4 de junho de 2020

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tenho uma planilha de excel em que anoto tudo o que comemos a cada dia, semana, desde que estamos nesta quarentena.

registrar o que comemos em cada almoço e jantar é como deixar registrado de forma organizada que a vida seguiu.

talvez seja tudo muito falso. e talvez não signifique nada para os escafandristas, como quando olhávamos a lista que não existe mais dos registros do meu avô com o nome de todos os cavalos e de tudo o que se gastou para cuidá-los e alimentá-los. aqueles cavalos foram o salvo-conduto deles. os cavalos salvos no meio de uma guerra que não poupava as pessoas.

o tempo da quarentena não nos poupa de nada. tudo o que vivemos e deixamos de viver ficará marcado sem papeis e sem listas. talvez até sem muita memória, alguma coisa difusa de dias que pareciam todos interminavelmente iguais, exceto o domingo. apesar destes pensamentos, alimento os meus e registro em listas o que comemos, guardamos os tiquetes de compra do supermercado. os tiquetes, diferente das minhas planilhas de excel guardadas no computador, desaparecem com o passar dos anos. não os tíquetes, nem o papel, claro, o que desaparece é o que vai escrito neles.

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um tigre de sumatra apareceu morto. de fome. há poucos no mundo. uns seiscentos. penso em seiscentas pessoas, como se isso fosse tudo, toda a humanidade. e fico triste por mim, pela humanidade, pelo tigre.

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quando viemos morar aqui, e precisávamos resolver alguma coisa por telefone, e ligávamos para estes serviços que dizem para isso tecle tal para aquilo tecle não sei que, em algum  momento a mensagem dizia tecle o número “y pulse la tecla amarilla”. meu telefone não tem tecla amarela nenhuma. virei e revirei outros telefones e nada de tecla amarela. era o meu segundo desespero. o primeiro era entender o que me diziam por telefone nestas línguas para mim estrangeiras.

um dia, perguntei para um amigo no instagram o que queria dizer não sei o quê. ele explicou. e comentou que quando não sabia alguma coisa, dava um google. como eu não tinha pensado nisso?! dei um google em tecla amarilla. e pasmei. não era amarilla a tal tecla, era almohadilla. “y pulse la tecla almohadilla”, que é a tal tecla do jogo da velha.

tanto tempo para descobrir uma coisa tão besta. calculei mentalmente quanto tempo teria  economizado na vida sem ter que esperar o atendente por não saber que tecla apertar.

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o primeiro tomateiro já tem duas pérolas verdes. a vida cumprindo promessas. uma amiga querida vai ser avó. às vezes, no meio do dia, paro para pensar na alegria dela. que também é minha.


 

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