19 de agosto de 2025

da nossa incapacidade de ver e gritar

o cão descobriu há algum tempo um ninho de pombos no oco da parede ao rés do chão. pensei que fossem ratos, não eram.
cada vez que passavamos por perto, metia o focinho tentando alcançar o ninho, o filhote. sem conseguir. estavam fora do seu alcance e eu respirava aliviada (e ainda certa de que fossem ratos).
hoje, perto do oco de parede, lá estavam a mãe pombo e seu filhote ensaiando voos.
e porque acreditei que ninho e filhotes estivessem fora do seu alcance e porque não reparei na aula de voo ali bem pertinho do oco ao rés do chão, deixei o cão solto.
o cão correu, saltou, abocanhou e matou o filhote. foi para um canto do parque com o pombinho na boca. enquanto devorava cabeça, vísceras, patas, partes mole, a mãe pombo não deixava de dar voltas e mais voltas onde seu filhote tinha desaparecido sem explicação.
em seus olhos a tristeza infinita de uma mãe que perde seu bebê.


a tristeza infinita de uma família quando matam seu bebê.
a tristeza infinita de um clã, de uma cidade, de um povo.
a tristeza infinita.
a tristeza da nossa humanidade quando matamos os bebês.
quantos bebês mortos se calcula que sejam necessários para que a tristeza seja densa, consistente a ponto de nos mover?
quanta tristeza é preciso?
quantos bebês alvejados, mutilados, mortos de fome para que se interrompa por fim o gesto, a mão de quem obedece e cale para sempre a boca de quem manda matar?

 

11 de agosto de 2025

não olhe

quem adivinharia as fomes da minha avó? quem veria as fomes da minha mãe? uma neblina densa nos cega e não vemos as crianças na beira de um mundo que se esfacela.
minha avó dizia para minha mãe que dizia para mim e minhas irmãs: não olhe para o lado ruim da vida, e desviávamos a vista do medo, do assédio, dos acidentes. vivíamos docemente instaladas num coração que nada vê por não conhecer as sombras.
foi preciso um raio, um talho na pele inflada e túrgida, para que a ferida purgasse os vermes, os venenos, os estupros, a dor.
para que, enfim limpa, a ferida fosse fome.
a fome que move o mundo, não a que o mata e nos devora desde dentro.

8 de agosto de 2025

o poder da opressão

aprendi com meu pai a cortar cordas, a cortar de uma só vez os tantos fios de que é feita uma corda: um golpe seco, e logo um nó para que o trançado não se desfaça.

quando é uma corda sintética, de plástico, aprendi com ele a queimar a ponta cortada e num movimento cuidadoso e certeiro de dedos umidecidos juntar toda aquela maçaroca ainda quente e derretida.

em ambos casos, nó ou fogo, não se podia perder tempo para manter a integridade da corda.

só estes dias, na ferrateria, aprendi que uma fita adesiva pode delimitar o lugar do corte mantendo unidos os fios para que não escapem da chama.

pode-se respirar e contemplar o processo sem pressa porque os fios unidos não se dipersam quando os aproximamos da vela acesa.

fiquei tão perplexa diante da ideia de conter à força e queimar o que tende a se esgarçar que nem notei o fogo invadindo a casa.

6 de agosto de 2025

o que parece um pesadelo

noite destas sonhei que uma lagarta verde incrustada no meu antebraço esquerdo era meu pai me lembrando alguma coisa que assim que acordei já não sabia mais o que era.

amanheci descompassada com o dia, ainda me arrastando dentro do sonho enquanto buscava com pressa alcançar o tempo que se antecipava e rompia copos e ritmos, os ritos e as palavras gentis.

quando enfim eu disse como aquela que disse que iria ela mesma comprar as flores ainda que não fossem flores que eu quisesse, quando eu disse vou eu mesma, e saí, nas ruas vi que nos braços esquerdos de todas as pessoas havia uma lagarta verde incrustada como lembrança de alguma coisa que nossos pais tinham dito não se esqueçam, e nós nos esquecemos.

umas crianças imóveis com o olhar meio morto esperavam nas calçadas enquanto nós nos mantínhamos ocupados tentando decifrar o mistério das lagartas.

não reparamos nas crianças, nem notamos que pouco a pouco todos nos dissolvíamos numa neblina densa. no ar o cheiro das carnes que apodrecem depois da explosão.

4 de agosto de 2025

das lágrimas

em outros tempos, alguém inventou um pote para guardar lágrimas: pequenas ânforas de vidro e uma tampa que mal fecha. depois de guardadas as lágrimas, era preciso esperar que secassem. quando as lágrimas desapareciam, encerrava-se o luto.

tem vezes que a morte se aproxima e ronda, ronda, ronda e não se afasta por nada, repara.
olho em volta e constato tanta morte, tanta morte, e chego a ter medo do meu próprio fim.
depois, de tanto vê-la, a morte, entendo melhor as duas pontas desta vida e uma flor se abre em pleno verão.
o medo se reclui e me preparo para quando for, de fato, minha vez.
aprendo a chorar o tanto que escave na pele uns vãos por onde passe, de leve, uma brisa.

31 de julho de 2025

aquisição da linguagem

sentado ao meu lado
aprende as palavras pela repetição.
abro a janela e, quando entra o sol, digo: que dia bonito...
e ele repete: bonito...
e a palavra ecoa: bonito...

dias depois, sentados diante da mesma janela,
comento: que dia azul!
e ele repete: azul!
na minha mesma entonação de felicidade.

passa muito tempo até que
diante de uma caixa de tintas,
separando uma delas, diga: azul bonito.
eu repito concordando: esse azul é mesmo bonito
e guardo em mim um lampejo de alegria.

terão passado mil anos quando finalmente diz
que gosta, mesmo, é do rosa
e dos dias cinzentos de chuva.

e nós duas sorrimos.

6 de julho de 2025

*cage, **tsvetaieva e o genocídio em gaza

aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a guerra, a cozinhar com o que se tem em casa, não desperdiçar e aproveitar o que se pode encontrar: na geladeira, nos armários, no quintal, na beira dos caminhos. parece simples, mas exige uma certa arte para combinar sabores, cores, consistências. às vezes fica muito bom. outras vezes nem tanto. e umas poucas vezes chega a ser difícil de engolir. porque nem tudo combina com tudo. algumas vezes nos vencem o ódioi, o mofo ou as bactérias.

ultimamente me vejo fazendo poesia assim, aproveitando restos, palavras, silêncios* que não couberam em nenhum texto, canção, carta que eu tenha escrito. então, reúno tudo o que sobra, ponho sobre a mesa e busco um ritmo, uma imagem, uma estrutura que os conecte e nos ajude a estar “um milímetro de ar acima do chão”**. não é fácil. tenho falhado sistematicamente nisso de reunir estas palavras que sempre são tratadas como as sobras das sobras, aquilo que ninguém quer.

 

1 de julho de 2025

das crias e crianças

quando ele começou a falar, também começou a perguntar "por quê?" de tudo, tudo. e nunca mais parou de perguntar. a vida levou por caminhos nem sempre fáceis de compreender, mas ao olhar para trás vê-se muita beleza. dia desses foi sua formatura numa graduação dupla de física e filosofia na universidade de st andrews, no reino unido. foi bem emocionante. um tanto pela graduação com as cerimônias que gostam de lacrimejos, e um outro tanto, bem maior, por ver alguém se fazendo, se formando gente, se buscando e se encontrando, um processo contínuo de formação e perguntas. muitos que aquí me lêem me conhecem bem antes do chico ser., depois o conheceram na barriga, acompanharam a aventura de nascer, crescer, respirar, seguir respirando. e se ele vai se tornando quem é, isso também é resultado de quem está nas nossas vidas, dos que passaram e já não estão, dos que permanecem, de todos que deram pitaco, que deram apoio ou bronca, que cuidaram, que educaram, que alimentaram, e, principalmente, de todos que tiveram paciência para ajudá-lo, se não a encontrar respostas, ao menos encontrar os caminhos que o levem às respostas e aos porquês.
como digo sempre, as crianças não são da mãe e do pai, são do coletivo humano que somos. a este coletivo agradeço todo o apoio para chegarmos até esse momento com esta nossa cria. 

16 de junho de 2025

mãos, joias e poemas

contar uma história sempre nos pede uma decisão de onde recortar o tempo vivido, onde dizer aqui começa e onde o aqui termina. esta é uma história bem pequena, de um acontecimento que quase não tem importância para o momento-mundo que vivemos, e ao mesmo tempo é uma reserva de não-inferno, porque são estas reservas que nos fazem seguir respirando e buscando uma nova maneira de estarmos vivas.
há alguns meses alguém me mandou uma mensagem perguntando se poderia me apresentar uma proposta de um projeto coletivo que envolvia poesias e joias. minha primeira reação foi: será que eu conheço esta pessoa e não me lembro dela? e a segunda reação foi pensar que eu não sou alguém que se interesse muito por joias, se joias forem ouro e pedras preciosas. sou mais de tucum e outras sementes, contas de vidro e miçangas. mesmo assim, fiquei curiosa e topei receber o convite.
não, eu não conhecia a pessoa que tinha me convidado.
a proposta era simples: vinte e duas palavras disparadoras para vinte e duas joalheiras que dialogariam com vinte e duas poetas. o resultado final de cada parceria seria uma obra composta por uma joia e um poema.
não costumo escrever poesia por encomenda, acho dificílimo. mas como tem sido difícil escrever, e os diálogos sempre me levam a lugares inesperados (e eu gosto disso) topei.
minha parceria seria uma joalheira alemã. e nossa palavra disparadora seria “mãos”.
escrevi para ela propondo um café para que nos conhecessemos, imaginando que vivia na mesma cidade que eu. me respondeu em outra língua, explicando que não sabia escrever na língua que eu tinha escrito e que morava bem longe de mim. faríamos tudo por escrito.
como dependeríamos de um mecanismo de tradução, decidimos que cada uma escreveria em sua língua materna, para que o texto fosse fluido: ela em alemão e eu em portugues. (sim, eu sei, os mecanismos de tradução não são perfeitos mas seriam suficientemente bons para esta correspondência que inspiraria uma joia e um poema.)
e foram várias semanas de trocas, pensamentos, ideias em torno de mãos, de heranças, de origens, do significado da continuidade, do nos vermos refletidas nas que vieram antes de nós, nas que nos são contemporâneas, no que sentimos sobre palavras, pedras, joias.
sempre que eu enviava o meu email, sabia que em algum momento entraria um “liebe veronika” e eu conheceria um pouco mais da “querida julia”.
ela não sabia bem que joia fazer. me explicou a origem das pedras que usava, eu comentei um pouco do meu jeito de escrever. mandei para ela o meu poema “as mãos da minha mãe”, porque me parecia que tudo o que eu poderia dizer sobre mãos estava ali.
e na medida que o tempo passava, algumas palavras foram ganhando mais presença na nossa troca de correspondencia. e eu comecei a guardar estas palavras, uma lista, como quando eu escrevi as letras para as composições do remo.
ela me mandou fotos das pedras e das suas mãos trabalhando as pedras.
também eu compartilhei fotos das minhas mãos.
vi seu sorriso.
e revi tudo tudo tudo o que para mim querem dizer as minas - a nossa história de colonia e escravidão, as serras peladas, as violências, as misérias, o desmatamento e tudo tudo tudo que acompanha. a desigualdade no mundo. mas pensei também no quanto tudo isso é decisão. decisão: caminhar ou não no escuro à procura de luz.
e escrevi uma primeira versão.
e julia me mandou uma primeira ideia do que faria com as ágatas.
avancei no meu poema enquanto ela avançava na joia que seria composta por duas partes, que poderiam ser levadas pela mesma pessoa, como quem cruza as mãos sobre o peito, ou levadas por duas pessoas diferentes, que se dão as mãos, que se conectam e conectam seus destinos.
ela me mandou fotos da joia pronta e eu mandei o poema traduzido para o ingles (porque os tradutores automáticos não sabem traduzir poesia) e mandamos as duas partes da obra - joia e poema - para a galeria onde seria a exposição.
no final de maio, na abertura do 22 Mudanzas na Galeria Amaranto, fui lá ver joia e poema expostos juntos, formando um todo no meio de outras obras.
sempre me emocionam as ações conjuntas, alguma espécie de coletivo. escrever pode parecer muito solitário, mas nunca é. a origem é uma multidão e o destino também. mesmo quando a gente acha que está escrevendo pra gaveta.
uns dias depois da abertura da exposição, houve um recital, com a presença de várias das joalheiras e várias das poetas. e foi muito bonito. uma casa com quintal e árvores que me lembrava a casa onde morei quando as crianças eram pequenas, gente amorosa, bem humorada, querendo ver e saber e escutar. eu sabia que julia não viria. mas foi como se estivesse. botei no meu peito uma parte da joia e marta, uma amiga que se dispos a ler o poema em castelhano, botou a outra metade em seu peito. um broche de ágata conectando linhas e luzes, cruzando caminhos. e um poema que fala disso, de mãos.
não sei bem onde esta história começou nem onde vai terminar, mas o que eu tinha para contar agora era isso, esse momento diáfano no meio do caos. e as nossas mãos.
 

agradeço à marina gurman e à grego garcia pelo convite.
e à julia obermaier pela parceria.

se quiser conhecer as obras que compõem o 22 Mudanzas, visite:

https://amarantojoies.blogspot.com/2025/05/22-mudanzas.html


 


3 de junho de 2025

abre os olhos

quando envelheceu, minha mãe, deixou de ir à praia caminhar, mas a cada dois ou três dias, ia ao encontro dos pescadores quando voltavam com seus barcos e redes, carregados de peixes.
ela nao gostava muito do cheiro do peixe fresco, nem se deixava impressionar pelos reflexos prateados à luz da manhã. o que ela gostava, mesmo, era das conversas: saber notícias da pescaria, da vila, dos filhos e netos dos pescadores que ela, à sua maneira, tinha ajudado a crescer.
na última vez que estive com ela, me acordou muito cedo dizendo estou indo. eu, morrendo de sono, tive vontade de dizer que não, que não ia ou talvez no dia seguinte. mas nao disse nada, me levantei, lavei a cara, me vesti.
vimos os barcos chegarem, vimos trazerem os peixes e os camarões, e minha mãe, enquanto escolhia, foi puxando conversa com um, com outro, até que o pescador com quem ela conversava de repente interrompeu o que dizia e apontou para o limite difuso entre os azuis do céu e do mar.
baixou um silêncio sobre todos nós, um silêncio mínimo, denso, e na linha do horizonte vimos o jorro de dezenas, dezenas de baleias que seguiam a caminho de abrolhos.

7 de maio de 2025

o tortuoso caminho da floração

misturo tudo e amasso. amasso e espero.

ontem reavivei o fermento. na noite, cresceu esponjoso, amplo, fresco, como cresce meu pensamento em pontes e oquidões construídas com a matéria áspera do mundo, buscando o tortuoso caminho de ser alimento.

meu pensamento fermenta as palavras que comi ontem hoje amanhã, e entre elas formam-se bolhas, espaços aéreos inflados, umas sobre as outras, construindo uma estrutura que se mostra frágil e firme -- matéria e vãos -- alegria e suavidade, ou não.

numa das páginas do livro de receitas encontro anotações da minha filha, de quando ela ainda não sabia escrever, de quando eu nem sabia que seria minha filha. as letras inventadas me lembram minúsculos animais e plantas nascidos da chuva alegre de farinha espalhada pelo chão e nossas mãos polvilhadas e olhos repletos de um mistério azul, que ainda estava por vir. o que ela ali escreveu enquanto eu preparava outras massas não fazia sentido algum até que agora, anos depois, com a minha infinita lentidão sou capaz de olhar e ler, agora olho e sei, sei e intuo tudo aquilo que, naquele momento já estava dito, mas nem ela sabia nem eu teria sabido como dizer.

 

22 de fevereiro de 2025

listas

 

gosto de listas. das tantas listas que gosto, esta, do asas do desejo é, para mim, uma das mais lindas:

"do asas do desejo:
ao subir a montanha, o vale brumoso recebeu o sol,
o fogo no pasto,
as batatas na cinza,
o extremos oriente,
o oeste selvagem,
o lago do grande urso,
tristão da cunha,
o delta do mississipi,
stromboli,
albert camus,
a luz da manhã,
os olhos da criança,
a queda d'água,
as primeiras gotas de chuva,
o sol,
o pão e o vinho,
a esperança,
a páscoa,
os veios das folhas,
a cor das gemas,
os seixos no leito do riacho,
as toalhas de mesa no varal,
o sonho da casa na casa,
o ente querido dormindo no quarto ao lado,
o vôo noturno,
o belo forasteiro,
meu pai,
minha mãe,
minha esposa,
meu filho..."

19 de fevereiro de 2025

ah estas canções


na adolescência escrevia poesia em versos. não que fossem grande coisa. tudo a se jogar fora: exercícios. o principal foi concluir que eu não queria versos na minha poesia. queria a poesia sem versificar. uma opção para não afastar quem não gostasse de poesia. no fim das contas, afastaram-se quase todos: os que gostam de poesia porque não encontram ali os versos, os que gostam de prosa porque não encontram ali a narrativa fluida. um vão: a poesia sem versos é um vão. cuidado com o vão.
quando mergulho na letra para canções, volto pro princípio de uma elaboração poética, ainda mais difícil do que versificar ou rimar, porque o ritmo e as tônicas já estão dadas, já está dada a medida da frase, há uma estrutura metálica encaixada que pede um certo recheio. a palavra como recheio é um exercício mental dificílimo para mim, que nunca escrevi um soneto. e deveria ter escrito, deveria ter feito este exercício mesmo que depois não quisesse permanecer no soneto, fazer para conhecer a dificuldade de esculpir a pedra da palavra.
depois de fazermos algumas canções, o compositor das músicas publicou a primeira, e a reação de quem ouviu foi que a letra era complexa demais pra melodia, ou que não era possível entender a letra sem ler, ou que não era alguma coisa que daria vontade de cantarolar ou ficar ouvindo muito tempo. fiquei impactada.
foi como me des-locar, foi o tal de perder o rebolado. e foi também como perder a palavra, perder todas as palavras que poderiam ser matéria para fazer recheio de melodia.
demorei dias para entender que eu estava diante do que edward hirsch comenta sobre a rima: que se a rima ganha, o poeta perde. no caso da canção, se a palavra ganha, a canção perde. mas também serve pra música: se a música ganha, a canção perde. o desafio numa canção, tanto quanto num poema, é que não pareça uma criação, não se veja ali as emendas. o segredo é ver no bloco de pedra o cavalo que há dentro, mas não deixar rastros da lasca de pedra nem deixar ver o cinzel.

 

10 de fevereiro de 2025

betta splendens

era um peixe pequeno e azul. veio morar comigo no dia dos meus vinte e cinco, quando uma mini multidão que eu (des) conhecia encheu o salão do prédio. o peixe, o peixinho azul minúsculo, chegou na água de um vidro gordo de maionese hellmans e ficou no chão do salão junto com as flores e presentes que eu mal lembro. na hora de levar tudo aquilo pro apartamento, pro quarto onde eu dormia e já era madrugada quase azul e toda a mini multidão tinha ido embora e a solidão daquele fim de festa tomou conta de mim, tomou conta dos meus olhos, do meu cansaço, foi então que vi no pote bojudo, no pote de hellmans com água até a borda, com uma água limpa e transparente que tinha feito o papel de lupa ampliando máximo o tamanho mínimo do peixinho azul, naquela água vi uma mancha, um algo que boiava, um trapo, um fiapo, um pedaço caído do céu da manhã. naquele dia aprendi o quanto as festas celebram o que já passou, a morte boiando nos meus olhos, o reflexo azul entre as mãos.

27 de janeiro de 2025

BWV974

a vizinha é professora de piano. ainda que não tenha sido lá uma boa vizinha, é uma boa professora. sei disso porque os alunos começam o semestre tocando muito mal. e rapidamente ficam bons, vão embora. é bom para os alunos, mas não tão bom para nós, que ouvimos como tudo recomeça: as notas inseguras e desafinadas de aprendizes. semanas difíceis para quem mora ao lado.

como sempre são os alunos que tocam, sabemos também quando eles faltam porque nestes dias nada de musiquinhas bestas em repetições exaustivas. só o silêncio. uma hora de silêncio.

uma tarde destas choveu muito, justo na hora da aula de piano da vizinha. o aluno que teria que vir não veio mas no lugar do silêncio, o piano soou. e soou de um jeito muito bonito. obviamente era a vizinha tocando. foi uma tarde bonita. pela janela víamos a chuva, a tarde lenta e cinza de inverno, enquanto a música do piano da vizinha nos fazia companhia sem atrito, sem aspereza.

no dia seguinte, escrevi para ela pelo aplicativo de mensagens. desta vez, em vez de reclamações, era um agradecimento. disse que tinha sido uma tarde bonita, disse da chuva, do cinza e da música que nos fez companhia. a vizinha, que em geral não é lá uma boa vizinha, agradeceu. se desculpou pelo barulho. eu disse que não era barulho, não era incômodo.

dali em diante a vizinha passou a sorrir para mim nas poucas vezes que nos vimos nos corredores, no elevador, na portaria do prédio.

agora ela toca mesmo quando não é hora de aula e já não espera que faltem os alunos.

nalgumas tardes, estamos só nós duas: eu e a vizinha, cada uma de um lado da parede. ela toca e eu sei que ela sabe que eu escuto. escuto atenta, acompanho os erros e a repetição, me alegro com ela quando por fim se apropria da melodia e segue segura de si. ela sabe que eu sei que ela sabe que sou seu público e que desde aquela tarde de chuva ela toca pra mim e me faz companhia nestes tempos cinzas e tristes de inverno.

 

22 de janeiro de 2025

paciência

me lembro da minha avó jogando paciência enquanto meu avô fazia yoga no chão da sala seguindo as lições de um tal hermógenes num livro que guardei mas não me lembro aonde.

me lembro, sim, da minha avó pacientemente inventando sopas saladas musses flores de pano panos de prato roupas de boneca e teorias que explicassem a formação do universo enquanto meu avô resolvia palavras cruzadas do estadão, e ainda hoje me lembro do cheiro do jornal que nos esperava de manhã na porta de casa.

como meu avô esperava as manhãs para caminhar até o fim do mundo.

como minha avó já não esperava, porque sabia o quanto há muito tudo era noite.

me lembro que até hoje sempre houve um depois.

enqiuanto isso jogo cartas no chão da sala e o mundo se aproxima perigosamente de algum fim.

17 de janeiro de 2025

baby, eu sei que é assim

quando meus filhos eram bebês, eu ficava horas parada olhando o minúsculo peito deles subindo e baixando a cada respiração. o movimento, como um pássaro que sai do ninho e procura, me dava a certeza da vida contínua que nos atravessa.

agora que os filhos respiram longe de mim e já não posso passar horas olhando para eles enquanto dormem, observo meu cachorro. a cor do pelo dele é igual a cor dos cabelos dos meus filhos e ele respira compassado ao sol de inverno. nesses momentos meu amor, feito luz, se amplia multiespécie sabendo que desentende suas alegrias e suas tristezas tanto quanto desentendia a mim mesma e os meus bebês.

 



choices
(tess gallagher)

I go to the mountain side
of the house to cut saplings,
and clear a view to snow
on the mountain. But when I look up,
saw in hand, I see a nest clutched in
the uppermost branches.
I don’t cut that one.
I don’t cut the others either.
Suddenly, in every tree,
an unseen nest
where a mountain
would be.


 

29 de novembro de 2024

louça suja

ao sair da casa de uns amigos depois de uma festa, uma casa ampla, diáfana, ventilada, notei que a louça era muita na pia. não se abandona uma festa deixando a louça suja. enquanto lavava sem muito método, sem ensaboar primeiro copos e taças, xicaras e pratos, mas o que me caía nas mãos, notei numa mureta à minha frente uma caixa de vidro com um bloco de gelo e, incrustado no gelo, o que parecia um filhote de pássaro ou morcego. na medida em que a louça ia sendo ensaboada, o bloco se desfazia e o bichinho começava a se mexer. fui chamar alguém que soubesse dizer o que era aquilo. ninguém sabia. quando voltei para louça e para o mistério que morava no gelo da caixa de vidro, ao mudar o ângulo de visão, pude ver melhor que era um filhote, de cachorro talvez, olhando espantado para mim. estendi a mão como quem quer proteger, fazer um carinho, dar de comer, e, de repente, o bicho salta na minha direção e, na medida em que avança, cresce de maneira improvável e rosna e ameaça, garras e presas. me afasto do seu caminho, ele corre imenso na direção das pessoas reunidas na sala. acordo aos gritos.

de onde esta insistência em transformar em palavras uma imagem que me chega tão perfeita em sonhos?

 

31 de outubro de 2024

pista

em diásporas, as famílias ficam espalhadas pelo mundo todo. a nossa não foi diferente. exilados húngaros vivendo no brasil, no nosso cotidiano éramos um núcleo minúsculo: meus irmãos, meus pais, os pais da minha mãe e a mãe da mãe da minha mãe. e por toda parte, em todos os continentes sabíamos de alguém que era da família, mas não conhecíamos. ouvíamos histórias engraçadas e trágicas, sabíamos de modos de ser, de rir, acompanhávamos as notícias por cartas que demoravam tres meses para chegar. às vezes, víamos fotos, e aquele um da família ganhava um rosto. como as fotos eram raras, muitos rostos ficaram cristalizados na memória em determinada posição, determinada idade, por mais que o tempo passasse. por mais que o tempo tenha passado.
uma das pessoas de quem mais tínhamos notícia era do meu tio. único irmão do meu pai.
minha avó perdeu um filho antes que meu pai nascesse e mais dois depois. mesmo sem foto, sei històrias dos irmãozinhos, conheço o lugar onde estão enterrados. quando meu pai tinha dezesseis anos, nasceu meu tio. e quando meu tio tinha seis anos, meu pai foi embora da hungria, na revolução de 1956. por isso, por muitos anos meu tio era o irmãozinho. isso pra nós, crianças, não fazia muito sentido porque em todas as fotos, e mais especialmente na foto do seu casamento, ele já parecia um adulto. ele era dezesseis anos mais velho do que eu.
em 1975 fomos pra hungria. sem muito aviso porque, apesar das notícias de uma anistia aos que tinham saído na segunda guerra ou em 56, meus pais não sabiam se teriam autorização para passar a fronteira.
me lembro do trem parado, os guardas russos entrando e abrindo todas as malas, a luz amarelenta na noite de inverno, a espera, o coração acelerado por ver minha mãe aflita. e depois o trem seguindo. depois chegávamos na estação da cidade onde meu pai tinha nascido. depois pegávamos um ônibus. depois andávamos muito numa noite fria num caminho nevado. depois chegávamos numa casa fechada e no escuro. meu pai jogou uma pedrinha na janela, e mais outra. até alguém perguntar quem era e meu dizer com a simplicidade dos filhos quando voltam pra casa: sou eu. e depois disso, alguém abriu a porta, saiu correndo e nos abraçava chorando e nos levantava no ar. e queria saber, e perguntou sobre lápis de cor e cadernos de desenho e isso pareceu tão engraçado e esse era meu tio.
depois, ao longo dos anos, nos vimos algumas vezes. muito menos do que eu gostaria, mas todas as vezes de um jeito tão amoroso e fluido como se tivéssemos convivido a vida inteira. ele me contava coisas sobre minha família paterna que tinha ficado na hungria. confirmava ou contradizia o que meu pai me explicava. me contava coisas do meu pai que meu pai, mesmo, não comentava nunca. me falava da minha avó, que só encontrei quando ela foi nos visitar e eu mal tinha feito dois anos. meu tio acreditava na construção de um mundo mais justo, acreditava no socialismo ainda que tenha vivido todas as dificuldades impostas pela ocupação soviética e sua cortina de ferro. meu tio era amplo e o olhar sempre iluminado.
foi um professor com muita vocação pra ensinar. também foi diretor de escola e secretário de educação. tinha paixão pelo que fazia. e apesar da formação em exatas, conhecia os grandes poetas húngaros, sabia vários poemas de cor. em uma das vezes em que estive na hungria e buscava caminhos pra traduzir atila jozsef, me lembro de estarmos em volta da mesa do pequeno apartamento onde vivia, e ele e minha tia lembrando de poemas que mais gostavam e recitando e comentando como se o atila fosse um amigo próximo.
uma história engraçada que nos divertia foi quando ele pôde finalmente ir pro brasil. e não sei se foi numa carta, num telefonema ou já quando chegou, ele disse que o sonho dele era subir numa bananeira e comer bananas até não poder mais. a imagem de alguém subindo numa bananeira só é engraçada pra quem tem clareza de como é uma bananeira. e nós, que nascemos e crescemos no brasil, tínhamos muito claro como era uma bananeira. e ríamos. e ele também riu muito quando viu.
um outro momento que sempre me emociona quando lembro foi quando meu tio, que só falava húngaro, conheceu meu marido, que não falava nada de húngaro. e mesmo assim depois de uns copos de pálinka, conversaram animadíssimos sobre política e pedagogia, sobre o mundo e os sonhos que nos habitam. ele tinha essa capacidade, a de sair de si para entender o outro.
meu tio e sua mulher tiveram uma filha, minha única prima por parte de pai, com quem tenho uma cumplicidade de irmã. ela viveu um ano no brasil para aprender português e estar mais próxima de nós, seus primos. agora é sua filha que se interessa pela família do outro lado do atlântico. e se essa cumplicidade existe é porque meu tio, assim como meu pai, não só se cuidaram e se amaram muito mas se preocuparam em construir vínculos, apesar dos milhares de quilometros que nos separavam.
depois que meu pai morreu, fui à hungria para encontrar com meu tio. e ali entendi que eles tinham gestos parecidos e um mesmo modo de abraçar. e era bom reencontrar meu pai no meu tio. e era bom saber que meu tio estava ali, aqui. de algum modo perto.
e agora ele não está mais.
anteontem, minha prima me disse que depois de uns dias agitados, meu tio tinha se tranquilizado. mas quando ela disse que ele falava o nome do meu pai e de uma prima deles que sempre foi muito acolhedora, cúmplice e maternal, eu entendi o que eu não queria entender.
 

"e o amor ainda estava lá..."
 

a vida tem disso, sigo carregando meus mortos, que seguem seus caminhos em nós. meu tio em mim.
um dos últimos presentes que ele me deu foi dizer que eu estava ficando cada vez mais parecida com a minha avó. foi quando li as cartas que minha avó tinha escrito para o meu pai, é que entendi o quanto isso foi um jeito dele dizer do seu carinho.
 

a diáspora espalha as sementes, mas, se elas brotam, as raízes se conectam.

em memória de paulics istván (10.08.1950 - 31.10.2024)

18 de outubro de 2024

histórias de um nome



dia desses, nalguma das redes digitais, alguém comentava sobre nomes e sobrenomes e mudanças quando se muda de país. pensei em escrever sobre isso também, depois mudei de ideia - a quem interessa, se não a mim mesma? então, escrevo, registro para organizar o pensamentto para mim mesma.

a questão sempre é onde começar a narrativa. mesmo que seja de uma coisa besta e supérflua como essa: o nome oficial.

posso começar com a minha mãe se casando com meu pai. ela, vindo de uma família aristocrática húngara decadente, e ele, vindo de uma família de camponeses húngaros, se encontraram no brasil, se gostaram, resolveram se casar. com todo o conflito da diferença da origem de classe. minha mãe tinha seis nomes e um sobrenome von alguma coisa, numa pseudo-nobreza. meu pai tinha um nome e um sobrenome que quer dizer filho de alguém. na hora dos papeis, minha mãe pediu para tirarem os nomes que sobravam e também o sobrenome que tinha herdado do pai. (nesse momento me lembro que o sobrenome que ela teria recebido por parte da mãe também não era simples porque minha avó tinha trocado de sobrenome quando foi adotada oficialmente por sua tia e madrinha.) minha mãe, depois de casada, ficou com um nome e um sobrenome (o do marido).

quando nasceu minha irmã, que era a primeira filha dos meus pais, minha mãe quis colocar um nome simples, curto e bonito que ela tinha visto num dos romances do josé de alencar. o padre húngaro, que não conhecia muito de literatura brasileira, disse que aquele nome supostamente indígena não servia para batizar. precisavam acrescentar algum nome cristão. meus pais, então, acrescentaram os nomes de suas mães ao nome da minha irmã. daí ella ficou com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

quando eu nasci, ainda que meu nome fosse de uma santa católica, pareceu pouco pros meus pais, ou lhes pareceu injusto que minha irmã tivesse três nomes e eu ficasse só com um, ou eles tinham uma reserva de nomes que não sabiam se poderiam aproveitar depois e decidiram usar tudo de uma vez. assim eu fiquei com tres nomes e o sobrenome do meu pai.

nascidos meus irmãos, o primeiro recebeu, além do seu nome, os dois nomes dos meus avôs, e o segundo ganhou uns nomes aleatórios, ou quase aleatórios, como eu.

éramos quatro filhos e tínhamos doze nomes. nada mal para quem gosta de nomear.

e nenhum dos quatro herdou sobrenome da mãe.

passam os anos, a gente aprende a ler, a escrever e a soletrar os nomes raros, aprende a soletrar com paciência o sobrenome e vai se acostumando a ser aquela multidão.

uma das vezes que fui fazer o passaporte, a moça na polícia federal brasileira me diz: não tem lugar para tres nomes. e eu: ? e ela: não tem problema, eu posso colocar aquí no campo dos sobrenomes porque tem espaço para vários… e concordei. o que é se pode fazer numa situação dessas?

o tempo passou. viemos para espanha. na hora de me registrarem como estrangeira, colocam meu primeiro e segundo nomes como nomes e eis que o meu terceiro nome transformado em sobrenome por falta de campo para incluir tres nomes no passaporte brasileiro se transforma no meu principal sobrenome. quando me chamam senhora fulana, sempre penso: que engraçado, também sou fulana, não é comum esse nome… e logo me dou conta que sou eu, a senhora fulana….

paralelamente a isso, antes mesmo de me mudar para espanha, foi reconhecida minha cidadania húngara, por ser filha de húngaros emigrados pro brasil. quando vou preencher os documentos me dizem: não cabem tres nomes no registro civil húngaro, é preciso escolher. na dúvida, ficou com o primeiro e o segundo nome. o sobrenome? não me dão alternativa, será o do meu pai, esse que já carrego a vida toda. dou entrada nos papeis e espero os documentos. que demoram.

vivendo na espanha, como iberoamericana, em dois anos podemos pedir a cidadania por residencia. entramos com o pedido. passam os meses, quando me chamam pro registro civil, olhando meu registro brasileiro, me dizem: tem que escolher dois dos tres nomes. digo: fico só com um, o meu. eles dizem: não, não pode, tem que ficar com dois dos três. como sou senhora fulana, digo: então, fico com o meu nome e o terceiro, esse que pensam que é meu sobrenome. eles dizem: ótimo. e acrescentam: e o seu sobrenome de pai e mãe é igual então seu nome será primeiro nome, segundo nome, sobrenome e sobrenome (repetido). eu digo: não, minha mãe tinha outro sobrenome. eles dizem: traga isso registrado num papel.

então, suspendo o processo e peço uma cópia da certidão de casamento dos meus pais porque ali está registrado o nome e o sobrenome de solteira de ambos. meu irmão me manda o documento, levo o documento pro registro civil e ganho um terceiro nome no mundo: meu primeiro e terceiro nomes, sobrenome do meu pai e sobrenome de solteira da minha mãe (aquele metido a nobreza, mas eu faço de conta que não vi o “von” e eles fazem de conta que não viram também. ao menos disso eu me livro…).

há quem diga que uma das grandes questões que vivemos em processos de migração voluntária ou involuntária é a crise de identidade. não temos velhos amigos, não reconhecemos os espaços, a história do lugar onde passamos a viver, não sabemos as canções de infância, não temos em comum isto que se chama trivialidade cotidiana nem as referencias culturais. além disso, quase nem nosso nome conservamos.

no registro brasileiro sou uma, no registro húngaro sou outra e no espanhol sou uma terceira. se somos nosso nome, já não sei quem sou. mas sempre multidão.

antes eu era só uma: verdadeira imagem mística presente de deus filha de paulo.