9 de abril de 2021

cuidado

é tão difícil cuidar.

nem digo da essência do cuidado, digo de tempo para.

o dia, de todos nós, tem vinte e quatro horas. umas oito a gente passa dormindo. um pouco mais, um pouco menos, uns dias mais outros dias nada. de seis a oito trabalhando para ter renda e pagar a casa, a comida, a água, eletricidade,  conexão com o mundo e etcéteras que queiramos meter aí. umas duas horas preparando a comida e comendo. uma hora mais ou menos para questões de higiene pessoal e da casa. na melhor das hipóteses foram dezessete horas nisso. faltou passear o cão, limpar a caixa do gato. faltou fazer compras. faltou fazer alongamento, musculação, corrida, bicicleta. digamos vinte horas. sobram quatro. nestas quatro horas é que podemos cuidar. de nós. dos que vivem conosco. das pessoas que amamos. se vamos conversar (por telefone, que seja) ou mandar uma carta (com notícias e reflexões) já será pelo menos uma hora. se sair pra um café, não será menos de duas horas. um almoço ou um jantar, quatro. o que significa que num dia poderemos cuidar de mais uma, duas ou quatro pessoas, a depender do tipo de atividade escolhida (e possível). cuidar não é aparecer uma vez na vida de alguém. significa uma presença mais constante. de algumas pessoas cuidamos diariamente. de outras, semanalmente. de outras, ainda, uma vez ao mês. há também aquelas que, por mistérios da vida, cuidamos pouquíssimas vezes no ano e mesmo assim se sentem cuidadas. voltando para os cálculos: se no máximo consigo cuidar de quatro pessoas ao dia, na semana serão vinte e oito. para abrir espaço para cuidados ocasionais, vamos reduzir este número para vinte, e teremos oito vãos de cuidados no mês. ou, deixemos quatro cuidados mensais, dois cuidados anuais e dois cuidados esporádicos. por mais matemáticas que façamos, não é possível ter um milhão de amigos e cuidar.

cuidar parece fácil, mas não é. é uma opção. entre mil outras opções que a vida nos oferece. posso assistir um filme ou cuidar de alguém. posso também assistir o filme cuidando. é verdade.

às vezes, por exemplo, cuidamos de algumas pessoas nos sonhos. passamos horas com elas enquanto dormimos, dando um olé naquelas oito horas de sono que tínhamos desconsiderado no início dos cálculos. mas, pensando bem, isso não vale como cuidado porque ainda não conheci ninguém que decidisse o que quer sonhar. ou, pode valer, sim, desde que o sonhador relate ao sonhado, com calma e tempo tudo o que havia no sonho. o cuidado, neste caso, não terá sido o sonho, mas o tempo do relato, de ocupar-se de contar. fazer o outro saber que é lembrado e cuidado.

também dos mortos a gente segue cuidando: reviro fotos, pensamentos, conversas. e eles também nos cuidam. não sei como nem sei explicar, mas sei. e isso por enquanto me basta.

meu pai sempre se despedia dizendo: cuide-se. e eu me cuido.

2 comentários:

Indra disse...

Cuidar, gosto. Esse exercício de dividir o dia, as 24 horas que temos, em várias porções para cada ser que temos nas nossas vidas, é um exercício bom, não é? Amei o seu! Eu sou de cuidar também. Dedico boa parte dessas minhas 24 horas ao planejamento de como dividir o amor. Não vejo como 24 horas, mas prefiro dividir por dias, semanas ou até meses. É muita gente querendo amor. E, claro, também temos nós mesmas. O meu tempo é meu maior bem. Às vezes não entendo como tem gente que não consegue separar um tempo para yoga, ou ler, ou simplesmente ver o céu e as estrelas. Pensei, quando li o seu post, no Marcel Proust. O tempo...

v. paulics disse...

indra, querida, o exercício de dividir o dia em horas é mais mental que real. a vida é um fluxo, este rio que somos, juntos. cuidando umas das outras, uns dos outros e da gente mesma. o tempo é tudo (e nada) que a gente tem. que você entre aqui, que leia, que escreva, agradeço este cuidado também.