29 de outubro de 2020

raiz

Raiz
(Miklós Radnóti)

Na raiz a força insiste,
ela bebe chuva, vive na terra
mas seu sonho é branco-neve.


Do subsolo vai para cima,
sobe e confunde, a raiz, 
o seu braço com uma corda.



No seu braço há um verme,
no seu pé, um verme sentado, 
o mundo enchendo-se de vermes.

 

Mas a raiz segue sua vida,
sem se importar com o mundo,
só com o galho e sua folhagem.

Ela o admira e nutre,
manda-lhe uns bons sabores,
doces sabores divinos.

Raiz também eu sou agora,
e entre os vermes é minha casa,
onde este  poema se prepara.

Eu era flor, virei raiz,
pesada, escura terra sobre mim,
minha sorte consumada,
uma serra chora acima da minha cabeça.

(Campo de concentração de Heidenau, acima de Zagubica nas montanhas - 8 de agosto de 1944)

 

 

Gyökér (Radnóti Miklós)

A gyökérben erő surran,
esőt iszik,földdel él
és az álma hófehér.

Föld alól a föld fölé tör,
kúszik s ravasz a gyökér
karja akár a kötél.

Gyökér karján féreg alszik
gyökér lábán féreg ül,
a világ megférgesül.

De a gyökér tovább él lent,
nem érdekli a világ,
csak a lombbal teli ág.

Azt csodálja,táplálgatja,
küld néki jó ízeket,
édes,égi ízeket.

Gyökér vagyok magam is most,
férgek között élek én,
ott készül e költemény.

Virág voltam,gyökér lettem,
súlyos,sötét föld felettem,
sorsom elvégeztetett,
fűrész sír fejem felett.

 (Lager Heidenau, Zagubica fölött a hegyekben – 1944. augusztus 8.)

 

e aqui, em inglês

 

28 de outubro de 2020

o mover das asas

volta e meia me pego pensando no que as pessoas querem dizer quando dizem: se eu pudesse voltar no tempo faria tudo exatamente como fiz. se a vida é um percurso de experiência, e nossas decisões dependem em grande parte da nossa capacidade de discernimento que, por sua vez, depende do repertório que temos, de que adianta experimentar tantas coisas e ampliar o repertório se, ao olhar para decisões feitas há tanto tempo, chegamos à estúpida conclusão de que faríamos exatamente a mesma escolha? claro que há quem diga: tudo isso me trouxe aqui e gosto deste aqui. se pensar assim, também eu vou dizer que faria tudo igual, porque também gosto do meu aqui. mas a pergunta, ou a análise que fazemos ao olhar para algumas decisões cruciais na vida, é mais filosófica do que prática (mesmo porque até onde se saiba isso é impossível), e não uma manifestação de desgosto com o tempo presente. se bem que conheço quem mudaria as  decisões tomadas em algum momento da vida justamente porque agora gostaria de estar em outra vida.

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leio a correspondencia entre celan e bachmann.

releio todesfuge: 

teus cabelos de ouro margarida 

teus cabelos de cinza sulamita.

uma vez sonhei que eu e uma amiga grande escritora éramos irmãs e filhas do paul celan. contei pra ela e ela disse: mas é que somos mesmo filhas dele. de lá para cá, cada vez que volto para celan, e não acho fácil ler sua poesia, é um pouco como se lesse meu pai. e nas entrelinhas leio a nô, que é a minha amiga do sonho (e da vida real, claro).

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uma das coisas que eu teria feito de outra maneira seria aprender várias línguas. e fazer natação. pra ter capacidade e fôlego para traduzir. por exemplo, traduzir o miklos radnoti. que um pouco antes de ser executado pelos nazistas, depois de já terem deixado para trás o campo de concentração, assim doente e faminto e com tudo o que se deve carregar na alma depois de passar por um campo de concentração , anotava poemas num caderninho. enterraram o radnoti ali mesmo onde foi fuzilado. um ano depois, sua viúva conseguiu localizar o lugar exato e encontrou o caderno entre outros objetos na fossa comum.

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no lugar das asas, agora só estes cotocos nas omoplatas, como galhos mal podados, como ossos de um bicho morto, esticando o saco de lixo desde dentro.

23 de outubro de 2020

o mover das plantas

volto pro tema do horror e o olhá-lo até a náusea.

a experiência de ver a gaivota bicando o pombo morto, arrancando as penas do ventre, abrir a pele e comer suas vísceras, num processo lento e sistemático, sangrento,  seguir olhando, fazer fotos, fazer vídeos para registrar o movimento brusco e cuidadoso, revisitar as fotos, os vídeos, olhar e olhar, escavando na imagem aquilo que mais me horroriza, não afastar os olhos, chegar à náusea.

a primeira reação foi passar a ver as gaivotas com raiva. assassinas implacáveis de pombos. e os pombos, vítimas de gaivotas. mas há o voo da gaivota, seu planar contra o vento, o mergulho no mar para captar o peixe. a gaivota não é só horror. e há o pombo. que também é um rato com asas, com doenças, com sujeira e fezes. o pombo não é só vítima. a gaivota come o pombo como o pombo come qualquer coisa que encontrar pela frente. por que a violência da gaivota me afeta?

porque não é a violência da gaivota que me afeta. o que me desconforta é o meu olhar hipnotizado por uma coisa que me horroriza: um horror que não se veja não deixa de existir, e pode crescer como um fungo oculto, um tumor, uma obstrução; mas um horror que se veja sempre à luz plena também pode encontrar um espaço confortável para seguir sendo horror e já ninguém o notará, passará a ser um horror incorporado na paisagem.

que olhar tiraria do horror sua naturalidade sem dar a ele o espaço de um espetáculo?

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ontem , ajudando a divulgar a pesquisa de uma amiga, que chama a atenção para o desconforto que a atual situação da covid provoca especialmente no brasil e aponta para o fato de seguir havendo tanto uma pauta de oposição política quanto de proposições concretas, a resposta de muita gente foi que isso é olhar só para uma parte, mínima, do cenário político brasileiro (e mundial, eu acrescento, ainda que  ninguém tivesse comentado) e ignorar que realmente estamos  fragmentados, sem proposta, sem estratégia de ação. em parte, sim, concordo. mas, por outro lado, me parece que estamos hipnotizados pela gaivota devorando o pombo. e cada vez que desviamos o olhar, buscando outro horizonte, alguma coisa nos chama de volta, para as vísceras expostas do pombo, para  o olhar ávido da gaivota.

em volta, as árvores vão perdendo as folhas, os últimos tomates do ano amadurecem, as  alfaces crescem felizes com o tempo fresco e as chuvas da madrugada. as gavinhas da ervilha buscam a treliça, dois morangos maduros pendem do vaso.

21 de outubro de 2020

lili

Os Lírios
(Karenne Wood)

Quando descobri que talvez eu estivesse com câncer,
Comprei quinze lírios brancos. A Páscoa passou:
as trombetas murcharam, plantas tortas com raízes
emaranhadas em potes. Eu as enterrei no jardim,
sabendo que não floresceriam até o ano seguinte.
Durante todo o verão, os caules pareciam postes em ruínas
enquanto esperava pelos resultados. No outono, os caules
tinham caído. Mais biópsias, incisões a laser,
o câncer em minha língua uma massa esparramada. Lá fora,
a terra permanecia nua, rizomas encolhidos
sob a geada. Brotos de primavera apareceram
em peles verdes brilhantes, e lírios floresceram
em julho, suas trombetas enceradas de branco puro,
espalhando pólen dourado pelo chão.
Este ano,
há três vezes mais, estão surgindo novamente. Eu espero,
uma cerimônia, para a abertura dos lírios, para que a linha serpenteante
do jardim floresça na forma da cicatriz da minha língua,
um caminho branco com uma extremidade levando para o ar brilhante,
e outra descendo pelo cânion da garganta, negro
e implacável. Tento imaginar
o que poderia crescer em tal escuridão. À espera
dos lírios se abrirem.

 

 

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“ad nauseam” era a expressão que fiquei procurando sem achar no dia que fui dormir depois de ver repetidas vezes o vídeo que eu mesma fiz da gaivota devorando o pombo. até a náusea.