17 de junho de 2020

muda

gosto de fazer caixas como gosto de fazer malas: sem gostar.

a perspectiva de ver e viver o mundo desde um outro ponto de vista sempre me deixa excitada. também a ideia de tirar todas as coisas dos seus cantos, desempoeirar a memória das mil coisas que somos capazes de guardar, também disso eu gosto.

mas ir embora de um lugar, sabendo que o lugar deixa de ser o que foi, que nunca mais voltará a ser porque nunca há volta, isso, tudo isso me deixa um pouco sem ar, me desconforta.

ao mesmo tempo que vou fazendo caixas e malas, vou me despedindo das paredes e janelas, das vistas e dos sons, do desenho dos  passos quando vão à cozinha buscar água, da luz da tarde que bate nos móveis e na louça que escorrre. nada disso se repetirá. e até as coisas que eu não gosto numa casa, numa rua, num país, até estas coisas vão me deixar saudade.

antes, não sabia disso com tanta clareza. olhava para o que vinha, carregava tudo comigo, atravessando a correnteza dos rios, subindo caminhos escarpados, me metendo nas selvas para chegar. chegar aonde? carregar o mundo cansa. não carregar nada é um exercício. ser nômade não quer dizer que não se sinta saudade, que não se lembre. é outra coisa. que não sei ainda muito bem o que seja. pode ser que um dia saiba.

 exercito meu nomadismo fazendo caixas e malas. gostando sem gostar.

separo papeis pra reciclar.

 

***

 

quase todas as plantas serão fáceis de carregar de um lugar para o outro. mas um dos tomateiros cresceu rápido e já tem três tomates. tenho quase certeza de que vai se quebrar. nem quero que ele se quebre, nem quero deixar aqui um tomateiro sozinho, depois de ter crescido em multidão entre as sementes de um só tomate, como uma ninhada de gato, rato, cachorro. uma criança e seus irmãos.

 

***

 

um confinamento não se acaba de um dia para o outro. não há decreto que faça a vida voltar à rotina anterior.

 

***

 

já sinto falta dos silêncios que havia nas ruas.

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