7 de abril de 2021

do pequeno ao mínimo

o pé de pepino vai crescendo lenta e delicadamente, folhas e gavinhas de uma quase não matéria. difícil acreditar que será capaz de se estruturar e florescer e aguentar o crescimento de um fruto, por menor que seja o pepino. o frio voltou e não sei como protegê-lo. preciso protegê-lo? sei tão pouco de proteção. e tempo. e cuidado.

a capuchinha plantada no vaso onde fui deixando o composto orgânico cresce vigorosa e já não tenho coragem de tirá-la do lugar onde está, apesar das rodinhas sob o vaso pesado. sobe por todo lado, se mete no meio da mangueira e da torneira, sob a pia, e segue determinada, sabe-se-lá até onde, as flores entre o verde: laranjas, amarelas, amarelo clarinho. até uma ou outra flor vermelha apareceu. ocupa o olhar. faz companhia para o alecrim e suas florezinhas lilases, para o calanchoe vermelho-sangue e as florezinhas delicadas da rúcula que cresceu com muito sol.

o limoeiro se encheu de botões mas nem todos os botões se abrirão. cada dia vou catando os botões de flor perfumados. guardo num vidrinho com vinagre, para me lembrar dos inúmeros botões que se perdem para que haja ao menos um limão. e para temperar a salada com vinagre com perfume de flor de limão.

também os morangos florescem e o miolhinho amarelo da flor vai crescendo em tufinho verde, que logo se mostra um pequeno morango sem cor mas já com o formato que terá quando crescido e os pontinhos, os mil e um pontinhos cobrem cada um dos frutos que pendem pra fora dos vasos.  melhor assim, porque os morangos que crescem sob as folhas em geral são devorados por lesmas e caracois que a gente sabe que existem mas não sabe onde se escondem de dia.

plantei umas batatas, sem muita esperança de ter batatas. mas sem querer jogar fora o broto que apareceu nas batatas que dormiam no escuro. o cachorro revirou uma das batatas plantadas. não sei se comeu, se mastigou ou se só removeu e deixou no mesmo lugar.

preciso comprar terra para completar as caixas plásticas que peguei outro dia na rua, abandonadas. aqui abandona-se muita coisa nos dias da semana que a prefeitura passa pra recolher móveis e objetos de grandes dimensões. nem tudo é aproveitável. mas estas caixas plásticas serão boas para plantar coisas de horta, que não sobreviverão ao inverno. as plantas perenes é que pedem vasos perenes. e mesmo assim pedem para mudar de vaso. o que também não é fácil de fazer: mudar uma planta de vaso. é como mudar de casa. às vezes a gente custa a acomodar as raízes, a entender onde é que vai encontrar água e alimento. as raízes das plantas se desorientam quando a gente troca o vaso. um dos alecrins, por exemplo, e uma muda de limão que venho acompanhando há uns anos, se ressentiram da última troca de vasos. não sei se se recuperarão. também eu às vezes acordo no meio da madrugada e ainda penso que é numa casa com jardim que vivo e há um gato passeando no escuro, entrando e saindo pela janela. mas não, há muitos anos não há gato, janela nem casa. e é outro o país. as raízes, onde estão?

***

uma amiga querida estava grávida de pouco e perdeu o bebê. embora isso seja resumo demais para a tristeza dela e minha. às vezes a gente quer tanto, tanto alguma coisa que parece a coisa mais simples do mundo e não consegue. e é tão difícil entender por que não se consegue se pra outras pessoas aquela coisa vem de forma tão simples, quase sem esforço. às vezes quero dizer para minha amiga deixar de pensar em tudo isso. depois, em seguida, antes mesmo de dizer não pense, eu digo: pense, pense muito. faça seu luto. é preciso fazer os lutos, reconhecer o buraco em que estamos, avaliar o que nos resta e pensar uma maneira de seguir. o luto não evapora, não passa, não é verdade que estas coisas passam com o tempo. não passam. ganham novos lugares e, como as pedras que vão rolando no fundo do rio, vão se tornando uns seixos redondos, que são bons de pisar, de pegar na mão.

(ultimamente têm me aparecido de repente memórias de infância que eu nem sabia que tinha. quando escrevi sobre as pedras no fundo do rio lembrei de um riacho não sei onde que tinha muitos destes seixos redondos e a gente pondo os pés ali naquela água gelada e nem era pouca água ou eu é que era muito pequena e qualquer riozinho já me chegava na cintura. me veio a sensação do pé no fundo do rio, a água fria, o sol batendo na água, o cheiro do mato em volta. se eu pudesse, faria uma foto desta memória pra sair perguntando: você também esteve lá? onde era esse lá? e quando?)

os filhos que não tivemos. as filhas. as pessoas que o mundo não conheceu. a pessoa que nunca seremos.

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os dias passam. se por aqui tudo parece se organizar na medida em que as árvores voltam a ficar verdes, na medida em que as sementes escondidas brotam onde menos se esperava e há flores por todo lado, cada matinho, cada moita, tudo floresce, sempre com pressa porque o inverno não vai esperar e até lá há que se dar fruto, por lá o mundo parece se esfacelar, aprofundando a fissura entre ricos e pobres. porque não há um aqui e um lá. não há um sul e um norte. é tudo um mesmo momento de um mesmo mundo que afundará se insistirmos nas fronteiras entre o que sou eu e o que não sou eu. entre o meu e o que não é meu. entre os meus semelhantes e os meus diferentes. que aflição que isso me dá.

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vários amigos comentam que não conseguem mais entrar nas redes sociais porque é como enfrentar um cemitério que avança seus muros sobre os espaços que antes eram plantações. sempre fomos esta fossa comum de mortes? os grandes genocídios não nos dizem nada enquanto não são os meus semelhantes os que são assassinados?

quero ir para o brasil. não é um querer voltar para um território específico. é querer estar numa situação muito particular, de encontro, alegrias, abraços. de possibilidades. um exílio sanitário, este. um exílio pandêmico. tenho saudade de pessoas que amo. e que é impossível abraçar agora.

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escombros. ruínas. ruptura. são as palavras que me ocupam, que se instalam. por mais que eu insista na urgência de buscar outras: ombros, risos, sutura. logo uma notícia mais que leio e uma resignação mais que constato... e crescem os abismos entre o que somos e o que queremos ser, entre o que projetamos como futuro político e coletivo e o que de verdade fazemos e decidimos em nossas vidas. por que é tão difícil conectar, planejar, transformar o modo de ver e viver?

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