5 de fevereiro de 2021

flor do alecrim

dia desses, numa conversa numa fila para resolver um tema burocrático, chegamos à conclusão de que estávamos todos no mesmo barco. foi quando chegaram umas pessoas de última hora e queriam entrar antes de nós. resolvido o problema, um homem disse: estamos todos no mesmo barco mas sempre tem aqueles que acham que existe uma primeira classe para eles.

fiquei pensando nisso, de estarmos todos no mesmo barco. apesar das fronteiras. das tantas fronteiras, pensei: estamos todos no mesmo barco, o que acontece com um de nós, acontece com todos. não há saída individual.

depois, enquanto caminhava pelo centro antigo desta cidade, pensava também que estes muros e paredes têm a memória de tantas épocas, da escravidão à democracia, da revolução à ditadura, do mundo minúsculo à imensidão dos oceanos, e, ao pensar oceanos, pensei nos barcos a atravessar o mediterrâneo, pensei nos navios imensos em tantos mares e que não têm aonde aportar. gente à deriva que ninguém quer.

não estamos no mesmo barco, estando.

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a velhinha que dava nome às coisas é um dos livros mais bonitos que já li. é ilustrado, voltado para crianças pequenas. mas sempre penso que um livro bom para crianças pequenas é aquele que é bom também para quando a gente deixou de ser pequeno. se é que a gente deixa de ser pequeno. neste livro há um cão, que se chama sortudo. agora, temos um sortudo na nossa casa. ou veio um cão morar na casa onde há quatro sortudos.

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ler uma ou um escritor que pouca gente conhece (e gostar muito do que escreve) dá a sensação de que é para nós que ele escreve. cria-se um vínculo, um afeto. sempre que há uma oportunidade, fala-se do escritor, comenta-se a beleza dos textos. (raramente) empresta-se um livro para que alguém mais o descubra, torna-se um pequeno tesouro guardado no pensamento. se o escritor ainda vive, por dentro lamentamos que poucos o conheçam, que poucos comprem seus livros, que não seja convidado para grande atos públicos. se está morto, está morto.

se ao passarem os anos e o que era quase um segredo cair na boca de todo mundo, deixará de ser um escritor secreto.  e quem já gostava dele, por um lado, comemora. por outro fica um pouco ciumento de ver que agora o tal escritor que nos era quase íntimo se afaste na multidão que o envolve e estuda e emite mil e uma opiniões. onde estavam esses uns há uns anos que não se dignavam a louvar o escritor ainda vivo ou desconhecido? parecem amigos falsos, destes que só aparecem quando se alcança a fama. eu, ranzinza, nestes casos fico resmungando: duvido que tenham lido com atenção os textos, duvido que conheçam de verdade, duvido que sejam capazes disso, daquilo, daquiloutro. no fundo, é ciúme. que besta!  queria ser ampla, imensa, e festejar o que cai na boca do povo.

se quero viver muito é na esperança de um dia me tornar uma pessoa melhor.

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os suicídios me deixam tão triste.

que merda de mundo construímos.

mas, repare, há umas belezas também.

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alguém que veja pela primeira vez um alecrim em flor.

 

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