25 de maio de 2020

a casa no escuro

o que faremos com o silêncio?


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nas últimas três noites venho tendo um mesmo pesadelo, só mudam algumas cores. entro numa casa que está no escuro. entra um pouco de luz, bem pouco, suficiente para ver minimamente o contorno de uns móveis, sabe? quando só se vê uns reflexos e se sabe que há alguma coisa ali? e cada vez que entro na casa é diferente a cor da luz que entra e me faz reconhecer que há móveis. uma vez a luz foi azul, depois verde, da terceira vez, não sei, mas sei que pensei: é sempre diferente esta cor. e todas as vezes, ao entrar e ver aquele escuro e aquela luz, sei que aquilo não é um sonho, mas um pesadelo. e sei que será um pesadelo muito ruim. me esforço para acordar. e acordo. levanto, faço xixi, volto a dormir. sem o pesadelo. ontem ou antes de ontem, depois de levantar e voltar a dormir, encontrei o perec e conversamos sobre aquele palíndromo imenso que ele escreveu. me deu alguma sugestão, não lembro qual era. esta parte do sonho foi boa.

também tenho tido pesadelos com o bolsonaro. que ele vem na nossa casa, como vinham os vendedores de porta em porta, e eu não o deixo entrar. esta parte claramente não é um sonho, é um pesadelo.

 

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estive lembrando. quando me dei conta do que nos esperava e veio o aviso de que já no dia seguinte as escolas estariam fechadas, levei um susto. o que parecia tão longe, mesmo a itália sendo tão perto, estava aqui entre nós, na nossa porta, no nosso encalço. eu pensava no vírus. como uma entidade concreta e repleta de quereres. e que queria nos matar.

depois, com as notícias do que já acontecia por toda parte, com o caos nos hospitais, com pessoas que morriam asfixiadas, com as informações truncadas e distorcidas, tive medo. não tanto do vírus, mas da doença, da morte. medo de sermos aquela porcentagem que não escapa. que se afoga na ausência de lugar na uti.

e então chegou o desamparo.

para contorná-lo de alguma maneira, me aferrei à rotina. rotina dos meninos, rotina da escrita, rotina da casa. a rotina era o fio condutor dos dias, se estendia no ar entre dois pontos perdidos na névoa: o momento que passou e o que vem logo agora. e assim, desequilibrista na corda imaginária, vim.

não era só eu assim. claro que desde o começo tinha gente dizendo que era a oportunidade para aprender outras línguas, ver mil filmes, terminar projetos começados há anos. mas a maioria estava como eu. com esta angústia difusa. esta sensação de estarmos presos num ponto do universo sem saber onde vamos pousar.

quando a vida entrou numa certa cadência, a primavera trazendo dias mais longos, sol, e não faltou comida, não faltou luz nem água, primeiro respirei aliviada e depois consegui olhar em volta. e nessa hora, que não passou e talvez não passe, o susto, o medo e a sensação de desamparo saíram do espaço imediato da vida mais próxima – da casa, da cidade, do país onde vivo. passei a olhar as notícias do mundo, e não é mais vírus nenhum que me ocupa o pensamento. os vírus estão aí faz tempo. um vírus mais potente só potencializa a nossa forma de lidarmos uns com os outros. se os vírus leves já matavam os mais frágeis, um vírus forte matará ainda mais estes mesmos mais frágeis. mas não tem nada a ver com o vírus. repare. tem a ver com formas de organização social. a desigualdade, a pobreza, a ignorância matam. a falta de equipamentos de saúde públicos, a falta de equipes médicas de atenção pública, a falta de possibilidade de se isolar sem morrer de fome, a falta de água e sabão matam.  

e cada dia a gente segue entre a paisagem de ontem bem conhecida e a paisagem de amanhã, que é nebulosa, vaga, sempre por construir. há muita gente ocupada construindo um amanhã que seja idêntico ao ontem. e muita gente gritando que não quer, não quer. que quer outra coisa. mas o que é que a gente quer?

se somos, mesmo, o sonho realizado dos nossos antepassados, o que eles projetaram – para o bem e para o mal – vamos sonhar, projetar o que queremos para os nossos descendentes.  e explicitar esse projeto. que vai demandar recursos de algum tipo. e renúncias.(se você está lendo este texto, melhor não dizer que já renunciou a tanta coisa.)

neste projeto, quero incluir a construção de uma canção que recubra a terra, como uma teia, uma rede. não de proteção, mas de embalar e ninar.

 

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o que faremos do silêncio?

 

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os animais equivalem a um quinto da biomassa do planeta. as formigas equivalem a um quinto da biomassa dos animais do planeta. não acho que se tenha que acabar com as formigas, ou os humanos, pro planeta ter perspectiva. o bonito é o conjunto que somos, esta variedade. pense na pena do pavão? tanta beleza. às vezes, na praia, há umas conchinhas minúsculas, de desenhos lindos. ou pense nas águas-vivas e seu movimento idêntico ao bater do nosso coração. em espanhol, nosso coração late, como um cão.

 

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há dez anos o ivar morreu. ficou aquele nó no peito e no pensamento de que alguma coisa poderia ter sido feita para evitar aquela morte. me lembro até hoje do momento em que tive a notícia, o bolo que eu estava fazendo pro aniversário da pat, me lembrando das sugestões do ivar: acrescenta um ovo e uma colher de manteiga e a receita vai dar certo, sem saber que ele já não poderia nunca mais me dar aquela sugestão. registrei a receita como bolo do ivar. e fiquei muito tempo em silêncio, um silêncio interno, por fora conversando e fazendo o que era preciso fazer.

este ano, dez anos depois, a mãe do ivar virou avó da rita.

e uma criança nascendo é outro tipo de silêncio.

mas a paisagem na memória pode ser a mesma para duas criaturas tão diferentes, tão conectadas e que nunca terão se encontrado na superfície deste planeta.

 

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há muitos anos, dizer que eu era brasileira gerava alguns comentários um tanto constrangedores, além do: ah, sim, café, samba e futebol. já nos anos 2000 dizer que era brasileira era o mesmo que dizer que éramos cúmplices da mais maravilhosa mudança de vida de um país, era falar de futuros e alternativas. há dezessete meses, dizer que sou brasileira gera consternação. há dois meses, os amigos que não são brasileiros se lembram de mim a cada noticiário. e lamentam. e me mandam mensagens torcendo para que os noticiários estejam exagerando, que os meus estejam bem. digo: estão bem, se é possível estar bem em meio a este caos, que aponta para dias ainda mais caóticos, sobre a tal corda, tão bamba, e com o risco de que resvale pro pescoço.

 

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o que faremos no silêncio?

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