4 de maio de 2020

a voz vibra e a mão escreve: mar


amanheci pensando tantas coisas enquanto dava uma volta, caminhava ao sol, na praia, vendo o horizonte. voltando para casa, soube da morte do aldir blanc e milhares de música letras canções se misturaram na cabeça trazendo a memória confusa de tantos momentos diferentes da vida. a memória, esta caixa de onde salta de um tudo de maneira desordenada. dentre centenas de composições do aldir, gosto, especialmente, desta:
“meu coração tropical está coberto de neve mas ferve em seu cofre gelado e a voz vibra e a mão escreve: mar.”

mas também daquela, maravilhosamente clássica, que nos faz ver a tarde caindo feito um viaduto, numa impossibilidade total de traduzir tudo o que cabe, e cada vez mais caberá, nas seis palavras deste verso. como é que a tarde cai como um viaduto? e eu vejo e sei, mas não sei explicar. aliás, vejo um viaduto específico que também não sei que viaduto é.

(acho que o leonard cohen estava certo ao decidir transformar seus poemas em canções. os poemas ganham uma vida mais ampla, voam mais. mas para isso não serve a poesia em prosa.)

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me pergunto quem serão, daqui a vinte anos, os sábios musicais brasileiros.
depois, volto no tempo, e penso neste dia exato há vinte anos.

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quando nasce alguém, ou quando morre, conta-se os dias que passam. os primeiros dias, até completar um mês, os vários meses, até completar um ano, depois de ano em ano, consolidando uma vida ou uma ausência.
no caso das histórias de encontros, em geral é bem depois do primeiro dia, da primeira semana ou do primeiro mês que se constata que há algo ali, existindo. e é uma memória retroativa que pode dizer: veja, começou tal dia, em tal lugar. e nunca a gente sabe em que momento aquilo se tornou uma história que nos constitui. foi depois de tres meses? foi depois de um ano? foi quando passamos a morar na mesma casa? quando acolhemos um gato? quando tivemos um filho? a primeira viagem ou a primeira pesquisa que fizemos juntos? quando foi?
penso que foi cada dia. desde que não prometemos amor eterno, é no amor de cada dia que os vinte anos foram se constituindo e sendo isso que são. a cada dia. mais de seis mil e setecentas vezes decidindo que sim, que seguimos, que queremos estar juntos.
pensar tudo isso é uma coisa, escrevê-las é de alguma maneira afastá-las da realidade na qual estão amparadas. ficam palavras desamparadas. quase atônitas.

o amor é um tanto atônito tantas vezes.

em 2000 tínhamos trinta e tres anos e, por ser um ano bissexto, trinta e tres dias entre um anivesário e outro. este ano temos cinquenta e tres e estamos há cinquenta e tres dias neste isolamento. pequenas coincidências que fazem sorrir. os números usados aleatoriamente nos permitem muitas mágicas. o das coincidência, principalmente.


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com o passar dos dias fui deixando de lado aquilo de anotar sete coisas vistas, sete coisas ouvidas e sete coisas feitas. hoje, resolvi inverter. farei listas de sete coisas por ver, sete coisas por ouvir e sete por fazer. a cada dia. dentro de casa, como se buscasse pequenos tesouros que sei que estão mas já não tive paciência de buscar e contemplar. enquanto caminhava vi um feixe de flores que antes eu não tinha visto pelas ruas da cidade: eram uns caules compridos e na ponta uma flor que parecia um pequeno crisântemo amarelo. registrei com o olhar. saí só com chave e documento. pra ter mais leveza. minha cabeça voltou cheia de imagens. o mundo é grande.

(em húngaro, o nome do crisântemo é rosa de outono. só descobri isso porque achei estranho uma revolução se chamar revolução das rosas de outono, quando traduzi ao pé da letra.)


e precisamos de tão pouco.

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mas nos oferecem tanta coisa, como se precisássemos delas.
em algum artigo se defendia a ideia de que não havendo demanda de determinada coisa, ela deixaria de ser produzida.
num primeiro momento espontaneamente pensei: claro, se reduzirmos demandas, alteramos a forma de produzir no mundo! voilá!
depois, pensando em milhares de coisas que me parecem inúteis e que são desejadas e porque são desejadas são produzidas e vendidas, vejo que há muitas complexidades neste raciocínio que tentei deixar plano como a terra não é.
longe de ser franciscana, quem é que precisava de sandalias melissinha, aquelas de plástico transparente e que suavam os pés e depois rasgavam quando estavam gostosas de usar? mas alguém teve a ideia de produzir sandálias e quando pareceu viável e lucrativo, criou-se a demanda por sandalias de plástico, especialmente entre adolescentes, mas não só. vendeu-se muita sandália de plástico. multidões enquanto isso continuavam descalças pisando o planeta intoxicado pelos resíduos resultantes da produção das sandálias para uns poucos. é só um exemplo, veja. mas não é a demanda que define o que se produz. o mecanismo é outro, e não prevê processos democráticos de tomada de decisão, nem a distribuição de bens, nem o acesso universal a direitos básicos como vida, água, comida, casa. nada.


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comentei com um amigo que estes dias circulam coisas lindas na internet. e ele me diz: li numa entrevista que “nunca os nossos olhares foram tão disputados”. cara e coroa.

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