5 de junho de 2020

nos falta ar

amanheço e leio as notícias e as notícias são tão desamparadoras, tristes, tiram meu ar metafórico, penso no que a branquitude gerou no mundo, me sinto mal, me reviro, é tão pouco o que faço. tanta gente sem ar de verdade. sem ar. miguel cinco anos. estatelado no chão do mundo.

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estes dias, leio krenak e kopenawa.
leio mulheres.
leio o que não é branco.
leio aqueles que não têm ar.

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aqui, pouco a pouco, a vida pulsa nas ruas, nas calçadas, nos bares.

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 vi imagens dos bunkers para ricos que há nos estados unidos. olho aquilo e me pergunto: pra quê?

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meu dente do siso dói. a dor chegou devagarinho, a gente mal se dá conta da dor chegando. e um dia ela está instalada, impede pensamento, impede concentração. não deixa dormir nem comer nem achar graça em nada. quando tudo anda sem graça é pior ainda. o analgésico faz efeito, a gente esquece da dor. ou quase esquece. depois ela volta. e cada vez que volta, vem pior. os dias seguem.
nem tudo é abismo.

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um papagaio veio visitar nossa casa.
dia desses, apareceu do nada, deu uns beijos na barba do meu amor e foi embora.
contando assim parece simples e rápido. mas foi tudo muito lento, enquanto eu dormia. durmo muito. durmo cedo, acordo tarde. enquanto isso, um papagaio pousou no muro da varandinha, ricardo olhou, o papagaio olhou de volta. e ficaram assim um tempo olho no olho, diz ele, o ricardo, não o papagaio. o papagaio não me disse nada diretamente.  só vi o papagaio por fotos e vídeo.
então, eles ficaram ali, se olhando. ricardo começou a fazer umas fotos e, pelo visto, o papagaio gosta de fotos. se deixou fotografar. e veio caminhando pela mureta até chegar bem perto de onde o ricardo estava sentado. tudo isso registrado em fotos. e então o papagaio passou para o ombro do ricardo, e começou a dar umas bicadinhas, como quem beija, na barba dele. a partir do momento em que passou a estar com o papagaio no ombro, ricardo começou a fazer o que nunca faz: umas selfies. ele e o papagaio. em algumas, eles têm a mesma expressão de olhar, ou o mesmo gesto com a cabeça. e quando o papagaio continuou dando bicadinhas no rosto, metendo o bico no meio da barba, ricardo fez um videozinho. e estavam ali integrados e felizes, homem e papagaio, quando de repente o papagaio fez barulho de papagaio e voou.
foi o tema do dia. o papagaio que veio visitar o ricardo. e as fotos e os vídeos. e a alegria no olhar humano. de papagaio não entendo muito, mas devia estar feliz também.
mas não voltou. no dia seguinte nem depois.
aqui perto há uma praça em que sempre chegam e saem bandadas de papagaios. bandadas de papagaio me lembra um poema do benjamin péret.

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criamos modos de estar no mundo a partir do território que ocupamos. que modos de estar estamos criando a partir do momento que ficamos tão presos ao território mínimo da casa, convivendo sempre com os mesmos? que mundo hostil estamos criando nesse momento em que só pensamos em sobreviver?

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nem toda galáxia gira simetricamente.

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