28 de outubro de 2020

o mover das asas

volta e meia me pego pensando no que as pessoas querem dizer quando dizem: se eu pudesse voltar no tempo faria tudo exatamente como fiz. se a vida é um percurso de experiência, e nossas decisões dependem em grande parte da nossa capacidade de discernimento que, por sua vez, depende do repertório que temos, de que adianta experimentar tantas coisas e ampliar o repertório se, ao olhar para decisões feitas há tanto tempo, chegamos à estúpida conclusão de que faríamos exatamente a mesma escolha? claro que há quem diga: tudo isso me trouxe aqui e gosto deste aqui. se pensar assim, também eu vou dizer que faria tudo igual, porque também gosto do meu aqui. mas a pergunta, ou a análise que fazemos ao olhar para algumas decisões cruciais na vida, é mais filosófica do que prática (mesmo porque até onde se saiba isso é impossível), e não uma manifestação de desgosto com o tempo presente. se bem que conheço quem mudaria as  decisões tomadas em algum momento da vida justamente porque agora gostaria de estar em outra vida.

***

leio a correspondencia entre celan e bachmann.

releio todesfuge: 

teus cabelos de ouro margarida 

teus cabelos de cinza sulamita.

uma vez sonhei que eu e uma amiga grande escritora éramos irmãs e filhas do paul celan. contei pra ela e ela disse: mas é que somos mesmo filhas dele. de lá para cá, cada vez que volto para celan, e não acho fácil ler sua poesia, é um pouco como se lesse meu pai. e nas entrelinhas leio a nô, que é a minha amiga do sonho (e da vida real, claro).

***

uma das coisas que eu teria feito de outra maneira seria aprender várias línguas. e fazer natação. pra ter capacidade e fôlego para traduzir. por exemplo, traduzir o miklos radnoti. que um pouco antes de ser executado pelos nazistas, depois de já terem deixado para trás o campo de concentração, assim doente e faminto e com tudo o que se deve carregar na alma depois de passar por um campo de concentração , anotava poemas num caderninho. enterraram o radnoti ali mesmo onde foi fuzilado. um ano depois, sua viúva conseguiu localizar o lugar exato e encontrou o caderno entre outros objetos na fossa comum.

***

no lugar das asas, agora só estes cotocos nas omoplatas, como galhos mal podados, como ossos de um bicho morto, esticando o saco de lixo desde dentro.

Nenhum comentário: