se tem imagem que me faz bem é baleia no mar amplo. este ritmo quase camara lenta, estes sons também em rotação mais baixa que a nossa fala agitada, que nosso agudo grito no mundo. as baleias cruzando o espaço como se o mar estivesse pleno de constelações e não de perigos. sua craca, seus filhotes, seu mistério: o que fazem as baleias quando estão longe dos nossos olhos? e o que fazemos nós quando estamos perto dos olhos delas? a lágrima de uma baleia é uma pequena bolha de ar que escorre, que percorre sua pele secular, seu acúmulo de mundo?
e a baleia cantando com seu filhote? é um dos momentos mais doces que já ouvi, me remete à cantiga que me lembro na voz do meu avô enquanto de verdade me sinto no colo da avó. um colo verde de bolinhas brancas, um peito macio.
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uma vez, ou muitas vezes, me senti uma enorme baleia que inspira fundo e desce para o escuro com toda a calma que pode haver ao se prender a respiração sem saber quando se vai voltar à tona:
os meninos, quando nasceram.
ou quando lhes faltou o ar.
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escrevi muito pouco sobre o nascimento dos meninos.
e, no entanto, estes nascimentos me marcaram profundamente. como seus desdobramentos.
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“debaixo d’água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido só faltava respirar... mas tinha que respirar...”
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parir é fazer o outro vir à tona enquanto a gente submerge.
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quando há um ano começou o confinamento, o primeiro medo, maior ainda que o medo do vírus, era não termos o que comer. que faltasse o mínimo para as crianças. não só as minhas, as do mundo. não comprei papel higiênico, comprei quilos de arroz integral. inventei cardápios sem carne, otimizando ao máximo o uso de tudo. não saí mais desta lógica. talvez nunca tenha feito outra coisa: pouca proteína animal, nada de desperdício.
mesmo assim me intriga que não tenha faltado nada nestes meses em que tantas pessoas em tantos países ficaram isolados ou confinados ou suspensos de seu cotidiano.
nada se produz com mágica.
isso quer dizer que teve muita gente que precisou se expor e seguir trabalhando presencialmente para que não nos faltasse nada. ninguém produz batata em home office.
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sigo pensando nas crianças do mundo.
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e uma baleia imensa desliza seu dorso sob os meus pés que flutuam.
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a gente é uma coleção de medos e perspectivas.
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Debaixo D'agua
(Arnaldo Antunes, cantado por Maria Bethania)
Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água se formando como um feto
Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente
Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
todo dia
Todo dia, todo dia
Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo
Aliviado, sem perdão e sem pecado
Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Agora que agora é nunca
Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora a última resposta
Agora quartos de hospitais
Agora abrem uma porta
Agora não se chora mais
Agora a chuva evapora
Agora ainda não choveu
Agora tenho mais memória
Agora tenho o que foi meu
Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou aqui
Agora sinto muita sede
Agora já é madrugada
Agora diante da parede
Agora falta uma palavra
Agora o vento no cabelo
Agora toda minha roupa
Agora volta pro novelo
Agora a língua em minha boca
Agora meu avô já vive
Agora meu filho nasceu
Agora o filho que não tive
Agora a criança sou eu
Agora sinto um gosto doce
Agora vejo a cor azul
Agora a mão de quem me trouxe
Agora é só meu corpo nu
Agora eu nasco lá de fora
Agora minha mãe é o ar
Agora eu vivo na barriga
Agora eu brigo pra voltar
Agora
Agora
Agora
2 comentários:
gosto das coisas que leio aqui. leio os posts quase todos. mas esse, em particular, emocionou. o ponto é que eu já estou quase também lhe querendo enviar emails, pois vez ou outra penso em lhe dizer algo ou em lhe indicar uma música ou falar de uma amiga escritora ou contar que andei ouvindo jessé e que não sou alguém que leva a sério essa história de "música brega" e tudo mais. era isso. forte abraço. sigamos pra cima deles, pois eles já estão em cima da gente.
embaixo ou em cima ainda não é dentro. que eles fiquem sempre fora de nós. e escreva, jean, sempre que quiser. para criar pontes é que se publica o que se pensa, né? e é bom saber que na outra ponta da palavra há alguém. abraço pra voce e pras meninas.
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