11 de fevereiro de 2021

o silêncio pesado nos ouvidos

 


dia desses, cheguei nesta imagem do debret. não é a primeira vez que ela passa diante dos meus olhos. mas talvez seja a primeira vez que ela mergulha em mim. incômoda, fico pensando no que viveu cada um destes personagens. penso na mulher que caminha pesada, o filho agarrado à sua perna, penso no homem com as três crianças, a menor sobre o ombro, e as outras duas ali de alguma maneira buscando proteção. o medo, o ser arrastado sabe-deus-pra-onde. a distância dos parentes, o afastamento da terra que era conhecida. e nada de terra prometida com leite e mel à frente. não. à frente vai um homem armado. atrás vão outros homens. armados. um deles carrega um pássaro abatido. todos passam por cima de um tronco derrubado de árvore. de quem é a violência da cena? que mundo se constrói a partir desta dor?

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um cão me arrasta em seus passeios. vai me levando por lugares que antes eu nem via. me mostra rastros e restos que ele quer abocanhar e eu não quero que abocanhe. ele tem um mundo diante do nariz por descobrir. ele sabe muitas coisas que jamais saberei. é ele o cão.

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há muitos anos publiquei um livro chamado cães da memória. a epígrafe principal se perdeu entre idas e vindas da equipe da editora que o publicou. era um poema da adélia prado:

“INSÔNIA

 O homem vigia.

Dentro dele, esfumados,

uivam os cães da memória.

Aquela noite, o luar

e o vento no cipó-prata e ele,

o medo a cavalo nele,

ele a cavalo em fuga

das folhas do cipó-prata.

A mãe no fogão cantando,

os zangões, a poeira, o ar anímico.

Ladra seu sonho insone,

em saudade, vinagre e doçura.”

 

teve gente que achou que o livro era sobre cachorros que eu teria tido ou de cachorros dos quais eu me lembrava. me pergunto se um dia farei um livro sobre cães. os olhos doces. um pouco desencontrados no mundo, por mais que pareçam cães bravos. lembro da laurie anderson e sei que é o mais bonito texto que se pode escrever sobre cães.

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este ano, entre o natal e o dia de reis, anotei como estava o tempo. há muitos anos li num livro que era assim que os antigos faziam predições que ajudassem minimamente a reduzir as perdas na agricultura. deve haver um método para fazer as anotações. fiz de uma forma tosca. cada um dos dias equivalendo a um mês. não sei onde meti o papelzinho amarelo de post-it em que consegui a cada dia registrar se sol se chuva se vento, calor ou frio. me lembro que em abril faria frio. como no dia da candelaria fez sol, dizem que o inverno vai se prolongar. talvez faça, mesmo, muito frio em abril e encontrarei o papelzinho amarelo e me programarei para os outros meses.

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o limoeiro lançou uns brotos,  mínimos. mas parecem queimados. ou são só um anúncio. as sementes de tomate e pepino e abóbora brotaram. a cebola começou a crescer. o morango lança brotos e botões. o alecrim está explodindo em  flores. de um azul violeta. ficam lindas na salada. ficam boas na manteiga. e iluminam o espaço entre a argila dos vasos.

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acho estranho sair para longe do bairro, mesmo que seja para ir ao dentista. é como um pequeno delito. como se de um momento ao outro fossem perguntar: onde você pensa que vai? e eu, por me assustar, não soubesse dizer nada.

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continuo optando por silêncios. como os inuits com o branco, vou encontrando palavras para cada tipo distinto de silêncio. prefiro os silêncios nevados, a quietude da paisagem e os nossos passos inaugurando rastros.

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