6 de junho de 2020

cuidados

gostaria de dizer que não me importo, que não estou nem aí, que vivo a oito mil quilômetros e um mar de distância, que agora meu pensamento está em outro lugar, mas não seria verdade. o mundo é pequeno, todo interconectado e minhas raízes, mesmo que aéreas, nasceram num tempo e num espaço bem específicos e há afeto envolvido também, há a família, os amigos e as pessoas que nem sendo famíia nem estando entre os amigos têm algum vínculo com nosso jeito de olhar a vida, de cantar a língua e o amor, de se saudar na alegria, de se esconder na tristeza. temos o mesmo jeito de abraçar e convidar os amigos para tomar um café em casa. e tomamos cafés nas casas. e somos tantos tão parecidos. e eu me importo.


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não consigo escrever sobre o miguel, o menino de cinco anos. nem sobre sua mãe. nem sobre a patroa ou o cachorro ou o elevador. sobre negritude, branquitude, escravidão, desespero. desamparo. era uma criança de cinco anos!


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ontem fui ao dentista. como é longe, peguei um ônibus. antes de sair de casa, verifiquei a densidade daquele momento, os horários, as precauções. preferi o ônibus que faz ponto final perto de casa. quase subi pela porta da frente, mas me lembrei que agora, por estes dias, a porta da frente e o motorista estão isolados por uma espécie de cabine de plástico e nós subimos pela porta do meio, ou pela porta de trás, por onde também descemos. o ônibus parou em vários pontos, pessoas subiram, outras desceram. a partir de um momento em que a lotação era não sei quantas, mas o suficiente para mantermos a distância protocolar entre nós, passageiros, o motoristas só parou no ponto onde alguém ia descer. nos outros, sinalizava lotação máxima para estes tempos de exceção. um motorista para vinte pessoas. na volta, foi a mesma coisa. nos últimos três pontos, eu era a única passageira. um motorista plastificado.

se aqui perto de casa já me surpreende a quantidade de gente que passa de lugar algum para nenhum lugar, perto do dentista, quase tive medo de andar na calçada, de tanta gente.  por um lado, achei um pouco assustador. por outro, é de uma alegria tão expansiva ver as pessoas no final da tarde indo comprar pão, passeando o cachorro, brincando com as crianças nos parques, ocupando as mesas dos cafés nas calçadas. o espaço do encontro. retomar o encontro, relembrá-lo, fazê-lo reviver.

a partir de amanhã já poderemos ir à praia mesmo que não seja para uma atividade esportiva. até às dez.

estes dias, em que a vida retoma algum ruído e movimento, é como se não tivéssemos ficado atados às nossas casas por quase três meses. é um pouco como no dia seguinte ao enterro e por um instante a gente pensa que ninguém morreu, que tudo não passou de um sonho estranho, um pesadelo que mais anuncia que revela, e por não revelar deixa a tensão sempre no ar, esticando uma corda imaginária, que terá que se romper em algum momento e quando se romper queremos estar preparados para não levarmos o susto, e esta tensão é o pesadelo, mesmo que não venha o momento da ruptura. a ruptura é em etapas minúsculas, quase imperceptíveis. quando a gente se afasta por um tempo e volta a olhar é que vê que há, sim, um vão, uma greta, fenda, abismo.

e quando se instala o abismo, entre o que éramos e não somos mais, é que bate a frustração. devia ter feito isso aquilo aquiloutro. poderia ter dito isso ou ter dito nada. queria. mas já não é possível, o que havia já não há: pessoa, situação, férias, pandemia. passou. e agora o quê? e agora quem é que eu sou? já não sendo aquela anterior ao abismo. sou outra?

 

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alguém comenta: gosto mais de festa junina que de carnaval. e fico tão feliz por ler na boca de outra pessoa o que sempre esteve difuso no meu pensamento. eu também gosto muito mais de festa junina que de carnaval. de carnaval tenho uma memória mais ou menos boa. já de festas juninas, a memória se amplia e se desdobra, dança quadrilha, come paçoca e pipoca, pões vestido de flor, pinta as unhas de vermelho, vira noiva, vira padre, pula fogueira, solta traque, pinta bigode na cara dos meninos, deixa a noite ir pra manhã chegar, passa ponte, foge de cobra, se cobre da chuva.

a alegria das festas juninas desde tão pequena. uma vez, na chácara da amiga no meio do círculo do bambuzal. era tudo tão bonito. minha mãe sabe fazer um vinho quente maravilhoso. e faz amendoim cricri também. um fica perfumado, o outro fica crocante.

quando eu tinha seis anos, éramos vizinhos de uma família que fazia festa junina no quintal, reunindo as pessoas do bairro. uns dias antes da festa começava o ensaio. lembro dos ensaios. eu era baixinha, ia no começo da fila. o duto era alto, era o último. e em algum momento, a gente formava um par, e ele me pegava no colo pra dançar comigo. no quintal da casa onde era a festa, tinha um carro velho sem motor, e eu sonhava um dia ter um quintal daquele jeito. e fazer uma festa junina, com quentão, fogueira e quadrilha.

 

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minha mãe gosta muito de dançar. ela dança tudo. dança carnaval, dança quadrilha, dança bolero, valsa, forró. sei que o que ela mais sente falta nestes tempos de quarentena é de encontrar o grupo para dançar. dançar sozinho também é bom, mas não é a mesma coisa.

6 comentários:

Maria Eu disse...

Tempos estranhos, estes, V.!

Um abraço português

v. paulics disse...

muito estranhos, maria, muito estranhos.
daqui vai um abraço brasileiro-catalão

Marianna Tosca Ferrari disse...

De festa junina lembrava de vergamota (mexerica).
E hoje quando sinto cheiro de vergamota, vem com ela toda a festa.

fabiana jardim disse...

Suas raízes aéreas <3 por aqui, tudo ainda em suspensão, sem que seja possível estimar quando aterrizaremos o pé no chão, quando saberemos finalmente a extensão e a fundura do fosso e quem seremos, quem teremos ao lado, quem será preciso chorar. Saudade de você, de vocês. Um beijo enorme.

v. paulics disse...

memória de cheiros, marianna, os cítricos no inverno e o milho verde cozinhando na água com uma pitada de açucar: noite de são joão. a mais linda de sempre.

v. paulics disse...

fabi, nem me fale em fosso e fundura. e o tanto que se tem chorado! e esta saudade.