Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como os pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se me o coração
(Ruy Belo)
2 de janeiro de 2012
20 de dezembro de 2011
sob uma chuva de flores e galhos
perdi o rumo. aquele rumo exato de quem não sabe para onde vai. debaixo do galho a ferida aberta. a memória é um bicho doido, aleatório. o nome da menina que a parede cobriu e matou. armadilha em pequenas flores amarelas? o nada da solidão que sou no ponto de ônibus na banca fechada sem táxi que passe. um cotovelo na minha clavícula. roupas não revelam índoles nem disfarçam. o homem que amo está ao meu lado apesar do pouco que sou.
16 de dezembro de 2011
bico de pena e nanquim
veio de são paulo. a franja parecia diferente das nossas franjas. as roupas. o jeito de falar. vinha na nossa casa porque era da turma da minha irmã mais velha. eu sofria por perder (pra ela) a atenção do menino que eu mais gostava.
um dia, num daqueles jogos de menina predizer futuros, descobrimos que ela se casaria com o ique. eu olhava o papel, olhava: ali, o que parecia o fim do mundo.
assim como veio, um dia ela foi embora. o tempo passou até não ficar nenhuma de nós. todas estrangeiras.
a internet reduz o mundo e um dia os olhos da luli na minha tela. escrevi, perguntei: você é ela? e era. uma história de risadas largas.
do tal henrique, nunca mais tive notícia.
um dia, num daqueles jogos de menina predizer futuros, descobrimos que ela se casaria com o ique. eu olhava o papel, olhava: ali, o que parecia o fim do mundo.
assim como veio, um dia ela foi embora. o tempo passou até não ficar nenhuma de nós. todas estrangeiras.
a internet reduz o mundo e um dia os olhos da luli na minha tela. escrevi, perguntei: você é ela? e era. uma história de risadas largas.
do tal henrique, nunca mais tive notícia.
15 de dezembro de 2011
pintura em aquarela sobre tela rarefeita de papel de arroz
chegou, fez perguntas. ouviu isso aquilo. me fez lembrar de muitas coisas intensas. eu respondia, ela perguntava. então, agradeceu, deu-se por satisfeita. desligou o gravador.
respirei e disse como quem pergunta: você sabe quem eu sou, não é?
nossas mãos sobre a toalha xadrez, próximas e sem se tocarem.
os olhos dela marejados. foi a minha vez de ouvir. sem gravador, sem perguntas, o pão a crescer esquecido na mesa da cozinha. o passado, uma explosão contida, um resto de memória, nunca toda ela. a dor um registro difuso. ou não sobrevivemos. a faca de cima abaixo e as vísceras. depois tudo outra vez contido. ninguém sabe o estrago de decisões, de palavras ditas no escuro do cinema e um desconhecido a desinterpretar, de copos de uísque a mais, de saquê uma bomba sob o balcão do bar o punhal. do medo e a mão que vem em meu socorro deixa alguém largado na beira no mar nas pedras.
depois que ela saiu, eu me sentei e chorei.
respirei e disse como quem pergunta: você sabe quem eu sou, não é?
nossas mãos sobre a toalha xadrez, próximas e sem se tocarem.
os olhos dela marejados. foi a minha vez de ouvir. sem gravador, sem perguntas, o pão a crescer esquecido na mesa da cozinha. o passado, uma explosão contida, um resto de memória, nunca toda ela. a dor um registro difuso. ou não sobrevivemos. a faca de cima abaixo e as vísceras. depois tudo outra vez contido. ninguém sabe o estrago de decisões, de palavras ditas no escuro do cinema e um desconhecido a desinterpretar, de copos de uísque a mais, de saquê uma bomba sob o balcão do bar o punhal. do medo e a mão que vem em meu socorro deixa alguém largado na beira no mar nas pedras.
depois que ela saiu, eu me sentei e chorei.
via aérea
um jeito de balançar as pernas, mexer as mãos e desviar os olhos e eu sei que mente. conversa com outro homem, conta vantagens e o outro se admira de si mesmo por despertar a atenção de um homem que se declara tão importante. mas ele mente. e o outro homem, aquele que se admira por achar que é admirado, é tolo e vaidoso o suficiente para não prestar atenção àquilo que ouve e saber, assim, que tudo o que houve é mentira.
o mentiroso, quando quase se delata, põe e tira os óculos escuros e se ajeita na cadeira da sala de espera do aeroporto, abre a maleta, tira um alicate de unhas e começa a fazer as unhas sob o olhar atento e embevecido do outro, que não sabe ao certo o que ou para onde olhar. os olhares se perdem, as palavras caem no chão, ocas, barulhentas e se quebram.
o voo vai sair. forma-se uma fila. o homem mentiroso fecha a mala, vai até o começo da fila, diz qualquer coisa que o promoveria a primeiro da fila. a mulher olha para ele, olha seus sapatos e num gesto contido diz não, não há por quê. ele que vá ao final da fila.
constrangido, ou quase constrangido, finge que seu telefone toca e finge que o atende e finge que tem alguma coisa para dizer e diz baixinho coisas ininteligíveis. depois vai até o final do corredor olhar vitrines.
sou a última da fila, logo atrás do homem que antes admirava o mentiroso. sorri amarelo ao perceber que era tudo mentira. e me pergunta as horas. não respondo. não entendo o que me diz.
é a minha vez.
o mentiroso, quando quase se delata, põe e tira os óculos escuros e se ajeita na cadeira da sala de espera do aeroporto, abre a maleta, tira um alicate de unhas e começa a fazer as unhas sob o olhar atento e embevecido do outro, que não sabe ao certo o que ou para onde olhar. os olhares se perdem, as palavras caem no chão, ocas, barulhentas e se quebram.
o voo vai sair. forma-se uma fila. o homem mentiroso fecha a mala, vai até o começo da fila, diz qualquer coisa que o promoveria a primeiro da fila. a mulher olha para ele, olha seus sapatos e num gesto contido diz não, não há por quê. ele que vá ao final da fila.
constrangido, ou quase constrangido, finge que seu telefone toca e finge que o atende e finge que tem alguma coisa para dizer e diz baixinho coisas ininteligíveis. depois vai até o final do corredor olhar vitrines.
sou a última da fila, logo atrás do homem que antes admirava o mentiroso. sorri amarelo ao perceber que era tudo mentira. e me pergunta as horas. não respondo. não entendo o que me diz.
é a minha vez.
12 de dezembro de 2011
9 de dezembro de 2011
o sonho
Quando os relógios da meia-noite prodigarem
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os voga-avantes de Ulisses
À regiao do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.
(jorge luís borges, a rosa profunda, tradução de josely vianna baptista)
Um tempo generoso,
Irei mais longe que os voga-avantes de Ulisses
À regiao do sonho, inacessível
À memória humana.
Dessa região imersa resgato restos
Que não consigo compreender:
Ervas de singela botânica,
Animais um pouco diferentes,
Diálogos com os mortos,
Rostos que na verdade são máscaras,
Palavras de linguagens muito antigas
E às vezes um horror incomparável
Ao que nos pode conceder o dia.
Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente.
(jorge luís borges, a rosa profunda, tradução de josely vianna baptista)
8 de dezembro de 2011
dia a dia
escrever o que me acomete, o simples, simples, nem sempre consigo.
reduzir um pouco a densidade.
faço uma dança para explicar aos meninos o que é o denso. um abraço é denso. brincar de roda não é tão denso. mas é intenso também, eles dizem.
entre concordar ou discordar há distâncias. e também elas nos socorrem.
reduzir um pouco a densidade.
faço uma dança para explicar aos meninos o que é o denso. um abraço é denso. brincar de roda não é tão denso. mas é intenso também, eles dizem.
entre concordar ou discordar há distâncias. e também elas nos socorrem.
7 de dezembro de 2011
ana também teve pesadelo
sonhei com o deus. e o deus era o valmor chagas. entre nós, um capinzal e, no meio do capinzal, as cobras. e o barulho delas, rastejantes. por mais que ele dissesse vem, não tive coragem. acordada, pensei: se era ele o deus, por que não vinha?
o medo. às vezes é uma merda.
(inspirado em texto de ana ramos)
o medo. às vezes é uma merda.
(inspirado em texto de ana ramos)
1 de dezembro de 2011
29 de novembro de 2011
metamórfica
santa maria da silva de nome nenhum, que tua misericórdia acolha nossa miséria cotidiana, nossa pequenez, nossa infinita vontade de nunca morrer. que a minha dor seque na medida das lágrimas que insistem e a minha mão possa de novo florescer. que a terra dura de sob os teus pés não me pise e cada verso que leio dos velhos poetas malditos me estrele o céu que silencioso me protege. santa nenhuma dos perdedores dos bêbados dos mutilados da alma que eu me entregue como um cão à vida, que saiba percorrer o horror do tempo que me faz fechar olhos para logo abri-los na miragem da galáxia do vendaval do mistério do ônibus lotado na cidade que não transita nossos corpos tatuados cheios de cicatrizes. que no sol do teu tempo, que feito um ventre me pariu, eu me pare e apodreça sem sofrer muito e morra sem me perder e desapareça como pó que cubra e recubra teu santo manto também nenhum. amém.
28 de novembro de 2011
22 de novembro de 2011
ao pote
a palavra um poço, um fosso, uma planta. a palavra uma construção. o que tem que ser. palavras que sobram não florescem não constroem nem protegem. palavras que sobram, nem água. em volta da palavra exata frase, todas as outras minas terrestres, armadilhas, muros, cercas, sustos. não me aproximo. desarmo, derrubo, destruo. gasto energia para chegar e quando chego palavra nenhuma posso. tanta palavra e eu a morrer de sede.
14 de novembro de 2011
11 de novembro de 2011
faixa
listras no chão e um semáforo entre a minha casa e a estação reduziram o volume de adrenalina que meu corpo produzia a cada ida a toda volta.
10 de novembro de 2011
do outro lado do atlântico
Andar a pé (publicado aqui)
Para as crianças dos pobres, a estrada é no Verão como um quarto de recreio. (...) Malditos sejam os automóveis sibilantes que frios e pérfidos avançam para os jogos das crianças, para o paraíso da infância, e chegam a pôr estes pequenos seres inocentes em perigo de ser esmagados. A ideia tremenda de que uma criança possa de facto ser atropelada por um desses triunfantes monstros mecânicos, quero afastá-la completamente, pois doutro modo a indignação levar-me-ia a declarações rudes, as quais, como é sabido, não levam a grandes resultados.
Às pessoas que passam num automóvel sibilante, lançando nuvens de poeira, mostro sempre um semblante carregado e duro e elas não merecem, realmente, mais. Pensam então que sou um controlador ou polícia civil, encarregue por altas entidades e autoridades de vigiar o trânsito e de registar as matrículas dos veículos para depois fazer uma denúncia. Mas o meu olhar sombrio recai sobre os veículos, sobre o conjunto, e não sobre os ocupantes, que só desprezo por uma questão de princípio e não por razões pessoais. Pois não entendo nem nunca entenderei que se considere um prazer passar acelerando por todas as formas e objectos que o nosso belo planeta exibe, como se um ataque de loucura nos obrigasse a fugir para evitar cair num terrível desespero. De facto, amo a tranquilidade e o repouso. Amo a parcimónia e a moderação e sinto a mais profunda aversão pela pressa e pela precipitação. E não é preciso acrescentar mais nada à pura verdade. Não é por causa destas declarações que deixará de haver automóveis em circulação nem o correspondente mau cheiro que polui a atmosfera e que, seguramente, ninguém aprecia e defende. Seria mesmo antinatural que algum nariz inspirasse com gosto e satisfação aquilo que para qualquer nariz humano normal, mesmo atendendo às mudanças de humor, só pode ser revoltante e nauseabundo. Mas deixemos o assunto por aqui e continuemos com o passeio. Que prazer celestial, benéfico, ancestral e simples o andar a pé, desde que os sapatos e as botas estejam em bom estado!
Robert Walser, O Passeio (1917). Tradução de Fernanda Gil Costa.
Para as crianças dos pobres, a estrada é no Verão como um quarto de recreio. (...) Malditos sejam os automóveis sibilantes que frios e pérfidos avançam para os jogos das crianças, para o paraíso da infância, e chegam a pôr estes pequenos seres inocentes em perigo de ser esmagados. A ideia tremenda de que uma criança possa de facto ser atropelada por um desses triunfantes monstros mecânicos, quero afastá-la completamente, pois doutro modo a indignação levar-me-ia a declarações rudes, as quais, como é sabido, não levam a grandes resultados.
Às pessoas que passam num automóvel sibilante, lançando nuvens de poeira, mostro sempre um semblante carregado e duro e elas não merecem, realmente, mais. Pensam então que sou um controlador ou polícia civil, encarregue por altas entidades e autoridades de vigiar o trânsito e de registar as matrículas dos veículos para depois fazer uma denúncia. Mas o meu olhar sombrio recai sobre os veículos, sobre o conjunto, e não sobre os ocupantes, que só desprezo por uma questão de princípio e não por razões pessoais. Pois não entendo nem nunca entenderei que se considere um prazer passar acelerando por todas as formas e objectos que o nosso belo planeta exibe, como se um ataque de loucura nos obrigasse a fugir para evitar cair num terrível desespero. De facto, amo a tranquilidade e o repouso. Amo a parcimónia e a moderação e sinto a mais profunda aversão pela pressa e pela precipitação. E não é preciso acrescentar mais nada à pura verdade. Não é por causa destas declarações que deixará de haver automóveis em circulação nem o correspondente mau cheiro que polui a atmosfera e que, seguramente, ninguém aprecia e defende. Seria mesmo antinatural que algum nariz inspirasse com gosto e satisfação aquilo que para qualquer nariz humano normal, mesmo atendendo às mudanças de humor, só pode ser revoltante e nauseabundo. Mas deixemos o assunto por aqui e continuemos com o passeio. Que prazer celestial, benéfico, ancestral e simples o andar a pé, desde que os sapatos e as botas estejam em bom estado!
Robert Walser, O Passeio (1917). Tradução de Fernanda Gil Costa.
5 de novembro de 2011
stoskopf
na pressa, disse ao peixeiro deixa que eu limpo. ao abrir o peixe abriu-se em mim o mais antigo livro ilustrado de anatomia animal. há tanto só supermercados em bandejas pedaços higienizados filmes plásticos brancos.
vísceras. também eu oculto.
um dos segredos da poesia é parecer ao outro que são suas as tripas que são minhas.
2 de novembro de 2011
cinquenta e seis
num dia vinte e três de outubro milhares de pessoas derrubaram uma estátua de seis toneladas. as estátuas – todos sabemos – não nos fazem mal. as ditaduras nos lembram que o percurso vale tanto ou mais que a chegada. o tempo passa, dou um laço que junta o fim ao começo. cinqüenta e cinco é um sopro. por dentro do sopro a vela em sua chama. a parafina fina cera de abelha um dia guardou mel. a flor vem da raiz. a raiz persiste. algumas, como algumas cigarras, adormecem quase décadas.
1 de novembro de 2011
como proceder ao encontrar animais feridos
primavera gelada e vento. olho pela janela e nada vejo. minha garganta rouca, os músculos imóveis. primavera céu azul e espero. espero. silenciosa. outubro quase sempre assim. nada posso. não estou triste. o ciclo vida morte vida de cada manhã. os filhos. somos sete bilhões e um espanto. há um cacho novo na bananeira. aos poucos me adaptei às saúvas. trocamos uns móveis de lugar. escrevo uma palavra por dia e parece demais.
Assinar:
Postagens (Atom)