minha mãe me conta que acordou às três da manhã porque as cachorras latiam muito e quando ela viu tinha alguma coisa perto do muro, e as cachorras não paravam de latir e latiram, latiram até às sete da manhã, e então ela viu que era um saruê e ela pensou que não ia fazer mal pro saruê porque os saruês afinal de contas comem escorpiões e pequenos roedores e outras ameaças para ela e para as cachorras, mas ela também não queria que o saruê ficasse ali e ela tentou espantar o bichinho mas o bicho ficou assustado e a ameaçou e imaginei o pequeno saruê ameaçando minha mãe que não é pequena mas nesses casos a gente fica minúsculo porque está cansado e com sono e porque não sabe exatamente como lidar com a natureza dos bichos quase selvagens como o saruê junto aos bichos domesticados que são os cães e somos nós e ela resolveu jogar água e ligou a mangueira e jogou água e o pobre saruêzinho deve ter se assustado mas saiu de onde estava e correu pra murta e ela jogou água na murta e o saruê foi embora. de vez em quando aparece algum porco-espinho e mais de uma vez as cachorras abocanharam depois é um trabalhão para tirar todos os espinhos e precisa de antibiótico também porque infecciona. e aparecem miquinhos e caxinguelês. o caxinguelê é o que mais me comove porque uma vez matei um querendo salvá-lo e não me esqueço porque muitas vezes sou assim estabanada querendo resolver as coisas sem pensar sobre o melhor caminho e quebro tudo o que encontro e machuco a mim mesma ou aos outros. ao menos esta noite minha mãe vai dormir bem porque apesar de sentir tanta saudade dos filhos e dos netos estará tão cansada que não poderá pensar em muita coisa. ou isso espero.
tenho saudades dela.
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cada dia recebo notícia de alguma morte de pessoa conhecida. está difícil atravessar estes tempos. às vezes tenho vontade de ser negacionista, fazer de conta que tudo isso é uma invenção dos diabos que só querem nos manter em casa e controlados e então chega a morte de alguém que eu conhecia. a cada dia. estas notícias que nos matam devagarinho.
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gritar bem alto não só fora bolsonaro como fora toda esta corja que se acha acima de todos os outros. depois me lembro que não há um fora. é tudo aqui mesmo e teremos que entender o mecanismo de por que isso se mantém e uns quantos nos violentam e nós, multidão, aguentamos tudo quase calados. se não calados sem um movimento brusco e contundente.
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ontem, conversando com duas amigas queridas, eu dizia que todo humano é igual a nós. elas diziam que não, que nem todo mundo é igual. ontem eu achava que todos somos humanamente do mesmo jeito. hoje já amanheci pensando que há alguma diferença na maneira de levar a vida que faz algumas pessoas serem tão cruéis e sádicas e outras serem um carneirinho na multidão, não sou um carneirinho nem sou cruel. o que é que eu sou. isto eu me pergunto muito. e escrevo sobre a vida simples, de cada dia, para ver se isso nos dá um foco melhor para construir o mundo. porque é na vida de cada dia que está a resposta do que é que se precisa. casa, comida, saúde, educação, lazer, arte, cuidar-se, ampliarmo-nos humanidade para além do que somos, sendo o que nos cabe ser. o que é que nos cabe ser. é outra pergunta.
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no pensar nunca en la muerte
y dejar irse las tardes
mirando cómo atardece
ver toda la mar enfrente
y no estar triste por nada
mientras el sol se arrepiente
y morirme de repente
el día menos pensao
ese en el que pienso siempre.
Manuel Alcántara
(Málaga, 10 de enero de 1928- 17 de abril de 2019).
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saiu publicada numa revista a pesquisa de uma amiga brasileira sobre a violência contra crianças. a maior parte das situações de violência se dá em casa. e quem comete a violência é a mãe em mais de 80% dos casos. me surpreende e não me surpreende o resultado da pesquisa. porque num país que foi construído sobre a violência, que sempre premia quem é mais violento, onde o estado educa com a violência das prisões, o que mais se pode esperar de alguém que quer educar seu filho? uma vez visitei uma cidade do interior do brasil onde um programa de autópsia verbal tinha reduzido drasticamente a mortalidade infantil. autópsia verbal é perguntar para vários envolvidos na vida e na morte da criança o porquê da morte ter ocorrido. perguntar. e uma pessoa da área de saúde me disse que se surpreendeu com o processo, se surpreendeu por haver alguém que se preocupasse com a morte de crianças menores de um ano. para ela, sempre havia morrido muita criança menor de um ano e isso era o normal. foi preciso vir alguém se surpreender com isso e manifestar sua surpresa para que naquele lugar deixasse de ser óbvio que crianças menores de um ano morressem com tanta facilidade.
por isso eu digo: as perguntas. fazer muitas perguntas.
como dizia o perec. o grande perec. o mínimo perec. o de cada dia. vida: modo de usar.
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ontem na loja de coisas para jardinagem havia bulbos de muitos tipos de flor. olhei e olhei os bulbos. não comprei nenhum de complicados que me pareceram. mas comprei uma planta carnívora para meu filho. a planta carnívora prefere água destilada. e moscas e mosquitos. apesar dos dentinhos na folha, não é para passar fio dental.