22 de abril de 2021

que o esgoto escorra para o esgoto

minha mãe me conta que acordou às três da manhã porque as cachorras latiam muito e quando ela viu tinha alguma coisa perto do muro, e as cachorras não paravam de latir e latiram, latiram até às sete da manhã, e então ela viu que era um saruê e ela pensou que não ia fazer mal pro saruê porque os saruês afinal de contas comem escorpiões e pequenos roedores e outras ameaças para ela e para as cachorras, mas ela também não queria que o saruê ficasse ali e ela tentou espantar o bichinho mas o bicho ficou assustado e a ameaçou e imaginei o pequeno saruê ameaçando minha mãe que não é pequena mas nesses casos a gente fica minúsculo porque está cansado e com sono e porque não sabe exatamente como lidar com a natureza dos bichos quase selvagens como o saruê junto aos bichos domesticados que são os cães e somos nós e ela resolveu jogar água e ligou a mangueira e jogou água e o pobre saruêzinho deve ter se assustado mas saiu de onde estava e correu pra murta e ela jogou água na murta e o saruê foi embora. de vez em quando aparece algum porco-espinho e mais de uma vez as cachorras abocanharam depois é um trabalhão para tirar todos os espinhos e precisa de antibiótico também porque infecciona. e aparecem miquinhos e caxinguelês. o caxinguelê é o que mais me comove porque uma vez matei um querendo salvá-lo e não me esqueço porque muitas vezes sou assim estabanada querendo resolver as coisas sem pensar sobre o melhor caminho e quebro tudo o que encontro e machuco a mim mesma ou aos outros. ao menos esta noite minha mãe vai dormir bem porque apesar de sentir tanta saudade dos filhos e dos netos estará tão cansada que não poderá pensar em muita coisa. ou isso espero.

tenho saudades dela.

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cada dia recebo notícia de alguma morte de pessoa conhecida. está difícil atravessar estes tempos. às vezes tenho vontade de ser negacionista, fazer de conta que tudo isso é uma invenção dos diabos que só querem nos manter em casa e controlados e então chega a morte de alguém que eu conhecia. a cada dia. estas notícias que nos matam devagarinho.

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gritar bem alto não só fora bolsonaro como fora toda esta corja que se acha acima de todos os outros. depois me lembro que não há um fora. é tudo aqui mesmo e teremos que entender o mecanismo de por que isso se mantém e uns quantos nos violentam e nós, multidão, aguentamos tudo quase calados. se não calados sem um movimento brusco e contundente.

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ontem, conversando com duas amigas queridas, eu dizia que todo humano é igual a nós. elas diziam que não, que nem todo mundo é igual. ontem eu achava que todos somos humanamente do mesmo jeito. hoje já amanheci pensando que há alguma diferença na maneira de levar a vida que faz algumas pessoas serem tão cruéis e sádicas e outras serem um carneirinho na multidão, não sou um carneirinho nem sou cruel. o que é que eu sou. isto eu me pergunto muito. e escrevo sobre a vida simples, de cada dia, para ver se isso nos dá um foco melhor para construir o mundo. porque é na vida de cada dia que está a resposta do que é que se precisa. casa, comida, saúde, educação, lazer, arte, cuidar-se, ampliarmo-nos humanidade para além do que somos, sendo o que nos cabe ser. o que é que nos cabe ser. é outra pergunta.

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no pensar nunca en la muerte

y dejar irse las tardes

mirando cómo atardece

ver toda la mar enfrente

y no estar triste por nada

mientras el sol se arrepiente

y morirme de repente

el día menos pensao

ese en el que pienso siempre.

 

Manuel Alcántara

(Málaga, 10 de enero de 1928- 17 de abril de 2019).

 

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saiu publicada numa revista a pesquisa de uma amiga brasileira sobre a violência contra crianças. a maior parte das situações de violência se dá em casa. e quem comete a violência é a mãe em mais de 80% dos casos. me surpreende e não me surpreende o resultado da pesquisa. porque num país que foi construído sobre a violência, que sempre premia quem é mais violento, onde o estado educa com a violência das prisões, o que mais se pode esperar de alguém que quer educar seu filho? uma vez visitei uma cidade do interior do brasil onde um programa de autópsia verbal tinha reduzido drasticamente a mortalidade infantil. autópsia verbal é perguntar para vários envolvidos na vida e na morte da criança o porquê da morte ter ocorrido. perguntar. e uma pessoa da área de saúde me disse que se surpreendeu com o processo, se surpreendeu por haver alguém que se preocupasse com a morte de crianças menores de um ano. para ela, sempre havia morrido muita criança menor de um ano e isso era o normal. foi preciso vir alguém se surpreender com isso e manifestar sua surpresa para que naquele lugar deixasse de ser óbvio que crianças menores de um ano morressem com tanta facilidade.

por isso eu digo: as perguntas. fazer muitas perguntas.

como dizia o perec. o grande perec. o mínimo perec. o de cada dia. vida: modo de usar.

 

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ontem na loja de coisas para jardinagem havia bulbos de muitos tipos de flor. olhei e olhei os bulbos. não comprei nenhum de complicados que me pareceram. mas comprei uma planta carnívora para meu filho. a planta carnívora prefere água destilada. e moscas e mosquitos. apesar dos dentinhos na folha, não é para passar fio dental.

 

21 de abril de 2021

um dia a areia branca seus pés irão tocar

dia chuvoso. abril e frio. nos balcões da cidade há muitas flores. na sexta-feira é a festa de sant jordi aqui: flores e livros. mais um sant jordi na pandemia. mais uma vez a gente quer alguém que vá lá matar o dragão e ninguém olha o rei que por tantos anos entregou alguém do povo para amainar a ira do dragão. as histórias de heróis são cheias de detalhes nebulosos. e a gente nem sempre sabe onde está o vilão. ou: o que é o vilão dentro de nós, e o que é o herói. 

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volto a ler notícias de estudos científicos.elas me dão uma dimensão mais exata do que sou e do que deixo de ser:

li, por exemplo, que alguns pesquisadores sistematizaram o percurso da água desde as nuvens interestelares até os mundos habitáveis. na descrição deste percurso, dizem que a água já estava lá, no início do sistema solar. a água está em forma de gelo assentado sobre minipartículas de pó nas nuvens interestelares. quando a nuvem colapsa, formando novas estrelas e planetas, esta água se fixa em pedras pequenas, estas pedras girando em torno da jovem estrela serão os elementos básicos para formar novos planetas, agrupando-se em corpos cada vez maiores. e a água dos rios e oceanos, ou dos nossos olhos, veja, toda esta água já estava lá.

depois, leio em outra página que uns passos registrados há dez mil anos mostram que as crianças neandertais também brincavam na areia. imagine-as correndo, saltando, construindo castelos que elas nem sabiam que um dia iriam existir. ou foi o sonho das crianças neandertais ao brincar na areia que nos fez milhares de anos depois construir castelos e catedrais e monumentos para em seguida destruí-los?

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tanta gente já fazendo análise destes tempos e eu aqui, imobilizada, sem entender. se é tão pouco a pouco que desvendamos o caminho das águas e a infância dos neandertais, pra que pressa pra entender esse momento de agora? às vezes a gente se sai melhor na resolução de um problema se deixa o pensamento seguir livre, sem tensão, sem pressão. como se a energia que vai de neurônio em neurônio fosse capaz por si de encontrar saídas. dizemos “os neurônios” como se eles não fosse nós, o que somos. somos o corpo. nós, relaxados, encontramos melhor as respostas. por que tensionar este momento já por si tão tenso, repleto de medo e morte, de limitação de espaços e direitos, por que não vivê-lo exatamente como ele é e deixar que o corpo humano encontre a resposta de como sair desta merda em que estamos metidos?

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entramos em touro, as quatro patas do mundo assentadas no presente.

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amanheci pensando por onde andaria o paul salopek, aquele que está percorrendo o mundo a pé, para refazer o caminho da grande migração humana desde a áfrica até a terra do fogo. uma postagem dele mesmo me distraiu e fui parar no fundo do mar, entre baleias. estes seres que me fascinam. a música dos seus sons é uma canção de ninar.

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fora da falsa eternidade o corpo volta a ser de instante em instante uma cicatriz no tempo entre o passado inexistente e o futuro ainda não visto. que possa ser sutura na matéria esgarçada esta costura na página viva, esta memória.

20 de abril de 2021

movimento instintivo



fui anotar carbassa numa lista de compras (que é abóbora em catalão) e fiquei em dúvida se era assim mesmo que escrevia. estas dúvidas que às vezes saltam do nada e a gente fica perdido e para isso existem os dicionários, vamos a eles. e lá estava carbassa. enquanto eu repetia em voz alta carbassa carbassa carbassa, pensei em cabaça e eu que sempre achei que cabaça fosse uma palavra indígena, fui pesquisar e descobri que o bisavô destas palavras: cabaça, carbassa... é o árabe: kara bassasa (abóbora lustrosa) e que antes mesmo de colombo invadir a américa a cabaça já tinha chegado ali, vinda da áfrica, não se sabe se atravessando o oceano atlântico ou trazida pelos humanos que não nos cansamos de andar e mudar de lugar. é uma das primeiras plantas a serem cultivadas no mundo.

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isso das antiguidades.

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estes dias me perguntaram sobre coisas que vivi há mais de trinta anos. e o que mais me surpreendeu era a pessoa não conseguir imaginar como nos comunicávamos antes de haver whatsapp porque afinal de contas “email é muito demorado”!

passei um tempo lembrando como era. e gostei. gosto das cartas, dos telefonemas, gostava de saber quem é que me avisaria se houvesse alguma manifestação e saber quem eu teria que avisar. e não era só avisar, era explicar, combinar de ir junto, ir junto. os grupos pequenos se encontrando com outros grupos pequenos, formando afluentes de um rio imenso de gente que sabia por que estava lá. talvez por isso eu não me sinta tão à vontade para gritar nas redes sociais, este grito voltado para quem?

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isso dos humanos.

e os cães.

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ontem, no parque, o cão voou por cima de uma cerca para abocanhar um pássaro. corri atrás e quando quase o alcancei, ele correu para longe, da boca o sangue, as penas espetadas como bigodes. eu ia, ele corria. muitas vezes. até que só as patinhas do pássaro para fora da boca, então, nessa hora ele se deixou alcançar. além de já satisfeito, acho que estava um pouco cansado de correr e fugir enquanto devorava. lavei o focinho dele no bebedouro, pra tirar aquele sangue todo. nos caninos do cão o vermelho do pássaro, restos de vísceras. eu dizia pra ele: mas se temos comida em casa! claro que ele nem me respondeu : estava ofendido pela minha brabeza. se fosse responder, talvez dissesse: é meu instinto de cão.

o passeio acabou ali mesmo, nada de brincar com outros cães. primeiro ele pareceu não entender. depois, veio cabisbaixo. eu e ele em silêncio pela rua. nada de cheirar o rabo de nenhum outro cão, nada de cheirar os cantos ou de marcar postes e árvores. nada de cantar, contar casos, explicar o nome das coisas. nada. até chegar em casa. até vir a noite.


sonhei com o pássaro estraçalhado.

ele deve ter sonhado também.

mas sob outra perspectiva.

é difícil entender o movimento instintivo.

acho que só me convenci de que também agia por instinto quando pari.

mas acho que não cheguei a abocanhar pássaros.

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às vezes me falta um manual de comportamento em tempos de pandemia. o que fazer ou deixar de fazer, como e quando.

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marta argerich saindo em silencio do cenario na sinagoga gorlitz em tempos de pandemia em 2020 depois de tocar como nem sei dizer.

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"Não se esqueça:/caminhamos pelo inferno/contemplando flores" (Bashô)


 

19 de abril de 2021

no começo de que mundo

entre a nossa casa e o parque onde vamos passear, está o velório municipal. aqui se chama tanatório. talvez em português também fosse a palavra mais exata, mas não lembro de ter ouvido falar em tanatórios municipais.

há alguns meses, quando chegávamos perto, uma ou outra vez alguém nos pedia informação para chegar até lá. o entorno está em obras. o entorno sempre foi um pouco estranho, vitrines com pedras para tumbas, inscrições em lápides, flores em forma de coroa. e grandes construções cinzentas. a cidade em transformação. o que era beira se meteu no meio.

nas últimas semanas, quase a cada dia alguém nos pergunta onde fica o velório. alguns dias, três grupos de pessoas nos perguntaram como chegar.

já reconheço pelo olhar perdido e sei quando vão me fazer um sinal como afogado estendendo a mão e a mão é escorregadia e não há como manter o corpo na superfície. na luz da tarde o olho brilha cheio de lágrimas em suspensão. se são velhos os que perguntam, o olhar é mais resignado, quase cúmplice, como quem sabe e conhece.

como os cães quando lhes doi alguma coisa e eles não entendem e nos olham pedindo socorro, querendo saber por que não fazemos nada que os alivie. como nós quando olhamos para deus e deus nos devolve o olhar. deus nos põe em seu colo. mas é pouco.

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me lembra rilke.

“e mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte, pois que é o belo senão o grau do terrível que ainda somos capazes de suportar porque impassível desdenha destruir-nos?”

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tenho desviado de poetas homens europeus. mas é difícil desviar das elegias de duíno.

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há algum tempo, carlito azevedo publicava umas “explicações” de poesia, que eram uma espécie de releitura. eram bonitas. e uma das que ele  “explicou” foi esta primeira elegia. da qual eu gosto muito.

me lembro do banco de ônibus em que viajei quando li pela primeira vez, me lembro da paisagem rolando do lado de fora da janela. mas não sei para onde eu ia. ia pra dentro do poema. nunca mais saí. é um dos lugares onde tenho casa. de vez em quando volto e descubro mais alguma coisa que eu não tinha reparado. agora, estes nossos olhos de cão olhando pro divino. pedindo que tire a nossa dor. 

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às vezes me pergunto como seria uma narrativa da história da poesia desde o ponto de vista de outro povo que não o branco europeu. uma poesia ameríndia, em que os gregos, os romanos, os trovadores e o escambau entrassem como afluentes, no grande rio das palavras sagradas poéticas, e não estas palavras ameríndias entrando no grande rio da poesia ocidental, sendo lidas a partir de um centro colonizador, violento.

o que será que escreveríamos? insistiríamos em rimar amor e flor ou as palavras narrariam o eterno recomeço do mundo, sua criação em ritmo de chama e vento? descreveríamos a geometria sagrada das sementes e dos olhos que nos olham do fundo da caverna escura?

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pediríamos: oh, grande pulmão do mundo, não deixe que nos falte ar! e a brisa nos cabelos.

16 de abril de 2021

um nós, muitos nós

as palavras continuam caindo sobre mim, como ruínas, escombros. milhares de palavras na cabeça, na boca. e não sei organizá-las, para que façam sentido, para que encontrem o caminho e sejam resposta para dezenas de mensagens que me pedem respostas. na incapacidade, fico quieta, não em silêncio, porque o silêncio, sabe-se, não é este caos. toda palavra que não encontra um rumo é um ruido absurdo na cabeça, bagunça de papeis sobre a mesa, cansaço nos ombros.

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há mais de um ano mudei o nome do blogue para não ando a pé. e já nem é tão verdade. até ando a pé, sim. vou até a praia, porque está aqui perto. vou ao centro se preciso. mascarada e rígida como as velhas senhoras que buscavam fugir do pecado. buscavam? o que será que ia na cabeça delas ao pensar que fugiam, ao pensar em pecado, ao se pensarem rígidas. velha senhora. vou me tornando uma velha senhora. a tia da equipe disse uma amiga dia desses quando falou sobre o seu novo trabalho.

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ser tia. tive quatro tias. agora tenho duas. todas me trazem uma sensação de conforto, alegria, quebra dos hábitos que tínhamos em casa. a mais nova delas nos acolheu quando meu irmão mais novo nasceu. ou é assim que eu lembro. quando preparou o ovo mexido, deixou tostar um pouco a manteiga e o ovo mexido ficou meio marrom. diferente do ovo mexido que minha mãe fazia. lembro de sentar para comer, o garfo espetando um pedacinho de ovo e a lágrima escorrendo e pingando no prato. não estava bom. eu queria minha mãe. então ela disse que a gente poderia experimentar o suco de cenoura que tinha feito para filho, um bebê, nosso primo. o nó na garganta não passava. mas era tão linda aquela tia...

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ando com nó na garganta que não passa.

vejo muita gente já publicando o que produziu no último ano, cheio de conclusões e ideias claras. me sinto lenta demais. não consigo nem olhar para os textos destes últimos doze meses, desvio deles, me assustam. que dizer de tirar conclusões sobre onde tudo isso vai dar. ou o que isso vai impactar em nós, as marcas no corpo, os problemas de saúde física e mental, as crianças pequenas, os adolescentes, os velhos. tempos que nos roubaram diz uma amiga que, mais que tudo, queria estar agora com seu neto em uma outra cidade, para onde ela não pode ir. mesmo se pudesse, acho que ela preferiria ficar por aqui até ser vacinada. o medo do vírus é maior que a saudade do neto. o medo do vírus é o medo da morte. a nossa morte. a morte do outro. todas as mortes virão. é certo. mas não a queremos desse jeito. sem sequer uma mão dada à nossa.

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não tenho muito jeito com a coisa digital. reluto em assistir lives, em fazer videochamadas. ao mesmo tempo sei da alegria que é ao menos ver na tela do celular as pessoas que amamos e que estão longe. agora, todas as pessoas estão longe, mesmo aquelas que moram no quarteirão vizinho. não sei o que vai ser. quando o mundo todo migrar para o virtual e eu, aqui na vida concreta de cada dia, estiver cozinhando a minha comida, costurando minha roupa, escrevendo textos em caderninhos. infinitos caderninhos e minha letra linda e ilegível neles. datas e nomes, comentários e listas, restos de poesia perdidos, do que eu escrevi, do que eu copiei, do que eu busco relembrar. filmes que quero ver, endereços físicos aonde ir quando pudermos ir.

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máscaras.

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no final do mês vou conhecer – pela tela – o poeta edward hirsch que escreveu uma linda elegia para seu filho morto, gabriel. é um livro duro e lindo, que transcende a própria dor de um pai, que traz para o centro da história um menino que era um furacão e que numa noite de tormenta­­­ não voltou para casa. por três dias o pai e a mãe o procuraram. até o encontrarem no necrotério.  releio o livro pela enésima vez. não é sobre gabriel e sua morte. mas é sobre gabriel e sua morte e sua vida. única. incompreensível. desadaptada. irreverente. uma vez me disseram que a vida completa de alguém inclui sua morte. nascimento, existência e morte é o que compõe uma vida. e o que se pergunta para alguém que perde um filho assim numa noite de tempestade? o que se pergunta para alguém que soube reunir tudo de uma vida em setenta e seis poemas, como se fossem todos um mesmo e único longo poema? o que se diz? e o que se pede  a este homem? que leia sobre o velório? sobre a dor? sobre o que ele viveu há dez anos? dez anos não é nada. e já é um luto percorrido. já é um livro publicado, divulgado, traduzido. já se infiltrou na minha vida e na minha relação com meus filhos e sua possível morte. porque para morrer, sabemos, basta estar vivo.

quero e não quero que chegue este dia de abril.

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andamos tão cheios da morte.

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há vinte e cinco anos o massacre de eldorado de carajás. um soco no estômago. e o soco ainda hoje segue sendo socado, por todo o corpo da nossa existência.

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o primeiro morango do ano está quase maduro. o pepino e o tomate já têm pequenas flores. todos os alhos e cebolas estão florindo também. e o alho poró que mal cresceu já tem a bolinha na ponta da haste pronta a explodir num mini crisântemo roxo ou esverdeado.

às vezes, há abelhas. vêm atraídas pela capuchinha, eu acho. que parece uma grinalda, um sol se estendendo em pétalas laranjas e amarelas.

os também gerânios florescem.

a vida insiste, insiste, segue, urgente e ritmada ao mesmo tempo.

e os dias passam. 

e nós...

15 de abril de 2021

olhai as aves do céu


 

tenho deixado bem delimitados os diferentes espaços digitais. aqui (e me repito, eu sei), publico textos que já não publico em outros lugares. mas poucas vezes tenho posto fotos que, por sua vez, só publico no instagram, como esta foto que aí se vê. é de ontem, publiquei hoje.

ali, só pus a foto, sem explicações.

depois, fiquei pensando que o olhar rápido dos cliques e laiques e dedo rolando a barra para repassar todas as notícias do mundo e da vida dos outros talvez não dê conta do tudo que vi além da árvore e do céu azul e das aves no chão.

o que eu queria registrar, e me parece que ficou mais discreto que tudo, era a dúzia de maritacas nos galhos ainda pelados. distantes umas das outras, apoiavam-se numa pata  e com a outra pata levavam pedaços de pão pro bico. parei pra olhar e me dei conta que os pães tinham sido dados para os pombos, no chão, onde eles disputavam entre si os nacos. de repente, baixava voando uma maritaca, fazendo estardalhaço, e levando para o alto dos galhos o pedaço de pão. na medida que a maritaca comia o pão, caíam migalhas que os pombos voltavam a disputar entre si. pombo também voa. e havia muitíssimos mais pombos que maritacas.

à esquerda da foto, se se olhar com atenção, pode-se ver várias barracas de acampamento, talvez se repare também em objetos acumulados. é uma comunidade de pessoas sem casa que se instalou ali desde o começo desta crise sanitária. cada dia há mais pessoas. não fazem barulho, ocupam discretamente os muros da praça. ao lado de um hotel. que é este prédio que aparece à esquerda da foto. branco, alto. e vazio. como estão praticamente todos os hotéis e apartamentos de turismo da cidade.

o que não aparece na foto, mas vejo todos os dias da minha janela, são os enormes guindastes que continuam derrubando quarteirões inteiros de vilas de casas baixas e predinhos para levantar hotéis e edifícios de escritórios.

a foto é isso. os pombos conseguem uns pedaços de pão, as maritacas vêm e roubam. quando devoram o pão, caem as migalhas, e as pombas disputam entre si. sem olhar pro alto da árvore, sem se dar conta que são muitas mais que as maritacas.

queria dizer tudo isso de um modo mais poético, que ultrapassasse a linguagem didática. mas estou seca, puro didatismo oco. afinal, quem sou eu para ensinar o quê a quem?

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estou aprendendo a escrever letra para música. não é fácil porque as palavras no meu mundo são as que constroem sons e ritmos e ideias. na letra da canção a palavra entra de outra maneira, não sendo quem ela quer ser, nem sempre na sua potência máxima.

por isso, exatamente por isso, me interessa. sair do lugar de poder e enveredar pelo espaço frágil daquilo que não se sabe e que depende de outras coisas mais para existir.

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na cortina de blackout do quarto há um pontilhado de buraquinhos. quando o sol nasce, fica parecendo uma constelação. no inverno o sol nasce depois que a gente já se levantou. mas quando vem a primavera, os dias amanhecem cada vez mais cedo e ao ver a constelação inevitavelmente cantarolo zeca baleiro: um céu cheio de estrelas feitas com caneta bic num papel de pão. e fico um tempo pensando na dificuldade que seria traduzir isso, explicar o tanto de coisa que tem aí nessa letra. nem as estrelas são as mesmas. nem a caneta. que dizer do papel de pão?

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meu filho chegando aos dezoito e eu ainda me pergunto como-quando vou saber dizer da dor que me atravessava naqueles dias? como se explica para um filho o medo de uma mãe de perdê-lo ao nascer, ou tempos depois vendo-o na corda bamba se afastando muitos passos e querer que ele se virasse, que me visse, que quisesse fazer parte deste mundo, do meu mundo. como explicar que o que quero é perdê-lo como toda mãe perde os filhos: um pouco a cada dia, no desaparecimento natural das vidas, distanciando-se e ganhando-o na proximidade lenta que se impõe entre o tempo de semente e o de ser isso que dizem um adulto.

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tenho evitado o tema da covid. ainda que tudo  aqui (e aqui quer dizer casa, cidade, país, mundo, texto, pensamento, poesia, vida) seja sobre esse monotema e seus desdobramentos. alguns dias amanheço com o desejo de recusa: negar que isso tudo exista, fingir que é uma armação pra gente ser manipulado e controlado, escapar deste controle e deixar de usar máscara, abraçar, fazer festa. esquecer. basta chegar nas notícias do dia e tudo em mim se contrai e tudo em mim volta para a ideia de um cuidado do mundo. tenho rezado, sabe-se lá para quem, que tenhamos alguma luz pra sair disso tudo. e nem é sair do vírus, do contágio. é sair desta encalacrada de mundo plástico, branco, racista, consumista, superficial, machista, patriarcal, capitalista em que estamos metidos, matando-nos como se nada. como se o outro fosse um número supérfluo, sobrante. só o eu é que vale e importa. como ultrapassar estas fronteiras ásperas que nos construímos se já não me sinto pertencente a nenhum lugar? como voltar a me sentir pertencendo a todo e qualquer lugar?

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e quando tudo parece impossível, me lembro de uma amiga querida que me disse da última vez que estivemos juntas: tenho olhado para o movimento de mulheres negras e me deixo guiar por elas. penso nisso e escrevo: “mergulho na negra densidade do que se prepara para nascer”. e sigo.

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10 de abril de 2021

um primeiro passo

dia destes fez dezoito anos que defendi minha dissertação de mestrado. o que eu me lembro melhor deste dia é que na véspera tínhamos ouvido o coração do chico pela primeira vez. aquele galopar infinitamente apressado de um cavalo. e nem nome ele tinha ainda. foi arroz, foi feijão, foi caju, tatu, macaco. na medida em que crescia. e só quando nasceu é que a gente soube que era o chico. mas naquele dia da defesa ninguém sabia ainda que em mim batiam dois corações. mesmo assim, só aquilo importava e todo o resto era irrelevante. minha orientadora chegou vinte minutos tarde e enquanto isso um dos professores da banca ficou ensinando palavras em polonês ou russo para os que estavam ali comigo esperando, enquanto eu esperava outras esperas.

depois de todos estes anos ainda me surpreendo quando alguém me procura por conta do tema do meu mestrado, disseminação de inovações em gestão pública. na época, trabalhava num projeto que divulgava experiências inovadoras e eu estava convencida de que quanto mais divulgássemos as experiências que íamos sistematizando, mais prefeituras poderiam implementá-las. e estudava justamente isso, com um referencial teórico que mostrava o quanto de divulgação era importante, bem como fontes de financiamento, para que as experiências fossem disseminadas. o foco para mim e para o projeto que eu coordenava eram as experiências em si. na banca de qualificação, um professor me desbancou totalmente e me sugeriu ler latour 2000, com o seu ciência em ação,  como referência para olhar as experiências de gestão pública.

a construção do conhecimento é um processo lento. e eu achava que entendia como as coisas funcionavam. por isso foi ainda mais difícil ler latour e rever o meu ponto de vista. avançava devagar e a vida em volta disparava.

foi quando fizemos uma coletânea de 125 destas experiências, e o livro foi impresso em tiragem de best-seller, enviado para todos os municípios, com divulgação na imprensa, repercussão no congresso nacional e o escambau. pouco depois, fui parar numa pequena cidade do interior, para avaliar um projeto. enquanto entrevistava o prefeito, fiquei muito feliz de ver um exemplar na estante bem atrás da mesa. acho que por uma vaidade besta falei do livro, que parecia muito manuseado, perguntando quais experiências eles tinham implementado no município. foi um banho de água fria quando ele disse: nenhuma. devo ter feito uma cara lamentável porque logo ele se explicou dizendo que não era um livro para tirar uma experiência em concreto e replicar, mas era um livro que inspirava. por exemplo, se havia um problema específico na área de saúde, alguma experiência de algum outro município na área de assistência social, por exemplo, poderia dar boas ideias para se chegar numa solução local.

e apesar da minha decepção, foi quando entendi que o caminho tinha que ser outro. e passei a focar muito mais nos diversos sujeitos envolvidos num processo para compreender como se dava a disseminação de experiências.ou seja, lá estava o latour do professor que tinha me desbancado.

ainda hoje tem muita gente que acha que divulgar alguma coisa é falar sobre ela, convencendo as pessoas como se estivéssemos dentro de um anúncio publicitário dos anos 50 do século passado. e não só em ciência ou gestão pública, também em relação a livros. muita gente ainda acredita que a venda em grandes tiragens de um livro tem a ver com o quanto se anuncia um livro e a qualidade da obra. e nem sempre. há grandes livros que venderam muito pouco e há livros que venderam milhões de exemplares mesmo sem serem grandes livros e sem serem muito divulgados. depende muito mais de quem está envolvido no processo e quais os interesses que há no entorno. mas não estudei nada disso para saber dizer.

sei que no dia da defesa, quando com meus dois corações batendo, consegui explicar tudo o que eu tinha pesquisado e pensado e concluído, foi mais para mim mesma que expliquei o alcance do projeto no qual tinha estado envolvida naqueles últimos dez anos e no qual seguiria envolvida por mais algum tempo. até deixar a gestão pública num segundo plano e me enveredar pela poesia. que é um campo totalmente novo para mim. 

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não voltei a pensar muito naquele dia, naquela defesa, naquele tema. me ocupei do novo que vinha: não é fácil mudar de ramo aos quarenta.

esta semana, me lembrei daquele coraçãozinho disparado no escuro de mim, e pensei que os dezoito anos passaram como um tufão: rápido e intenso e de alguma forma lento no momento de sua duração. tanta coisa foi há um vida. aliás, há muitas vidas.

e estou de novo num começo. nunca sei ao certo o que é. mas de novo buscando aprender. de novo querendo descobrir os mecanismos que movem os processos, os gestos. 

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me convenço de que só sei começos. tudo o mais que há no mundo, todo o resto, para sempre desconheço. 

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é bom também. o mundo precisa de quem dê o primeiro passo, ou um primeiro abraço.

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era bom que a gente desse um chega também nesse projeto de morte que segue, se alastra. mas não sei por onde (começo).

9 de abril de 2021

cuidado

é tão difícil cuidar.

nem digo da essência do cuidado, digo de tempo para.

o dia, de todos nós, tem vinte e quatro horas. umas oito a gente passa dormindo. um pouco mais, um pouco menos, uns dias mais outros dias nada. de seis a oito trabalhando para ter renda e pagar a casa, a comida, a água, eletricidade,  conexão com o mundo e etcéteras que queiramos meter aí. umas duas horas preparando a comida e comendo. uma hora mais ou menos para questões de higiene pessoal e da casa. na melhor das hipóteses foram dezessete horas nisso. faltou passear o cão, limpar a caixa do gato. faltou fazer compras. faltou fazer alongamento, musculação, corrida, bicicleta. digamos vinte horas. sobram quatro. nestas quatro horas é que podemos cuidar. de nós. dos que vivem conosco. das pessoas que amamos. se vamos conversar (por telefone, que seja) ou mandar uma carta (com notícias e reflexões) já será pelo menos uma hora. se sair pra um café, não será menos de duas horas. um almoço ou um jantar, quatro. o que significa que num dia poderemos cuidar de mais uma, duas ou quatro pessoas, a depender do tipo de atividade escolhida (e possível). cuidar não é aparecer uma vez na vida de alguém. significa uma presença mais constante. de algumas pessoas cuidamos diariamente. de outras, semanalmente. de outras, ainda, uma vez ao mês. há também aquelas que, por mistérios da vida, cuidamos pouquíssimas vezes no ano e mesmo assim se sentem cuidadas. voltando para os cálculos: se no máximo consigo cuidar de quatro pessoas ao dia, na semana serão vinte e oito. para abrir espaço para cuidados ocasionais, vamos reduzir este número para vinte, e teremos oito vãos de cuidados no mês. ou, deixemos quatro cuidados mensais, dois cuidados anuais e dois cuidados esporádicos. por mais matemáticas que façamos, não é possível ter um milhão de amigos e cuidar.

cuidar parece fácil, mas não é. é uma opção. entre mil outras opções que a vida nos oferece. posso assistir um filme ou cuidar de alguém. posso também assistir o filme cuidando. é verdade.

às vezes, por exemplo, cuidamos de algumas pessoas nos sonhos. passamos horas com elas enquanto dormimos, dando um olé naquelas oito horas de sono que tínhamos desconsiderado no início dos cálculos. mas, pensando bem, isso não vale como cuidado porque ainda não conheci ninguém que decidisse o que quer sonhar. ou, pode valer, sim, desde que o sonhador relate ao sonhado, com calma e tempo tudo o que havia no sonho. o cuidado, neste caso, não terá sido o sonho, mas o tempo do relato, de ocupar-se de contar. fazer o outro saber que é lembrado e cuidado.

também dos mortos a gente segue cuidando: reviro fotos, pensamentos, conversas. e eles também nos cuidam. não sei como nem sei explicar, mas sei. e isso por enquanto me basta.

meu pai sempre se despedia dizendo: cuide-se. e eu me cuido.