29 de novembro de 2024

louça suja

ao sair da casa de uns amigos depois de uma festa, uma casa ampla, diáfana, ventilada, notei que a louça era muita na pia. não se abandona uma festa deixando a louça suja. enquanto lavava sem muito método, sem ensaboar primeiro copos e taças, xicaras e pratos, mas o que me caía nas mãos, notei numa mureta à minha frente uma caixa de vidro com um bloco de gelo e, incrustado no gelo, o que parecia um filhote de pássaro ou morcego. na medida em que a louça ia sendo ensaboada, o bloco se desfazia e o bichinho começava a se mexer. fui chamar alguém que soubesse dizer o que era aquilo. ninguém sabia. quando voltei para louça e para o mistério que morava no gelo da caixa de vidro, ao mudar o ângulo de visão, pude ver melhor que era um filhote, de cachorro talvez, olhando espantado para mim. estendi a mão como quem quer proteger, fazer um carinho, dar de comer, e, de repente, o bicho salta na minha direção e, na medida em que avança, cresce de maneira improvável e rosna e ameaça, garras e presas. me afasto do seu caminho, ele corre imenso na direção das pessoas reunidas na sala. acordo aos gritos.

de onde esta insistência em transformar em palavras uma imagem que me chega tão perfeita em sonhos?

 

31 de outubro de 2024

pista

em diásporas, as famílias ficam espalhadas pelo mundo todo. a nossa não foi diferente. exilados húngaros vivendo no brasil, no nosso cotidiano éramos um núcleo minúsculo: meus irmãos, meus pais, os pais da minha mãe e a mãe da mãe da minha mãe. e por toda parte, em todos os continentes sabíamos de alguém que era da família, mas não conhecíamos. ouvíamos histórias engraçadas e trágicas, sabíamos de modos de ser, de rir, acompanhávamos as notícias por cartas que demoravam tres meses para chegar. às vezes, víamos fotos, e aquele um da família ganhava um rosto. como as fotos eram raras, muitos rostos ficaram cristalizados na memória em determinada posição, determinada idade, por mais que o tempo passasse. por mais que o tempo tenha passado.
uma das pessoas de quem mais tínhamos notícia era do meu tio. único irmão do meu pai.
minha avó perdeu um filho antes que meu pai nascesse e mais dois depois. mesmo sem foto, sei històrias dos irmãozinhos, conheço o lugar onde estão enterrados. quando meu pai tinha dezesseis anos, nasceu meu tio. e quando meu tio tinha seis anos, meu pai foi embora da hungria, na revolução de 1956. por isso, por muitos anos meu tio era o irmãozinho. isso pra nós, crianças, não fazia muito sentido porque em todas as fotos, e mais especialmente na foto do seu casamento, ele já parecia um adulto. ele era dezesseis anos mais velho do que eu.
em 1975 fomos pra hungria. sem muito aviso porque, apesar das notícias de uma anistia aos que tinham saído na segunda guerra ou em 56, meus pais não sabiam se teriam autorização para passar a fronteira.
me lembro do trem parado, os guardas russos entrando e abrindo todas as malas, a luz amarelenta na noite de inverno, a espera, o coração acelerado por ver minha mãe aflita. e depois o trem seguindo. depois chegávamos na estação da cidade onde meu pai tinha nascido. depois pegávamos um ônibus. depois andávamos muito numa noite fria num caminho nevado. depois chegávamos numa casa fechada e no escuro. meu pai jogou uma pedrinha na janela, e mais outra. até alguém perguntar quem era e meu dizer com a simplicidade dos filhos quando voltam pra casa: sou eu. e depois disso, alguém abriu a porta, saiu correndo e nos abraçava chorando e nos levantava no ar. e queria saber, e perguntou sobre lápis de cor e cadernos de desenho e isso pareceu tão engraçado e esse era meu tio.
depois, ao longo dos anos, nos vimos algumas vezes. muito menos do que eu gostaria, mas todas as vezes de um jeito tão amoroso e fluido como se tivéssemos convivido a vida inteira. ele me contava coisas sobre minha família paterna que tinha ficado na hungria. confirmava ou contradizia o que meu pai me explicava. me contava coisas do meu pai que meu pai, mesmo, não comentava nunca. me falava da minha avó, que só encontrei quando ela foi nos visitar e eu mal tinha feito dois anos. meu tio acreditava na construção de um mundo mais justo, acreditava no socialismo ainda que tenha vivido todas as dificuldades impostas pela ocupação soviética e sua cortina de ferro. meu tio era amplo e o olhar sempre iluminado.
foi um professor com muita vocação pra ensinar. também foi diretor de escola e secretário de educação. tinha paixão pelo que fazia. e apesar da formação em exatas, conhecia os grandes poetas húngaros, sabia vários poemas de cor. em uma das vezes em que estive na hungria e buscava caminhos pra traduzir atila jozsef, me lembro de estarmos em volta da mesa do pequeno apartamento onde vivia, e ele e minha tia lembrando de poemas que mais gostavam e recitando e comentando como se o atila fosse um amigo próximo.
uma história engraçada que nos divertia foi quando ele pôde finalmente ir pro brasil. e não sei se foi numa carta, num telefonema ou já quando chegou, ele disse que o sonho dele era subir numa bananeira e comer bananas até não poder mais. a imagem de alguém subindo numa bananeira só é engraçada pra quem tem clareza de como é uma bananeira. e nós, que nascemos e crescemos no brasil, tínhamos muito claro como era uma bananeira. e ríamos. e ele também riu muito quando viu.
um outro momento que sempre me emociona quando lembro foi quando meu tio, que só falava húngaro, conheceu meu marido, que não falava nada de húngaro. e mesmo assim depois de uns copos de pálinka, conversaram animadíssimos sobre política e pedagogia, sobre o mundo e os sonhos que nos habitam. ele tinha essa capacidade, a de sair de si para entender o outro.
meu tio e sua mulher tiveram uma filha, minha única prima por parte de pai, com quem tenho uma cumplicidade de irmã. ela viveu um ano no brasil para aprender português e estar mais próxima de nós, seus primos. agora é sua filha que se interessa pela família do outro lado do atlântico. e se essa cumplicidade existe é porque meu tio, assim como meu pai, não só se cuidaram e se amaram muito mas se preocuparam em construir vínculos, apesar dos milhares de quilometros que nos separavam.
depois que meu pai morreu, fui à hungria para encontrar com meu tio. e ali entendi que eles tinham gestos parecidos e um mesmo modo de abraçar. e era bom reencontrar meu pai no meu tio. e era bom saber que meu tio estava ali, aqui. de algum modo perto.
e agora ele não está mais.
anteontem, minha prima me disse que depois de uns dias agitados, meu tio tinha se tranquilizado. mas quando ela disse que ele falava o nome do meu pai e de uma prima deles que sempre foi muito acolhedora, cúmplice e maternal, eu entendi o que eu não queria entender.
 

"e o amor ainda estava lá..."
 

a vida tem disso, sigo carregando meus mortos, que seguem seus caminhos em nós. meu tio em mim.
um dos últimos presentes que ele me deu foi dizer que eu estava ficando cada vez mais parecida com a minha avó. foi quando li as cartas que minha avó tinha escrito para o meu pai, é que entendi o quanto isso foi um jeito dele dizer do seu carinho.
 

a diáspora espalha as sementes, mas, se elas brotam, as raízes se conectam.

em memória de paulics istván (10.08.1950 - 31.10.2024)

18 de outubro de 2024

histórias de um nome



dia desses, nalguma das redes digitais, alguém comentava sobre nomes e sobrenomes e mudanças quando se muda de país. pensei em escrever sobre isso também, depois mudei de ideia - a quem interessa, se não a mim mesma? então, escrevo, registro para organizar o pensamentto para mim mesma.

a questão sempre é onde começar a narrativa. mesmo que seja de uma coisa besta e supérflua como essa: o nome oficial.

posso começar com a minha mãe se casando com meu pai. ela, vindo de uma família aristocrática húngara decadente, e ele, vindo de uma família de camponeses húngaros, se encontraram no brasil, se gostaram, resolveram se casar. com todo o conflito da diferença da origem de classe. minha mãe tinha seis nomes e um sobrenome von alguma coisa, numa pseudo-nobreza. meu pai tinha um nome e um sobrenome que quer dizer filho de alguém. na hora dos papeis, minha mãe pediu para tirarem os nomes que sobravam e também o sobrenome que tinha herdado do pai. (nesse momento me lembro que o sobrenome que ela teria recebido por parte da mãe também não era simples porque minha avó tinha trocado de sobrenome quando foi adotada oficialmente por sua tia e madrinha.) minha mãe, depois de casada, ficou com um nome e um sobrenome (o do marido).

quando nasceu minha irmã, que era a primeira filha dos meus pais, minha mãe quis colocar um nome simples, curto e bonito que ela tinha visto num dos romances do josé de alencar. o padre húngaro, que não conhecia muito de literatura brasileira, disse que aquele nome supostamente indígena não servia para batizar. precisavam acrescentar algum nome cristão. meus pais, então, acrescentaram os nomes de suas mães ao nome da minha irmã. daí ella ficou com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

quando eu nasci, ainda que meu nome fosse de uma santa católica, pareceu pouco pros meus pais, ou lhes pareceu injusto que minha irmã tivesse três nomes e eu ficasse só com um, ou eles tinham uma reserva de nomes que não sabiam se poderiam aproveitar depois e decidiram usar tudo de uma vez. assim eu fiquei com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

nascidos meus irmãos, o primeiro recebeu, além do seu nome, os dois nomes dos meus avôs, e o segundo ganhou uns nomes aleatórios, ou quase aleatórios, como eu.

éramos quatro filhos e tínhamos doze nomes. nada mal para quem gosta de nomear.

e nenhum dos quatro herdou sobrenome da mãe.

passam os anos, a gente aprende a ler, a escrever e a soletrar os nomes raros, aprende a soletrar com paciência o sobrenome e vai se acostumando a ser aquela multidão.

uma das vezes que fui fazer o passaporte, a moça na polícia federal brasileira me diz: não tem lugar para tres nomes. e eu: ? e ela: não tem problema, eu posso colocar aquí no campo dos sobrenomes porque tem espaço para vários… e concordei. o que é se pode fazer numa situação dessas?

o tempo passou. viemos para espanha. na hora de me registrarem como estrangeira, colocam meu primeiro e segundo nomes como nomes e eis que o meu terceiro nome transformado em sobrenome por falta de campo para incluir tres nomes no passaporte brasileiro se transforma no meu principal sobrenome. quando me chamam senhora fulana, sempre penso: que engraçado, também sou fulana, não é comum esse nome… e logo me dou conta que sou eu, a senhora fulana….

paralelamente a isso, antes mesmo de me mudar para espanha, foi reconhecida minha cidadania húngara, por ser filha de húngaros emigrados pro brasil. quando vou preencher os documentos me dizem: não cabem tres nomes no registro civil húngaro, é preciso escolher. na dúvida, ficou com o primeiro e o segundo nome. o sobrenome? não me dão alternativa, será o do meu pai, esse que já carrego a vida toda. dou entrada nos papeis e espero os documentos. que demoram.

vivendo na espanha, como iberoamericana, em dois anos podemos pedir a cidadania por residencia. entramos com o pedido. passam os meses, quando me chamam pro registro civil, olhando meu registro brasileiro, me dizem: tem que escolher dois dos tres nomes. digo: fico só com um, o meu. eles dizem: não, não pode, tem que ficar com dois dos três. como sou senhora fulana, digo: então, fico com o meu nome e o terceiro, esse que pensam que é meu sobrenome. eles dizem: ótimo. e acrescentam: e o seu sobrenome de pai e mãe é igual então seu nome será primeiro nome, segundo nome, sobrenome e sobrenome (repetido). eu digo: não, minha mãe tinha outro sobrenome. eles dizem: traga isso registrado num papel.

então, suspendo o processo e peço uma cópia da certidão de casamento dos meus pais porque ali está registrado o nome e o sobrenome de solteira de ambos. meu irmão me manda o documento, levo o documento pro registro civil e ganho um terceiro nome no mundo: meu primeiro e terceiro nomes, sobrenome do meu pai e sobrenome de solteira da minha mãe (aquele metido a nobreza, mas eu faço de conta que não vi o “von” e eles fazem de conta que não viram também. ao menos disso eu me livro…).

há quem diga que uma das grandes questões que vivemos em processos de migração voluntária ou involuntária é a crise de identidade. não temos velhos amigos, não reconhecemos os espaços, a história do lugar onde passamos a viver, não sabemos as canções de infância, não temos em comum isto que se chama trivialidade cotidiana nem as referencias culturais. além disso, quase nem nosso nome conservamos.

no registro brasileiro sou uma, no registro húngaro sou outra e no espanhol sou uma terceira. se somos nosso nome, já não sei quem sou. mas sempre multidão.

antes eu era só uma: verdadeira imagem mística presente de deus filha de paulo. 


 

22 de agosto de 2024

tudo tudo tudo desaparece

desaparecer parece arte de magia só porque a gente não está sempre atento ao mundo

cada dia desaparece o próprio dia. e pessoas desaparecem

e pensamentos que se esvaem pelas frestas das janelas sonhos perspectivas amores

prédios também desaparecem como desapareceramm casas que antes estavam justo ali assim como as pessoas adultas desaparecem depois de terem feito desaparecer a criança que nelas havia e já não há

desaparecem suspeitas e certezas

desaparecem cartas e caras conhecidas

desaparece o rosto que a gente amava: por mais que se busque registros e insistencias na memória para evitar o desaparecimento não adianta: desaparecem

desparecem os passos nas calçadas

nossos cachos e asas de anjo desaparecem

tudo tudo desaparece e também o vento que leva e o fogo que queima um dia desaparecem

28 de junho de 2024

voce deveria escrever tudo isso que vê

entro num bar numa esquina da praça da sé. espero alguém. quatro homens atendem no balcao e uma mulher atende as mesas. não há mais ninguém. peço uma média. que já não vem num copo americano. o copo é grande, mais quente do que eu esperava. não quero ficar em pé junto ao balcão. pego a média e vou até uma das tantas mesas do mini salão deserto. é muito cedo? não sei. a praça também tem o centro vazio, o chão lavado, uns policiais fazem a ronda. nas calçadas do entorno, o povo todo que dorme na rua.

quando quase me sento, passa por mim um homem jovem, com uma mochila e na mão uma sacola plástica com roupas, atrás dele vem sem vontade uma mulher jovem, também com sacola plástica de roupas. ela visivelmente preferiria não estar seguindo o homem. não sei se onde eles saíram, se o bar estava todo deserto. enquanto passam por mim, me pergunto quem serão, as histórias que existentes, carregamos e explicamos sem dizer nada. no gesto do homem que se vira para ver se a mulher o segue, em sua mão já se revela um ato que aponta para uma violência silenciosa, a violência dos que ainda ou já não têm palavras para se expressar. reduzo o movimento do meu corpo como quem se prepara para defender a jovem mulher se fosse preciso.

nesse momento - em que vou para mesa segurando a média e passam os dois por mim e me pergunto quem serão e meu corpo se retém para o caso de uma agressão e logo se relaxa por saber que não, que ele não vai fazer nada - meu olhar cruza com o olhar da mulher muito mais jovem do que eu que trabalha no bar e, ao cruzar o olhar, sei que ela quer me dizer alguma coisa.

sei que se eu ficar quieta, ela não vai me dizer nada. vai seguir calada e tudo o que ela pensa ou sabe ou imagina vai se perder no movimento do dia que está só começando e nunca mais vai se repetir.

mas eu, que nasci para perguntar, pergunto. procuro dentro de mim a pregunta que a levará a me contar muito muito mais coisas do que estas que agora mesmo testemunhamos e das quais de certa forma fomos cúmplices. pergunto, então, sem perguntar. faço a ela uma afirmação. na afirmação está explícito que eu a considero uma igual, considero todo o seu potencial de observadora e guardiã da memória dos que entram nos bares do velho e pobre centro da cidade às sete da manhã.

e então ela me conta. e ao me contar o que viu e o que pensa de tudo o que viu, ela me diz quem é, de onde vem, o que busca, o que sonha, o que já fez na curta vida e tudo o mais que acredita que não chegará a fazer. ela fala. com a boca, os olhos, as mãos. e ela sabe que eu a escuto.

diante dos meus olhos e da minha atenção ela cresce como as árvores quando chega a primavera.

o patrão a interrompe: entrou um novo cliente. 

e a magia toda se desfaz.

é a pessoa que eu esperava.

pago a média, sorrimos uma para outra. 

ela fica. eu saio.

24 de maio de 2024

bichsel e a senhora blum que queria conhecer o leiteiro



há alguns meses, enquanto revia a tradução de um texto originalmente escrito em alemão, joan navarro, amigo, poeta e tradutor comentou que, para ele, o tal texto de alguma maneira dialogava com o que eu escrevo. (quando dizem “o que voce escreve” sempre deduzo que é esta coisa híbrida que nem é prosa nem chega a ser poesia.) fiquei curiosa, obviamente. bichsel era o nome do autor. de quem eu nunca tinha ouvido falar.

procurei informações no google, mas não encontrei muitas coisas. procurei outros livros dele já traduzidos para o catalão, para o espanhol ou o português e não encontrei muita coisa. por algum tempo fiquei sem saber que texto era esse e quem era esse tal peter bichsel.

para muitas coisas a pressa e a ansiedade não adiantam muito. esperei. pensei: quando estiver publicado, lerei.

e me esqueci, porque não dá para carregar todas as curiosidades à flor da pele quando há um cotidiano a ser vivido.

quando o livro ficou pronto e impresso, meu amigo disse: será que você poderia apresentar o livro em barcelona? como não sou crítica nem nunca estudei literatura formalmente, não sou professora nem nada, meu primeiro movimento foi dizer que não, que não saberia fazer nada disso. mas antes de dizer o não, também pensei que apresentar um livro é mais fazer perguntas que afirmações. é dar uma olhada no que temos e perguntar o que não sabemos. e como perguntas é uma coisa que eu sempre tenho muitas, disse sim, que podia contar comigo.

a editora me mandou o livro. um livro pequenininho - como eu gosto de livro pequenininho! - e que começa como se já estivesse no meio. os textos, curtos, num primeiro momento pareciam desconectados uns dos outros mas na medida em que se avança na leitura, vai se detectando um certo fio condutor, como se fosse um olhar que passando e pousa em prédios ou pessoas e seus gestos, em pedaços de vida, em exercícios de suposição e contemplação. um texto que projeta imagens, e nos detalhes das imagens a vida de gente simples, que em geral passa desapercebida, que não interessa a ninguém. me fez pensar em perec e seu infraordinário mas sem tanta teorização de fundo, me fez pensar em michon e suas vidas minúsculas mas sem tantas curvas no texto, me fez pensar em win wenders e seus anjos em berlim sem qualquer transcendencia, em agnes varda e seus catadores sem um filme que nos dê as imagens, e me fez pensar em mim mesma, que sempre me pergunto se na vida devo buscar deixar marcas ou passar feito um pássaro que só deixa a memória de um voo.

o livro começa com um “provisoriamente…” e nos diz de um prédio, com seus apartamentos, seus cheiros, seus barulhos e silêncios. o prédio é um personagem. e parece que tudo o mais terá este prédio como cenário. não é assim. o olhar vai vagando dentro e fora das casas, no presente e no passado de alguns personagens, no não sabido, no não pensado, no não querido. e também naquilo que não é possível saber, apenas supor.

no texto em que encontramos a frase que dá título ao conjunto, conhecemos a senhora blum e sua comunicação com o leiteiro por bilhetes, fazendo seus pedidos, comentando os pagamentos. e o leiteiro, que passa sempre às quatro da manhã, e que responde ou não responde esses bilhetes. o que a senhora blum sabe do leiteiro? o que o leiteiro sabe da senhora blum? o que cada um de nós sabe ou deixa de saber do vizinho, do carteiro, do caixa do supermercado que vamos a cada semana?

ainda que não saiba nada, o narrador nos abre olhares. um olhar atento ao mínimo do cotidiano mas também à grandeza das pequenas existencias. no fundo, no fundo, somos todos pequenos e imensos. todos dormimos, acordamos, lavamos o rosto ou não, nossa bexiga se enche, nosso intestino se esvazia, comemos, lembramos, sabemos, o sol no nosso dia nasce e se põe, algo se repete sem nunca ser igual e as nossas (in)decisões vão construindo o mundo numa espécie de rede ou tecido ou ainda uma tela que revela um intrincado de encontros e paisagens que não podem ser vistos ao res do chão do cotidiano, que pedem uma visão distante no tempo ou no espaço para ser apreendidos.

os personagens de bichsel escrevem cartas para si mesmos, herdam pianos sem saberem música, que dão ou recebem flores, projetam slides, vão presos. têm medos e ansiedade, pequenas alegrias. os personagens de bichsel são pessoas que encontramos nas nossas vidas, somos nós, às vezes.

esta maneira de descrever os textos poderiam erroneamente levar a pensar em microcontos e alguém se perguntaria: se há tantos que escrevem microcontos, que diferença há entre bichsel e outros?

não sei dizer exatamente, mas tem a ver com a linguagem, com o ritmo, com o ponto de vista. importa pouco o que está sendo contado e importa muito o como se conta, suas elipses, intervalos, silêncios.




“E não se ouvia nunca que ela cantarolasse uma melodia.

E quando tocava uma nota no piano da mãe, isso acontecia só por um acaso, isso acontecia só, por exemplo, quando passava o trapo amarelo por cima das teclas.”




o último texto do livro, didadicamente chamado de esclarecimento, talvez seja a chave de leitura para todos os textos, e para um modo de estar de peter bichsel no mundo:




“Esclarecimento

De manhã havia neve.

Alguém poderia ter se alegrado com isso. Poderia ter construído cabanas de neve ou bonecos de neve, poderia faze-los bem altos, diante de casa, como se fosse guardiões.

A neve é reconfortante, isso é tudo o que é - e conserva o calor, dizem, se alguém se enterra nela.

Mas entra nos sapatos, bloqueia os carros, faz descarrilhar os trens e isola os vilarejos distantes.”




li o livro e tinha muitas perguntas: por que joan e helge teriam escolhido este livro para traduzir há tantos anos (o livro é de 1964) e por que agora teriam tido a ideia de rever a tradução e encaminhar para publicação? o que será que chamou a atenção deles para o texto? como eles chegaram em peter bichsel.

por sorte, nesse meio tempo foram aparecendo textos sobre o livro recem publicado em catalão. com a responsabilidade de fazer a apresentação também corri atrás de mais informações e me rendi à ideia de só ter ao meu alcance seus livros que catalogados como infanto-juvenis. li tudo o que pude ler. e recolhi toda a informação que estava ao meu alcance.

mesmo o que está classificado como literatura infanto-juvenil não vulgariza o pensamento, não se reduz diante da falsa ideia de que crianças e jovens precisam de coisas mastigadas para compreenderem textos. as narrativas deste “Coisa de crianças” se permitem brincar com conceitos e expressões linguisticas de maneira que crianças lerão de uma maneira diferente dos jovens e dos adultos, mas em todas as leituras há graça e ironia, há o espanto de olhar o mundo de uma maneira diferente daquela que sempre olhamos. pode ser que pras crianças gere um olhar mais complexo e pros adultos seja o exercício de voltar a olhar o mundo com o frescor do olhar das crianças e a sua surpresa diante dos fatos e, especialmente, da linguagem.

ainda assim eu seguia sem saber muito bem quem era peter bichsel.

peter bichsel nasceu nos anos 30 do século XX e ainda está vivo.

já não escreve.

mais do que escrever, ele gosta de ler. “voce nunca está sozinho quando lê. voce sempre tem companhia.”

não gosta das manhãs.

para superar o mau-humor, quando se levanta prepara uma super refeição, depois se senta para comer, depois não come praticamente mais nada até o dia seguinte.

diz que não tem medo da própria morte, só da morte dos outros.

e tem medo de ter que viver com outras pessoas velhas, em asilos de velhos.

nasceu na suiça, foi professor, jornalista, foi assessor político.

sempre de esquerda.

alguns escritores de uma geração anterior, achavam que ele tinha perdido o interesse pelo Estado, que tinha se rendido aos cenários locais, aos personagens sobrecarregados pelo trabalho e a rotina.

um desses escritores é o max frisch que se relacionava com a ingmar bachmann que por sua vez se relacionava com o paul celan (que eu nem sempre entendo muito bem mas admiro muito e até já sonhei que ele era meu pai. meu e da noemi.).

bichsel é considerado um dos grandes escritores em língua alemã, mas ele mesmo se considera sobrevalorizado. e diz que nunca poderá ser acusado de ter explorado o próprio talento: não, isso nunca.

há uma entrevista muito boa com ele, mas está em inglês e sei que nem todo mundo entende ingles, embora as pessoas que falam inglês pensem que esta é uma língua universal. não, não é.

há também um texto muito bom do angel carboner, e outro da arantxa bea, e um outro ainda do pere ciscar. textos deliciosos, que nos dão a mão para que conheçamos mais do autor e deste livro em especial. mas estão em catalão. poucas pessoas entendem catalão, eu sei.

hoje em dia se pode traduzir tudo ou quase tudo instantaneamente.

não um livro como o “o que a senhora blum queria era conhecer o leiteiro”. para traduzir livros assim é bom contar com humanos como joan navarro e helge rutberg.

e quem sabe não encontramos alguém que saiba alemão e portugues e este alguém não nos traduz também o bichsel, para que os olhos brasileiros possam ver o mundo como nunca antes o viram.

3 de maio de 2024

revolução dos crisântemos

a primeira vez que li sobre a revolução dos cristântemos na hungria, traduzi o nome “öszirozsás foradalom” ao pé da letra - revolução das rosas de outono - e achei um nome tão bonito, talvez por me lembrar uma banda de música que ouvia nos anos 80, violetas de outono. lembro de ter comprado o disco por conta da capa (não, não foi a única vez que fiz isso). mas já nem me lembro que música eles tocavam.
violetas de outono, por sua vez, me lembram as violetas perfumadas que eu criança colhia e amarrava num raminho e levava pra minha avó. ela colocava num vasinho de porcelana esverdeado e bojudo.
quando minha avó morreu, minha mãe me deu o vasinho que guardo para o caso de um dia também eu receber raminhos de violetas.
sem saber que eram minhas flores prediletas, foi com um raminho delas que meu sogro me recebeu a primeira vez que fui na casa dele.
mas nesse dia minha avó ainda vivia e o vasinho, mesmo vazio, morava na sua mesinha de cabeceira, não na minha.

 

9 de abril de 2024

antes poeira de estrelas, agora picles, geleias, colonia de bacterias

um dia, na biblioteca, vi um livro sobre conservas. fora dos trópicos, isso dos ciclos tão marcados entre verão e inverno, entre fartura e falta, faz a gente pensar mais sobre como guardar a alegria dos pepinos e tomates para os dias frios.
folheei o livro e parecia bom, cheio de receitas doces e salgadas.
levei p’ra casa. comecei a ler com atenção as receitas e já não parecia tão bom. continuei lendo, porque fotos e imagens coloridas e me deixei seduzir como criança com caixa de lápis de cor. até concluir que o livro era ruim, muito ruim. livro de receita bom te abre horizontes, dá ideias, amplia. um livro ruim nos ata aos ingredientes, nos restringe às fórmulas. era um livro ruim.
pensei: devolvo já na próxima ida à biblioteca.
mas, antes de botar o livro na pilha das devoluções, por curiosidade, talvez, não sei bem, dei uma olhadinha na introdução. e a introdução era maravilhosa. um texto fluido, bom de ler, uma reflexão sobre a decomposição dos seres vivos e as possibilidades de retardar esta decomposição.
naquelas três primeiras páginas a magia e a beleza das bactérias e fungos reduzindo tudo o que já foi vivo à sua mínima composição mineral. que imagem!
li os tantos parágrafos visualizando todo o processo de sair do mundo mineral, alimentar-se dele, incorporar tudo isso à nossa existência/essência para, em seguida, desatar o fio da vida e permitir ao corpo o voltar a ser pó, mineral, pedra. nossa existência: da pedra à pedra. do pó ao pó.

21 de fevereiro de 2024

o espírito da pedra

 

(Ricard Garcia)

A partir de LIQUENS de veronika paulics e Joan Navarro


Atravessar a porta e as sombras de dentro da porta. O caminho e tudo o que se amontoa às margens do caminho. A poeira que flutua entre vozes antigas. Os passos assustados do viajante. O diz-que-diz dos trilhos. As linhas que atravessam o infinito. A lâmina afiadíssima das facas. As carnes do bicho, abertas. Os grunhidos da morte. O jato de sangue, quente e roxo. O coração nas mãos, ainda tenso, ainda ensanguentado, ainda morno... O lugar algum e uma estranha luz vermelha e doce, como a polpa dos caquis. A matéria e seu esvaziar-se.

Morder a fruta. Morder as carnes e rir e que a seiva fecunde todos os vasos da terra. Também omensurar fogo e os exércitos de formigas que povoam a terra e os fungos e as bactérias e o musgo. Escarvar entre as almas, mensurar as esferas do não-tempo, os movimentos circulares, o zumbido das abelhas, a lama de chuva, a luz que resplandesce nas pedras.

Dizer, dizer a palavra e seguir as ondas do som, os rastros íngremes do pensamento, os murmúrios do meio-dia, a cadência das tardes antes que seja sempre escuro, enquanto ainda pingam monótonos o passado e a memória do passado, antes que a poeira se enrole sobre todas as coisas do mundo, enquanto o olho espera o sinal da chuva e que a amêndoa seja semente e raiz, caule, broto, flor e fruto, carne luminosa, água e terra, ar que te preenche, te abraça, te fala das coisas de viver. Ar da terra onde se enraizam as oliveiras que o pai plantou.

Sentir que chove uma chuva lenta, que se tempera a terra, que o musgo te cobre os olhos como cobre a pedra. Sentir que o tempo flutua dentro de ti como uma lamparina, entre o aqui e o depois, sob as sombras de um céu caído, preso entre tu e o olhar da raposa que te desafia. Sentir o uivo dos lobos, metálico e glacial, entre as árvores frondosas. Ouvir as vozes do medo. Uma ferida que não cicatriza.

Abraçar a montanha. Abraçar os limites quebradiços e tão frágeis da vida. Dar nomes ao mundo. Costurar a existência: razão e desejo, ser e não, escuridão e luz, fogo e argila, granito e fungo. O céu que se espelha nas lagoas. Os peixes de prata. As noites estreladas de antes do abismo. O naufrágio sob a curva do tempo. O aqui e o além. A laje que nos separa. Os tremores secretos da alma: amamentar as crias, curar as feridas, o pulsar do bosque, a vivacidade úmida de sob as pedras, o húmus, os caminhos da noite, a luz primeira, o perfume da mimosa. A beleza. O milagre de nos sobreviver. Os liquens. A pedra. O espírito da pedra.

 

(lido por ricard garcia no dia 21 de fevereiro de 2024 na apresentação do liquens na biblioteca gabriel garcia marquez, de barcelona)

19 de janeiro de 2024

oito meses

hoje faz oito meses que ela morreu. era uma sexta-feira. eram 5:43 da manhã, como é agora.
desde que pari meu primeiro filho penso que a morte se parece com um nascimento, meio às avessas. o susto do momento, depois a expectativa ao observar a vida se fazendo vida, firmando-se. primeiro contamos as horas, depois os dias, completando semanas até chegar a um mês. e então contamos os meses e as primeiras vezes de cada ciclo: o primeiro natal, o primeiro ano novo, o primeiro sorriso, os dentes, os gestos que vão se firmando, as primeiras férias de verão, a primeira grande chuva e chega o primeiro aniversário. e contamos os anos.
quando fiquei grávida não soube bem o que fazer com a ideia de estar preparando alguém e de que este alguém entraria na minha vida de certa forma para sempre. de todos lados ouvi que não me preocupasse porque os meses de gestação nos preparam para esta mudança no mundo, não só do meu mundo, mas do mundo ao redor no presente e no futuro. com o passar dos anos, entendi o que na hora me pareceu insensato.
e agora se completam os oito meses que me prepararam pouco a pouco e um pouco para este mundo presente e futuro que segue girando sem ela.

9 de janeiro de 2024

de alguma fome nasce a luz

(Manuel Rodríguez-Castelló, outubro de 2023)

As correspondencias e diálogos artísticos são há muitos anos parte substancial do trabalho poético de Joan Navarro (Oliva, 1951). E se apresentaram até agora principalmente de três formas: através da revista digital de arte e literatura sérieAlfa que o autor mantém desde 1999 e que já trouxe à luz 99 números com excelentes mostras de poesia contemporânea de todo o mundo na língua original e em traduções multilingues; no trabalho de tradutor (toda tradução é acima de tudo uma correspondência) passando para o catalão novelas de Pasolini, a obra poética de Orides Fontela, Ossos de Sípia (com Octavi Monsonis) de Eugenio Montale e poetas brasileiras como Elisa Andrade e, precisamente a poeta que ora os ocupa, Veronika Paulics, dentre outros; há também os livros feitos conjuntamente com o pintor Pere Salinas (Barcelona, 1957 - Vilanova del Vallès, 2023), uma extraordinária correspondencia entre imagens pictóricas e poemas, Atlas (2008), Grafies-Incisions (2010), O: Llibre d’hores (2014) e Llum cinabri/Calma tectonica (2015), com a incorporação neste último da poeta argentina Lila Zemborain.

A poeta brasileira Veronika Paulics, a outra voz deste tão sugestivo Liquens, nasceu em São Paulo em 1967 e há uns anos vive em Barcelona. Além de ter traduzido para o português, dentre outros Magrana/Romã de Joan Navarro, é autora dos poemários cães da memória (2002), a pé/a peu (2018) e casa de mim (2019) e dos blogues ando a pé e vem e devora (coletivo).

Liquens, o trabalho que hoje resenhamos, reúne 31 composições duplas e espelhadas (tantas quanto o número máximo de dias de um mês) ou 62 poemas datados entre 6 de setembro de 2019 e 11 de janeiro de 2022 que se apresentam no formato de poemas em prosa. Ainda que não estejam assinados, algumas constantes nos permitem distinguir nitidamente a autoria, os poemas de Veronika Paulics nas páginas pares, sempre em minúsculas, datadas em Barcelona com o dia, nome do mês e o ano, os de Joan Navarro nas ímpares, com a data em numerais e uma breve citação ao final de cada poema. O título deste magnífico poemário, o primeiro em que assistimos à correspondência puramente textual entre dois poetas (nos livros já citados de Joan Navarro estavam sempre presentes as imagens de Pere Salinas), remete à ideia de colaboração simbiótica. De fato foi o estudo dos liquens que levou ao surgimento do termo symbiotismus, inventado em 1877 por Albert Bernhard Frank, para explicar “este organismo de natureza dupla, produto da simbiose entre um fungo e uma alga ou uma cianoficia, que apresenta morforlogia e fisiologia próprias, geralmente bem adaptado a ambientes pouco favoráveis às plantas vasculares”. Dois seres vivos, portanto, trabalham conjunta e solidariamente e o processo de relação entre eles dá à luz uma coisa nova que os ajusta e ao mesmo tempo os transcende, duas vozes que harmonizam, acoplanto ao seu canto ecos de perguntas e respostas que se entrecruzam e se superpõem, que atingem o zenit do mesmo silêncio, a infinitude de paisagens das palavras que se atraem e se repelem, que nascem e se extinguem, uma criação que somente pode ser um ato de amor, os frutos de uma paixão, as viagens inspiradas da correspondencia me múltiplos sentidos, dentro e fora, para frente e para trás. A vida vivida na própria carne e a vida nos outros. A vida transformando-se no ritmo das palavras. Na sutil interação, no intercambio mensal de cartas que incendeiam cada manhã e abrem a fome onde nasce a luz, a voz que se oferece ao outro retorna como um eco aumentado e corrigido, pleno de novos matizes, material verbal onde tudo se aproveita, nivel da criação mais alta, sutil ecologia poética. Os pigmentos com os quais os poetas pintam o mundo se mesclam e iluminam novas formas e cores. A voz, misteriosamente, é a mesma e é diferente a cada caída de folha: é a sabedoria do diálogo que se afasta das armadilhas e estratégias dos discursos de poder, que é só poesia que afirma o seu canto, que reinventa a vida, que reinterpreta os arcanos da memória. Volta-se mais para o passado no caso de Veronika, é concreta mais em passagens de memória, em referentes que se identificam em respirar somente umas palavras (um incêndio, o sacrifício de um animal, momento da infância, a amargura do exílio, a escuridão de um extermínio, a quietude das mãos amorosas…) ordena mais narrativamente as sequências, enche o ar com verbos que engendram ações, pule mais o verso em que desemboca uma espécie de história que é o rio da vida. A escrita de Joan é mais substantiva e entrecortada - sintagmática, como dissemos em outras ocasiões - , encadeia-se em jogos infinitos de analogias e sutis correspondências internas, abstrai-se no que se pode dizer mas mal se pode pensar (“Vértebra do impulso. Óxido das órbitas”), cartografia o terreno inexpugnável da poesia, cresce no ritmo de uma respiração, da sístole e da diástole com que se diz o mundo, os processos invisíveis da natureza, o silêncio insondável de tudo o que é vivo, a fenomenologia do dizer, escrita fractal com a qual a consciência se faz universo e sentido.

Se a voz de cada um não produzisse eco e efeito no outro, se não modificasse o seu próprio transcurso, não estaríamos falando de diálogo ou correspondência poética mas de simples intercâmbio de surdos, tão frequente na vida cotidiana. As duas vozes assim se entrelaçam e se transformam no decurso criativo de maneira perceptível. Joan se impregna da potência de evocação do passado com que Veronika dava os seus primeiros passos para incorporar, por sua vez, através de apóstrofes tão peculiares de sua obra, o irmão e o pai ausentes, a casa familiar, a paisagem da infância, certas noites de verão. Vai se entregando Veronika de pouco em pouco ao êxtase de dizer, à pura abstração, ao voo da imaginação que se adentra no fenômenos naturais, na contemplação maravilhada do mundo. Os ecos que ressoam de um lado e outro dos poemas-espelho vão pautanto a sinfonia de uma altíssima densidade poética. Multiplicação dos caminhos que se percorrem em todos os sentidos, todo de janelas abertas para o infinito.


Veronika Paulics e Joan Navarro, Liquens. Epílogo de Ricard Martínez Pinyol, Edicions del Buc, nº28, La Pobla de Farnals, 2023

original publicado aqui: https://lapedraielmarge.blogspot.com/2023/12/dalguna-fam-neix-la-llum.html


8 de janeiro de 2024

epifanias

sou alguém que carrega seus mortos consigo. carrego também os vivos, ainda que os vivos, tantas vezes tão distantes no tempo ou na geografia, nem saibam que são carregados por mim. já os mortos, sim, esses sabem. sabem que os carrego e sabem que isso faz diferença. não tanto pra eles. entre os mortos, carrego amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos. carrego uns nomes sem sentido, e até mortos sem nome que sobrevivem em pedaços de histórias que alguém me contou. carrego comigo a menina que desistiu quando tínhamos uns doze anos. carrego minha bisavó, meus avôs, minhas avós, carrego meus pais. carrego os irmãozinhos da minha mãe e do meu pai, de um tempo em que tantas crianças “não vingavam”. carrego tias, primos, amigos mortos. carrego amores antigos, sua pele delicada, seus abraços, seus olhares e tudo o que não foi dito ao longo de não-vidas, eu carrego. às vezes, de manhãzinha, vou desfiando nomes e datas, ladainhas de gente que eu quereria aqui, nesse momento, nesse dia. na noite da epifania muitos me visitam, como se fossem os magos, e no dia oito de janeiro, como hoje, penso na ana, que está viva, e penso na janaína. falo com ela. como converso com todos os mortos que carrego. às vezes me respondem com arroubos, outras vezes sussurros. ou nem isso. me esforço pra escutar no vento um murmúrio qualquer que me lembre tudo o que fomos e fizemos ou que me confirme que ainda seguimos vivas.

3 de janeiro de 2024

douglas

 

este ano faz quarenta anos que fui aprovada pro curso de jornalismo da usp. já me esqueci de muita coisa. outras, permanecem pra sempre. o jornalismo, em si, não durou muito. já a escrita nunca mais me deixou. vários tipos de escrita, várias formas de relatar o mundo que vejo e ouço. poesia em quase tudo.
mas no ano em que me formei, já me achava adulta e muito profissional. mas eu tinha 20 anos! e ninguém, absolutamente ninguém, levava a sério a informação de que eu era uma jornalista profissional, com carteirinha do sindicato e tudo. na época tinha me convencido que escrever não seria muito o meu caminho e tinha enveredado pela foto jornalística e formação em comunicação pros que viviam nas beiras, nas periferias, nos espaços distantes do poder.
uma das pessoas que me abriu espaço e me apoiou e me ajudou a olhar o mundo respeitando sempre a opção preferencial pelos pobres e o afeto que isso envolve foi o Douglas Mansur. douglas era da equipe do jornal o são paulo da arquidiocese. suas fotos sempre tiveram e ainda têm um olhar direto e amoroso, e nunca deixou de estar ao lado da luta por justiça e igualdade, abraçando especialmente a pauta da reforma agrária e o mst.
se já são quarenta anos que entrei em jornalismo, já faz quase quarenta anos que o conheço. e admiro. e respeito e serei sempre, sempre muito agradecida a ele, por me dar a mão, por me abrir espaço, por me fazer ver que o caminho que eu queria seguir era possível.
me desviei muitas vezes do jornalismo, já não vivo no brasil, faço fotos só de detalhes dos lugares por onde transito, mas sempre mantive o foco. e o douglas, o querido douglinhas, sempre ali, uma referencia pra mim.
quando entendi o quanto douglas está presente no que hoje sou, agradecer é o mínimo que posso fazer.