amanheci pensando tantas coisas enquanto dava uma volta,
caminhava ao sol, na praia, vendo o horizonte. voltando para casa, soube da
morte do aldir blanc e milhares de música letras canções se misturaram na
cabeça trazendo a memória confusa de tantos momentos diferentes da vida. a
memória, esta caixa de onde salta de um tudo de maneira desordenada. dentre centenas
de composições do aldir, gosto, especialmente, desta:
“meu coração tropical está coberto de neve mas ferve em
seu cofre gelado e a voz vibra e a mão escreve: mar.”
mas também daquela, maravilhosamente clássica, que nos
faz ver a tarde caindo feito um viaduto, numa impossibilidade total de traduzir
tudo o que cabe, e cada vez mais caberá, nas seis palavras deste verso. como é
que a tarde cai como um viaduto? e eu vejo e sei, mas não sei explicar. aliás,
vejo um viaduto específico que também não sei que viaduto é.
(acho que o leonard cohen estava certo ao decidir
transformar seus poemas em canções. os poemas ganham uma vida mais ampla, voam mais. mas para
isso não serve a poesia em prosa.)
***
me pergunto quem serão, daqui a vinte anos, os sábios
musicais brasileiros.
depois, volto no tempo, e penso neste dia exato há vinte
anos.
***
quando nasce alguém, ou quando morre, conta-se os dias
que passam. os primeiros dias, até completar um mês, os vários meses, até
completar um ano, depois de ano em ano, consolidando uma vida ou uma ausência.
no caso das histórias de encontros, em geral é bem depois
do primeiro dia, da primeira semana ou do primeiro mês que se constata que há
algo ali, existindo. e é uma memória retroativa que pode dizer: veja, começou
tal dia, em tal lugar. e nunca a gente sabe em que momento aquilo se tornou uma
história que nos constitui. foi depois de tres meses? foi depois de um ano? foi
quando passamos a morar na mesma casa? quando acolhemos um gato? quando tivemos
um filho? a primeira viagem ou a primeira pesquisa que fizemos juntos? quando
foi?
penso que foi cada dia. desde que não prometemos amor
eterno, é no amor de cada dia que os vinte anos foram se constituindo e sendo
isso que são. a cada dia. mais de seis mil e setecentas vezes decidindo que
sim, que seguimos, que queremos estar juntos.
pensar tudo isso é uma coisa, escrevê-las é de alguma
maneira afastá-las da realidade na qual estão amparadas. ficam palavras
desamparadas. quase atônitas.
o amor é um tanto atônito tantas vezes.
em 2000 tínhamos trinta e tres anos e, por ser um ano
bissexto, trinta e tres dias entre um anivesário e outro. este ano temos
cinquenta e tres e estamos há cinquenta e tres dias neste isolamento. pequenas
coincidências que fazem sorrir. os números usados aleatoriamente nos permitem
muitas mágicas. o das coincidência, principalmente.
***
com o passar dos dias fui deixando de lado aquilo de
anotar sete coisas vistas, sete coisas ouvidas e sete coisas feitas. hoje,
resolvi inverter. farei listas de sete coisas por ver, sete coisas por ouvir e
sete por fazer. a cada dia. dentro de casa, como se buscasse pequenos tesouros
que sei que estão mas já não tive paciência de buscar e contemplar. enquanto
caminhava vi um feixe de flores que antes eu não tinha visto pelas ruas da
cidade: eram uns caules compridos e na ponta uma flor que parecia um pequeno
crisântemo amarelo. registrei com o olhar. saí só com chave e documento. pra
ter mais leveza. minha cabeça voltou cheia de imagens. o mundo é grande.
(em húngaro, o nome do crisântemo é rosa de outono. só descobri isso porque achei estranho uma revolução se chamar revolução das rosas de outono, quando traduzi ao pé da letra.)
e precisamos de tão pouco.
***
mas nos oferecem tanta coisa, como se precisássemos
delas.
em algum artigo se defendia a ideia de que não havendo
demanda de determinada coisa, ela deixaria de ser produzida.
num primeiro momento espontaneamente pensei: claro, se
reduzirmos demandas, alteramos a forma de produzir no mundo! voilá!
depois, pensando em milhares de coisas que me parecem
inúteis e que são desejadas e porque são desejadas são produzidas e vendidas,
vejo que há muitas complexidades neste raciocínio que tentei deixar plano como
a terra não é.
longe de ser franciscana, quem é que precisava de
sandalias melissinha, aquelas de plástico transparente e que suavam os pés e
depois rasgavam quando estavam gostosas de usar? mas alguém teve a ideia de
produzir sandálias e quando pareceu viável e lucrativo, criou-se a demanda por
sandalias de plástico, especialmente entre adolescentes, mas não só. vendeu-se
muita sandália de plástico. multidões enquanto isso continuavam descalças
pisando o planeta intoxicado pelos resíduos resultantes da produção das
sandálias para uns poucos. é só um exemplo, veja. mas não é a demanda que
define o que se produz. o mecanismo é outro, e não prevê processos democráticos
de tomada de decisão, nem a distribuição de bens, nem o acesso universal a
direitos básicos como vida, água, comida, casa. nada.
***
comentei com um amigo que estes dias circulam coisas
lindas na internet. e ele me diz: li numa entrevista que “nunca os nossos
olhares foram tão disputados”. cara e coroa.
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