16 de abril de 2021

um nós, muitos nós

as palavras continuam caindo sobre mim, como ruínas, escombros. milhares de palavras na cabeça, na boca. e não sei organizá-las, para que façam sentido, para que encontrem o caminho e sejam resposta para dezenas de mensagens que me pedem respostas. na incapacidade, fico quieta, não em silêncio, porque o silêncio, sabe-se, não é este caos. toda palavra que não encontra um rumo é um ruido absurdo na cabeça, bagunça de papeis sobre a mesa, cansaço nos ombros.

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há mais de um ano mudei o nome do blogue para não ando a pé. e já nem é tão verdade. até ando a pé, sim. vou até a praia, porque está aqui perto. vou ao centro se preciso. mascarada e rígida como as velhas senhoras que buscavam fugir do pecado. buscavam? o que será que ia na cabeça delas ao pensar que fugiam, ao pensar em pecado, ao se pensarem rígidas. velha senhora. vou me tornando uma velha senhora. a tia da equipe disse uma amiga dia desses quando falou sobre o seu novo trabalho.

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ser tia. tive quatro tias. agora tenho duas. todas me trazem uma sensação de conforto, alegria, quebra dos hábitos que tínhamos em casa. a mais nova delas nos acolheu quando meu irmão mais novo nasceu. ou é assim que eu lembro. quando preparou o ovo mexido, deixou tostar um pouco a manteiga e o ovo mexido ficou meio marrom. diferente do ovo mexido que minha mãe fazia. lembro de sentar para comer, o garfo espetando um pedacinho de ovo e a lágrima escorrendo e pingando no prato. não estava bom. eu queria minha mãe. então ela disse que a gente poderia experimentar o suco de cenoura que tinha feito para filho, um bebê, nosso primo. o nó na garganta não passava. mas era tão linda aquela tia...

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ando com nó na garganta que não passa.

vejo muita gente já publicando o que produziu no último ano, cheio de conclusões e ideias claras. me sinto lenta demais. não consigo nem olhar para os textos destes últimos doze meses, desvio deles, me assustam. que dizer de tirar conclusões sobre onde tudo isso vai dar. ou o que isso vai impactar em nós, as marcas no corpo, os problemas de saúde física e mental, as crianças pequenas, os adolescentes, os velhos. tempos que nos roubaram diz uma amiga que, mais que tudo, queria estar agora com seu neto em uma outra cidade, para onde ela não pode ir. mesmo se pudesse, acho que ela preferiria ficar por aqui até ser vacinada. o medo do vírus é maior que a saudade do neto. o medo do vírus é o medo da morte. a nossa morte. a morte do outro. todas as mortes virão. é certo. mas não a queremos desse jeito. sem sequer uma mão dada à nossa.

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não tenho muito jeito com a coisa digital. reluto em assistir lives, em fazer videochamadas. ao mesmo tempo sei da alegria que é ao menos ver na tela do celular as pessoas que amamos e que estão longe. agora, todas as pessoas estão longe, mesmo aquelas que moram no quarteirão vizinho. não sei o que vai ser. quando o mundo todo migrar para o virtual e eu, aqui na vida concreta de cada dia, estiver cozinhando a minha comida, costurando minha roupa, escrevendo textos em caderninhos. infinitos caderninhos e minha letra linda e ilegível neles. datas e nomes, comentários e listas, restos de poesia perdidos, do que eu escrevi, do que eu copiei, do que eu busco relembrar. filmes que quero ver, endereços físicos aonde ir quando pudermos ir.

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máscaras.

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no final do mês vou conhecer – pela tela – o poeta edward hirsch que escreveu uma linda elegia para seu filho morto, gabriel. é um livro duro e lindo, que transcende a própria dor de um pai, que traz para o centro da história um menino que era um furacão e que numa noite de tormenta­­­ não voltou para casa. por três dias o pai e a mãe o procuraram. até o encontrarem no necrotério.  releio o livro pela enésima vez. não é sobre gabriel e sua morte. mas é sobre gabriel e sua morte e sua vida. única. incompreensível. desadaptada. irreverente. uma vez me disseram que a vida completa de alguém inclui sua morte. nascimento, existência e morte é o que compõe uma vida. e o que se pergunta para alguém que perde um filho assim numa noite de tempestade? o que se pergunta para alguém que soube reunir tudo de uma vida em setenta e seis poemas, como se fossem todos um mesmo e único longo poema? o que se diz? e o que se pede  a este homem? que leia sobre o velório? sobre a dor? sobre o que ele viveu há dez anos? dez anos não é nada. e já é um luto percorrido. já é um livro publicado, divulgado, traduzido. já se infiltrou na minha vida e na minha relação com meus filhos e sua possível morte. porque para morrer, sabemos, basta estar vivo.

quero e não quero que chegue este dia de abril.

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andamos tão cheios da morte.

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há vinte e cinco anos o massacre de eldorado de carajás. um soco no estômago. e o soco ainda hoje segue sendo socado, por todo o corpo da nossa existência.

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o primeiro morango do ano está quase maduro. o pepino e o tomate já têm pequenas flores. todos os alhos e cebolas estão florindo também. e o alho poró que mal cresceu já tem a bolinha na ponta da haste pronta a explodir num mini crisântemo roxo ou esverdeado.

às vezes, há abelhas. vêm atraídas pela capuchinha, eu acho. que parece uma grinalda, um sol se estendendo em pétalas laranjas e amarelas.

os também gerânios florescem.

a vida insiste, insiste, segue, urgente e ritmada ao mesmo tempo.

e os dias passam. 

e nós...

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