27 de junho de 2021

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naquele dia atravessei o mar e um imenso aeroporto. quando cheguei, era quase meia noite e chovia, chovia muito. e chorávamos. a alegria do encontro misturada à tristeza da perda que já se anunciava e nenhuma das duas queria nominar. dar nome é apropriar-se e quem é que quer ser dono da morte? esta ponta louca e largada da vida. prefere-se o nascimento e seus mil colos. embora os choros sejam muito parecidos.

naquela noite dormi aflita, amanheci aflita. às onze poderíamos entrar. eu fui. seguindo os passos dela, seus movimentos em cada etapa da fila, do identificar-se, do lavar as mãos, do buscar o lugar onde. que lugar? ter um lugar é respirar e saber o limite de quem somos. mas ele já não sabia, conectado em respiradores, aparelhos de medir, dopado para não reagir, não se mover de surpresa, não doer. dopados para não doer. que não doa.

não o reconheci. pensei puseram outro homem onde deveria estar meu pai. e era um homem muito velho, muito magro e pálido. onde estava a fortaleza que me amparou cada vez que o mundo desabava? se estava, estava dentro de mim, ou escondido naquele velho magro e mirrado e pálido conectado a um aparelho que apitava, e a outro que ressonava: a respiração de uma pedra quando cansada.

as pedras cansadas. cinzas.

quando nos disseram que poderíamos ficar o tempo que quiséssemos, que não havia limite de horário de visita que nos alcançasse, soubemos que era o fim. ela disse: veja, aquela mão não está atada com faixas. e, como uma criança ao atravessar ruas, segurei aquela mão como se ela me segurasse. disse o que havia para dizer, em silêncios pausados de palavras que não dizem nada, ele me apertou a mão e outra vez veio o silêncio, desta vez profundo, áspero. eterno.

saímos.

mais tarde, voltamos. só para constatar o que já sabíamos.

 

 

eles nos pedem que esperemos e oferecem o tosco espetáculo de adiar uma morte que já está. e apontam para as cadeiras duras, e a sala fria. o tempo passa quando finalmente alguém diz e diz, e nós não escutamos. sabemos que é preciso esperar. depois será preciso descer. alguém nos mostrará um rosto e diremos que sim. sem saber ao certo de quem é o rosto deformado, de quem o susto da hora em que tudo se acaba e a boca abobada se abre, surpreendida e nunca mais sabe o que dizer.


isso tudo há cinco anos já.

como se ontem. como se nunca.

3 comentários:

fabiana jardim disse...

Cinco anos... Um abraço apertado, de saudade e consolo frágil.

Alvaro Vianna disse...

Para mim são 34 anos. Já não parexem ontem. Seu texto trouxe lembranças muito parecidas. Esse o milagre de quem sabe escrever, organizar na cabeça dos leitores sequências lógicas, poéticas, mnemônicas. Obrigado. Agora tenho sua memória, minha memória e um texto em si belo. Beleza dura, cortante, mas beleza.

Jane disse...

Sim Álvaro, minha amiga sabe tirar leite das pedras. Beleza dura, mas beleza. Obrigada Verô por existir e nos unir na memória da dor maior. Queria eu agora atravessar um mar e um grande aeroporto pra te abraçar forte.