15 de abril de 2021

olhai as aves do céu


 

tenho deixado bem delimitados os diferentes espaços digitais. aqui (e me repito, eu sei), publico textos que já não publico em outros lugares. mas poucas vezes tenho posto fotos que, por sua vez, só publico no instagram, como esta foto que aí se vê. é de ontem, publiquei hoje.

ali, só pus a foto, sem explicações.

depois, fiquei pensando que o olhar rápido dos cliques e laiques e dedo rolando a barra para repassar todas as notícias do mundo e da vida dos outros talvez não dê conta do tudo que vi além da árvore e do céu azul e das aves no chão.

o que eu queria registrar, e me parece que ficou mais discreto que tudo, era a dúzia de maritacas nos galhos ainda pelados. distantes umas das outras, apoiavam-se numa pata  e com a outra pata levavam pedaços de pão pro bico. parei pra olhar e me dei conta que os pães tinham sido dados para os pombos, no chão, onde eles disputavam entre si os nacos. de repente, baixava voando uma maritaca, fazendo estardalhaço, e levando para o alto dos galhos o pedaço de pão. na medida que a maritaca comia o pão, caíam migalhas que os pombos voltavam a disputar entre si. pombo também voa. e havia muitíssimos mais pombos que maritacas.

à esquerda da foto, se se olhar com atenção, pode-se ver várias barracas de acampamento, talvez se repare também em objetos acumulados. é uma comunidade de pessoas sem casa que se instalou ali desde o começo desta crise sanitária. cada dia há mais pessoas. não fazem barulho, ocupam discretamente os muros da praça. ao lado de um hotel. que é este prédio que aparece à esquerda da foto. branco, alto. e vazio. como estão praticamente todos os hotéis e apartamentos de turismo da cidade.

o que não aparece na foto, mas vejo todos os dias da minha janela, são os enormes guindastes que continuam derrubando quarteirões inteiros de vilas de casas baixas e predinhos para levantar hotéis e edifícios de escritórios.

a foto é isso. os pombos conseguem uns pedaços de pão, as maritacas vêm e roubam. quando devoram o pão, caem as migalhas, e as pombas disputam entre si. sem olhar pro alto da árvore, sem se dar conta que são muitas mais que as maritacas.

queria dizer tudo isso de um modo mais poético, que ultrapassasse a linguagem didática. mas estou seca, puro didatismo oco. afinal, quem sou eu para ensinar o quê a quem?

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estou aprendendo a escrever letra para música. não é fácil porque as palavras no meu mundo são as que constroem sons e ritmos e ideias. na letra da canção a palavra entra de outra maneira, não sendo quem ela quer ser, nem sempre na sua potência máxima.

por isso, exatamente por isso, me interessa. sair do lugar de poder e enveredar pelo espaço frágil daquilo que não se sabe e que depende de outras coisas mais para existir.

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na cortina de blackout do quarto há um pontilhado de buraquinhos. quando o sol nasce, fica parecendo uma constelação. no inverno o sol nasce depois que a gente já se levantou. mas quando vem a primavera, os dias amanhecem cada vez mais cedo e ao ver a constelação inevitavelmente cantarolo zeca baleiro: um céu cheio de estrelas feitas com caneta bic num papel de pão. e fico um tempo pensando na dificuldade que seria traduzir isso, explicar o tanto de coisa que tem aí nessa letra. nem as estrelas são as mesmas. nem a caneta. que dizer do papel de pão?

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meu filho chegando aos dezoito e eu ainda me pergunto como-quando vou saber dizer da dor que me atravessava naqueles dias? como se explica para um filho o medo de uma mãe de perdê-lo ao nascer, ou tempos depois vendo-o na corda bamba se afastando muitos passos e querer que ele se virasse, que me visse, que quisesse fazer parte deste mundo, do meu mundo. como explicar que o que quero é perdê-lo como toda mãe perde os filhos: um pouco a cada dia, no desaparecimento natural das vidas, distanciando-se e ganhando-o na proximidade lenta que se impõe entre o tempo de semente e o de ser isso que dizem um adulto.

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tenho evitado o tema da covid. ainda que tudo  aqui (e aqui quer dizer casa, cidade, país, mundo, texto, pensamento, poesia, vida) seja sobre esse monotema e seus desdobramentos. alguns dias amanheço com o desejo de recusa: negar que isso tudo exista, fingir que é uma armação pra gente ser manipulado e controlado, escapar deste controle e deixar de usar máscara, abraçar, fazer festa. esquecer. basta chegar nas notícias do dia e tudo em mim se contrai e tudo em mim volta para a ideia de um cuidado do mundo. tenho rezado, sabe-se lá para quem, que tenhamos alguma luz pra sair disso tudo. e nem é sair do vírus, do contágio. é sair desta encalacrada de mundo plástico, branco, racista, consumista, superficial, machista, patriarcal, capitalista em que estamos metidos, matando-nos como se nada. como se o outro fosse um número supérfluo, sobrante. só o eu é que vale e importa. como ultrapassar estas fronteiras ásperas que nos construímos se já não me sinto pertencente a nenhum lugar? como voltar a me sentir pertencendo a todo e qualquer lugar?

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e quando tudo parece impossível, me lembro de uma amiga querida que me disse da última vez que estivemos juntas: tenho olhado para o movimento de mulheres negras e me deixo guiar por elas. penso nisso e escrevo: “mergulho na negra densidade do que se prepara para nascer”. e sigo.

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