23 de outubro de 2020

o mover das plantas

volto pro tema do horror e o olhá-lo até a náusea.

a experiência de ver a gaivota bicando o pombo morto, arrancando as penas do ventre, abrir a pele e comer suas vísceras, num processo lento e sistemático, sangrento,  seguir olhando, fazer fotos, fazer vídeos para registrar o movimento brusco e cuidadoso, revisitar as fotos, os vídeos, olhar e olhar, escavando na imagem aquilo que mais me horroriza, não afastar os olhos, chegar à náusea.

a primeira reação foi passar a ver as gaivotas com raiva. assassinas implacáveis de pombos. e os pombos, vítimas de gaivotas. mas há o voo da gaivota, seu planar contra o vento, o mergulho no mar para captar o peixe. a gaivota não é só horror. e há o pombo. que também é um rato com asas, com doenças, com sujeira e fezes. o pombo não é só vítima. a gaivota come o pombo como o pombo come qualquer coisa que encontrar pela frente. por que a violência da gaivota me afeta?

porque não é a violência da gaivota que me afeta. o que me desconforta é o meu olhar hipnotizado por uma coisa que me horroriza: um horror que não se veja não deixa de existir, e pode crescer como um fungo oculto, um tumor, uma obstrução; mas um horror que se veja sempre à luz plena também pode encontrar um espaço confortável para seguir sendo horror e já ninguém o notará, passará a ser um horror incorporado na paisagem.

que olhar tiraria do horror sua naturalidade sem dar a ele o espaço de um espetáculo?

***

ontem , ajudando a divulgar a pesquisa de uma amiga, que chama a atenção para o desconforto que a atual situação da covid provoca especialmente no brasil e aponta para o fato de seguir havendo tanto uma pauta de oposição política quanto de proposições concretas, a resposta de muita gente foi que isso é olhar só para uma parte, mínima, do cenário político brasileiro (e mundial, eu acrescento, ainda que  ninguém tivesse comentado) e ignorar que realmente estamos  fragmentados, sem proposta, sem estratégia de ação. em parte, sim, concordo. mas, por outro lado, me parece que estamos hipnotizados pela gaivota devorando o pombo. e cada vez que desviamos o olhar, buscando outro horizonte, alguma coisa nos chama de volta, para as vísceras expostas do pombo, para  o olhar ávido da gaivota.

em volta, as árvores vão perdendo as folhas, os últimos tomates do ano amadurecem, as  alfaces crescem felizes com o tempo fresco e as chuvas da madrugada. as gavinhas da ervilha buscam a treliça, dois morangos maduros pendem do vaso.

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