sei ainda muito bem o que seja. pode ser que um dia saiba.
exercito meu nomadismo fazendo caixas e malas. gostando sem gostar.
separo papeis pra reciclar.
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quase todas as plantas serão fáceis de carregar de um lugar para o outro. mas um dos tomateiros cresceu rápido e já tem três tomates. tenho quase certeza de que vai se quebrar. nem quero que ele se quebre, nem quero deixar aqui um tomateiro sozinho, depois de ter crescido em multidão entre as sementes de um só tomate, como uma ninhada de gato, rato, cachorro. uma criança e seus irmãos.
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um confinamento não se acaba de um dia para o outro. não há decreto que faça a vida voltar à rotina anterior.
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já sinto falta dos silêncios que havia nas ruas.
8 de junho de 2020
6 de junho de 2020
cuidados
gostaria de
dizer que não me importo, que não estou nem aí, que vivo a oito mil quilômetros e um mar de distância, que agora meu pensamento está em outro lugar, mas não
seria verdade. o mundo é pequeno, todo interconectado e minhas raízes, mesmo
que aéreas, nasceram num tempo e num espaço bem específicos e há afeto
envolvido também, há a família, os amigos e as pessoas que nem sendo famíia nem
estando entre os amigos têm algum vínculo com nosso jeito de olhar a vida, de
cantar a língua e o amor, de se saudar na alegria, de se esconder na tristeza.
temos o mesmo jeito de abraçar e convidar os amigos para tomar um café em casa.
e tomamos cafés nas casas. e somos tantos tão parecidos. e eu me importo.
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não consigo escrever sobre o miguel, o menino de cinco anos. nem sobre sua mãe. nem sobre a patroa ou o cachorro ou o elevador. sobre negritude, branquitude, escravidão, desespero. desamparo. era uma criança de cinco anos!
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ontem fui ao dentista. como é longe, peguei um ônibus. antes de sair de casa, verifiquei a densidade daquele momento, os horários, as precauções. preferi o ônibus que faz ponto final perto de casa. quase subi pela porta da frente, mas me lembrei que agora, por estes dias, a porta da frente e o motorista estão isolados por uma espécie de cabine de plástico e nós subimos pela porta do meio, ou pela porta de trás, por onde também descemos. o ônibus parou em vários pontos, pessoas subiram, outras desceram. a partir de um momento em que a lotação era não sei quantas, mas o suficiente para mantermos a distância protocolar entre nós, passageiros, o motoristas só parou no ponto onde alguém ia descer. nos outros, sinalizava lotação máxima para estes tempos de exceção. um motorista para vinte pessoas. na volta, foi a mesma coisa. nos últimos três pontos, eu era a única passageira. um motorista plastificado.
se aqui perto de casa já me surpreende a quantidade de gente que passa de lugar algum para nenhum lugar, perto do dentista, quase tive medo de andar na calçada, de tanta gente. por um lado, achei um pouco assustador. por outro, é de uma alegria tão expansiva ver as pessoas no final da tarde indo comprar pão, passeando o cachorro, brincando com as crianças nos parques, ocupando as mesas dos cafés nas calçadas. o espaço do encontro. retomar o encontro, relembrá-lo, fazê-lo reviver.
a partir de amanhã já poderemos ir à praia mesmo que não seja para uma atividade esportiva. até às dez.
estes dias, em que a vida retoma algum ruído e movimento, é como se não tivéssemos ficado atados às nossas casas por quase três meses. é um pouco como no dia seguinte ao enterro e por um instante a gente pensa que ninguém morreu, que tudo não passou de um sonho estranho, um pesadelo que mais anuncia que revela, e por não revelar deixa a tensão sempre no ar, esticando uma corda imaginária, que terá que se romper em algum momento e quando se romper queremos estar preparados para não levarmos o susto, e esta tensão é o pesadelo, mesmo que não venha o momento da ruptura. a ruptura é em etapas minúsculas, quase imperceptíveis. quando a gente se afasta por um tempo e volta a olhar é que vê que há, sim, um vão, uma greta, fenda, abismo.
e quando se instala o abismo, entre o que éramos e não somos mais, é que bate a frustração. devia ter feito isso aquilo aquiloutro. poderia ter dito isso ou ter dito nada. queria. mas já não é possível, o que havia já não há: pessoa, situação, férias, pandemia. passou. e agora o quê? e agora quem é que eu sou? já não sendo aquela anterior ao abismo. sou outra?
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alguém comenta: gosto mais de festa junina que de carnaval. e fico tão feliz por ler na boca de outra pessoa o que sempre esteve difuso no meu pensamento. eu também gosto muito mais de festa junina que de carnaval. de carnaval tenho uma memória mais ou menos boa. já de festas juninas, a memória se amplia e se desdobra, dança quadrilha, come paçoca e pipoca, pões vestido de flor, pinta as unhas de vermelho, vira noiva, vira padre, pula fogueira, solta traque, pinta bigode na cara dos meninos, deixa a noite ir pra manhã chegar, passa ponte, foge de cobra, se cobre da chuva.
a alegria das festas juninas desde tão pequena. uma vez, na chácara da amiga no meio do círculo do bambuzal. era tudo tão bonito. minha mãe sabe fazer um vinho quente maravilhoso. e faz amendoim cricri também. um fica perfumado, o outro fica crocante.
quando eu tinha seis anos, éramos vizinhos de uma família que fazia festa junina no quintal, reunindo as pessoas do bairro. uns dias antes da festa começava o ensaio. lembro dos ensaios. eu era baixinha, ia no começo da fila. o duto era alto, era o último. e em algum momento, a gente formava um par, e ele me pegava no colo pra dançar comigo. no quintal da casa onde era a festa, tinha um carro velho sem motor, e eu sonhava um dia ter um quintal daquele jeito. e fazer uma festa junina, com quentão, fogueira e quadrilha.
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minha mãe gosta muito de dançar. ela dança tudo. dança carnaval, dança quadrilha, dança bolero, valsa, forró. sei que o que ela mais sente falta nestes tempos de quarentena é de encontrar o grupo para dançar. dançar sozinho também é bom, mas não é a mesma coisa.
...
de maneira quase cíclica, sempre chega o dia em que a palavra míngua e, encolhida num canto, não quer dizer nada. e fica ali, quieta, muda. e eu fico aqui, ao lado, em silêncio, a ver se ela me diz alguma coisa. se houver barulho, e ela chamar, não vou ouvir. então, espero. sempre espero. e um dia ela volta a dizer. e eu volto a escutar.
5 de junho de 2020
nos falta ar
4 de junho de 2020
ã?
tenho uma planilha de excel em que anoto tudo o que comemos a cada dia, semana, desde que estamos nesta quarentena.
registrar o que comemos em cada almoço e jantar é como deixar registrado de forma organizada que a vida seguiu.
talvez seja tudo muito falso. e talvez não signifique nada para os escafandristas, como quando olhávamos a lista que não existe mais dos registros do meu avô com o nome de todos os cavalos e de tudo o que se gastou para cuidá-los e alimentá-los. aqueles cavalos foram o salvo-conduto deles. os cavalos salvos no meio de uma guerra que não poupava as pessoas.
o tempo da quarentena não nos poupa de nada. tudo o que vivemos e deixamos de viver ficará marcado sem papeis e sem listas. talvez até sem muita memória, alguma coisa difusa de dias que pareciam todos interminavelmente iguais, exceto o domingo. apesar destes pensamentos, alimento os meus e registro em listas o que comemos, guardamos os tiquetes de compra do supermercado. os tiquetes, diferente das minhas planilhas de excel guardadas no computador, desaparecem com o passar dos anos. não os tíquetes, nem o papel, claro, o que desaparece é o que vai escrito neles.
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um tigre de sumatra apareceu morto. de fome. há poucos no mundo. uns seiscentos. penso em seiscentas pessoas, como se isso fosse tudo, toda a humanidade. e fico triste por mim, pela humanidade, pelo tigre.
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quando viemos morar aqui, e precisávamos resolver alguma coisa por telefone, e ligávamos para estes serviços que dizem para isso tecle tal para aquilo tecle não sei que, em algum momento a mensagem dizia tecle o número “y pulse la tecla amarilla”. meu telefone não tem tecla amarela nenhuma. virei e revirei outros telefones e nada de tecla amarela. era o meu segundo desespero. o primeiro era entender o que me diziam por telefone nestas línguas para mim estrangeiras.
um dia, perguntei para um amigo no instagram o que queria dizer não sei o quê. ele explicou. e comentou que quando não sabia alguma coisa, dava um google. como eu não tinha pensado nisso?! dei um google em tecla amarilla. e pasmei. não era amarilla a tal tecla, era almohadilla. “y pulse la tecla almohadilla”, que é a tal tecla do jogo da velha.
tanto tempo para descobrir uma coisa tão besta. calculei mentalmente quanto tempo teria economizado na vida sem ter que esperar o atendente por não saber que tecla apertar.
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o primeiro tomateiro já tem duas pérolas verdes. a vida cumprindo promessas. uma amiga querida vai ser avó. às vezes, no meio do dia, paro para pensar na alegria dela. que também é minha.