19 de abril de 2021

no começo de que mundo

entre a nossa casa e o parque onde vamos passear, está o velório municipal. aqui se chama tanatório. talvez em português também fosse a palavra mais exata, mas não lembro de ter ouvido falar em tanatórios municipais.

há alguns meses, quando chegávamos perto, uma ou outra vez alguém nos pedia informação para chegar até lá. o entorno está em obras. o entorno sempre foi um pouco estranho, vitrines com pedras para tumbas, inscrições em lápides, flores em forma de coroa. e grandes construções cinzentas. a cidade em transformação. o que era beira se meteu no meio.

nas últimas semanas, quase a cada dia alguém nos pergunta onde fica o velório. alguns dias, três grupos de pessoas nos perguntaram como chegar.

já reconheço pelo olhar perdido e sei quando vão me fazer um sinal como afogado estendendo a mão e a mão é escorregadia e não há como manter o corpo na superfície. na luz da tarde o olho brilha cheio de lágrimas em suspensão. se são velhos os que perguntam, o olhar é mais resignado, quase cúmplice, como quem sabe e conhece.

como os cães quando lhes doi alguma coisa e eles não entendem e nos olham pedindo socorro, querendo saber por que não fazemos nada que os alivie. como nós quando olhamos para deus e deus nos devolve o olhar. deus nos põe em seu colo. mas é pouco.

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me lembra rilke.

“e mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado forte, pois que é o belo senão o grau do terrível que ainda somos capazes de suportar porque impassível desdenha destruir-nos?”

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tenho desviado de poetas homens europeus. mas é difícil desviar das elegias de duíno.

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há algum tempo, carlito azevedo publicava umas “explicações” de poesia, que eram uma espécie de releitura. eram bonitas. e uma das que ele  “explicou” foi esta primeira elegia. da qual eu gosto muito.

me lembro do banco de ônibus em que viajei quando li pela primeira vez, me lembro da paisagem rolando do lado de fora da janela. mas não sei para onde eu ia. ia pra dentro do poema. nunca mais saí. é um dos lugares onde tenho casa. de vez em quando volto e descubro mais alguma coisa que eu não tinha reparado. agora, estes nossos olhos de cão olhando pro divino. pedindo que tire a nossa dor. 

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às vezes me pergunto como seria uma narrativa da história da poesia desde o ponto de vista de outro povo que não o branco europeu. uma poesia ameríndia, em que os gregos, os romanos, os trovadores e o escambau entrassem como afluentes, no grande rio das palavras sagradas poéticas, e não estas palavras ameríndias entrando no grande rio da poesia ocidental, sendo lidas a partir de um centro colonizador, violento.

o que será que escreveríamos? insistiríamos em rimar amor e flor ou as palavras narrariam o eterno recomeço do mundo, sua criação em ritmo de chama e vento? descreveríamos a geometria sagrada das sementes e dos olhos que nos olham do fundo da caverna escura?

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pediríamos: oh, grande pulmão do mundo, não deixe que nos falte ar! e a brisa nos cabelos.

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