9 de janeiro de 2024

de alguma fome nasce a luz

(Manuel Rodríguez-Castelló, outubro de 2023)

As correspondencias e diálogos artísticos são há muitos anos parte substancial do trabalho poético de Joan Navarro (Oliva, 1951). E se apresentaram até agora principalmente de três formas: através da revista digital de arte e literatura sérieAlfa que o autor mantém desde 1999 e que já trouxe à luz 99 números com excelentes mostras de poesia contemporânea de todo o mundo na língua original e em traduções multilingues; no trabalho de tradutor (toda tradução é acima de tudo uma correspondência) passando para o catalão novelas de Pasolini, a obra poética de Orides Fontela, Ossos de Sípia (com Octavi Monsonis) de Eugenio Montale e poetas brasileiras como Elisa Andrade e, precisamente a poeta que ora os ocupa, Veronika Paulics, dentre outros; há também os livros feitos conjuntamente com o pintor Pere Salinas (Barcelona, 1957 - Vilanova del Vallès, 2023), uma extraordinária correspondencia entre imagens pictóricas e poemas, Atlas (2008), Grafies-Incisions (2010), O: Llibre d’hores (2014) e Llum cinabri/Calma tectonica (2015), com a incorporação neste último da poeta argentina Lila Zemborain.

A poeta brasileira Veronika Paulics, a outra voz deste tão sugestivo Liquens, nasceu em São Paulo em 1967 e há uns anos vive em Barcelona. Além de ter traduzido para o português, dentre outros Magrana/Romã de Joan Navarro, é autora dos poemários cães da memória (2002), a pé/a peu (2018) e casa de mim (2019) e dos blogues ando a pé e vem e devora (coletivo).

Liquens, o trabalho que hoje resenhamos, reúne 31 composições duplas e espelhadas (tantas quanto o número máximo de dias de um mês) ou 62 poemas datados entre 6 de setembro de 2019 e 11 de janeiro de 2022 que se apresentam no formato de poemas em prosa. Ainda que não estejam assinados, algumas constantes nos permitem distinguir nitidamente a autoria, os poemas de Veronika Paulics nas páginas pares, sempre em minúsculas, datadas em Barcelona com o dia, nome do mês e o ano, os de Joan Navarro nas ímpares, com a data em numerais e uma breve citação ao final de cada poema. O título deste magnífico poemário, o primeiro em que assistimos à correspondência puramente textual entre dois poetas (nos livros já citados de Joan Navarro estavam sempre presentes as imagens de Pere Salinas), remete à ideia de colaboração simbiótica. De fato foi o estudo dos liquens que levou ao surgimento do termo symbiotismus, inventado em 1877 por Albert Bernhard Frank, para explicar “este organismo de natureza dupla, produto da simbiose entre um fungo e uma alga ou uma cianoficia, que apresenta morforlogia e fisiologia próprias, geralmente bem adaptado a ambientes pouco favoráveis às plantas vasculares”. Dois seres vivos, portanto, trabalham conjunta e solidariamente e o processo de relação entre eles dá à luz uma coisa nova que os ajusta e ao mesmo tempo os transcende, duas vozes que harmonizam, acoplanto ao seu canto ecos de perguntas e respostas que se entrecruzam e se superpõem, que atingem o zenit do mesmo silêncio, a infinitude de paisagens das palavras que se atraem e se repelem, que nascem e se extinguem, uma criação que somente pode ser um ato de amor, os frutos de uma paixão, as viagens inspiradas da correspondencia me múltiplos sentidos, dentro e fora, para frente e para trás. A vida vivida na própria carne e a vida nos outros. A vida transformando-se no ritmo das palavras. Na sutil interação, no intercambio mensal de cartas que incendeiam cada manhã e abrem a fome onde nasce a luz, a voz que se oferece ao outro retorna como um eco aumentado e corrigido, pleno de novos matizes, material verbal onde tudo se aproveita, nivel da criação mais alta, sutil ecologia poética. Os pigmentos com os quais os poetas pintam o mundo se mesclam e iluminam novas formas e cores. A voz, misteriosamente, é a mesma e é diferente a cada caída de folha: é a sabedoria do diálogo que se afasta das armadilhas e estratégias dos discursos de poder, que é só poesia que afirma o seu canto, que reinventa a vida, que reinterpreta os arcanos da memória. Volta-se mais para o passado no caso de Veronika, é concreta mais em passagens de memória, em referentes que se identificam em respirar somente umas palavras (um incêndio, o sacrifício de um animal, momento da infância, a amargura do exílio, a escuridão de um extermínio, a quietude das mãos amorosas…) ordena mais narrativamente as sequências, enche o ar com verbos que engendram ações, pule mais o verso em que desemboca uma espécie de história que é o rio da vida. A escrita de Joan é mais substantiva e entrecortada - sintagmática, como dissemos em outras ocasiões - , encadeia-se em jogos infinitos de analogias e sutis correspondências internas, abstrai-se no que se pode dizer mas mal se pode pensar (“Vértebra do impulso. Óxido das órbitas”), cartografia o terreno inexpugnável da poesia, cresce no ritmo de uma respiração, da sístole e da diástole com que se diz o mundo, os processos invisíveis da natureza, o silêncio insondável de tudo o que é vivo, a fenomenologia do dizer, escrita fractal com a qual a consciência se faz universo e sentido.

Se a voz de cada um não produzisse eco e efeito no outro, se não modificasse o seu próprio transcurso, não estaríamos falando de diálogo ou correspondência poética mas de simples intercâmbio de surdos, tão frequente na vida cotidiana. As duas vozes assim se entrelaçam e se transformam no decurso criativo de maneira perceptível. Joan se impregna da potência de evocação do passado com que Veronika dava os seus primeiros passos para incorporar, por sua vez, através de apóstrofes tão peculiares de sua obra, o irmão e o pai ausentes, a casa familiar, a paisagem da infância, certas noites de verão. Vai se entregando Veronika de pouco em pouco ao êxtase de dizer, à pura abstração, ao voo da imaginação que se adentra no fenômenos naturais, na contemplação maravilhada do mundo. Os ecos que ressoam de um lado e outro dos poemas-espelho vão pautanto a sinfonia de uma altíssima densidade poética. Multiplicação dos caminhos que se percorrem em todos os sentidos, todo de janelas abertas para o infinito.


Veronika Paulics e Joan Navarro, Liquens. Epílogo de Ricard Martínez Pinyol, Edicions del Buc, nº28, La Pobla de Farnals, 2023

original publicado aqui: https://lapedraielmarge.blogspot.com/2023/12/dalguna-fam-neix-la-llum.html


2 comentários:

Raquel disse...

Resenha os meus :)

v. paulics disse...

raquel, repare, a resenha não é minha, é sobre um livro meu com joan navarro.
que teus livros tenham muitos leitores!