14 de maio de 2020

atrás da grade

dois meses. tenho medo de ter me tornado um animal cativo, um bicho acostumado à jaula, aos limites das grades que toscamente fingem não restringir a liberdade porque permitem o passeio do olhar. sou já uma besta domesticada?

 

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se me dissessem que ficaríamos presos por dois meses sem sair, nem imaginaria que o que eu mais quereria, mesmo, seria sair pra poder voltar pra casa. voltar para casa é tão bom. quando viajo, mais ainda, mas num dia normal, também.  primeiro me afastar, trocando o que vai no pensamento: passo a me ocupar de desconhecidos, seus gestos, seus deslocamentos no mundo, seus olhares, até me tornar uma estranha para mim mesma e poder, então, me observar, me ver de fora, reparar em como me movo entre lugares  que não são os lugares do cotidiano, do limite metro de um móvel ao outro, de um canto da casa ao outro.


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alguns artistas que viveram em períodos de ditaduras explícitas chegam a acreditar que a opressão que vem de fora é que os moveu em sua arte, compreendendo a arte como um processo movido por um motor interno de busca de liberdade, de manutenção da liberdade de ser, ao menos sobrevivência desta liberdade. mas o que dizer deste momento em que não há um ditador que nos mande ficar em casa, e é uma outra coisa que nos imobiliza? no meio desta opressão difusa e que não necessariamente vem de fora, que movimento interno nos leva a construir, criar, insistindo em não deixar morrer a liberdade interna, e saindo deste círculo de besta presa? se o que me oprime sou eu mesma, quando é que o eu que grita começará a gritar? e o que será que ele dirá, me pergunto em murmúrio.


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o excesso de espetáculo do mundo por um lado me diverte. cada um que faz um rabisco, uma faxina, um corte de cabelo, um pão se anuncia, pede olhares sobre aquilo que fez. por que será que a gente quer tanto o olhar do outro, mesmo que esteja longe, mesmo que haja um olhar próximo? crianças pequenas fazem isso. é como se não sendo vistas, não existissem. vou assistindo os espetáculos de quem não tem nada pra mostrar. o registro mais do que nunca sistematizado dos nossos cotidianos. a que horas acordar, quem come o que de manhã, quem se exercita, quem se abate, quem atravessa o dia feliz, quem triste. quem tem cão quem tem gato tartaruga cobra macaco no quintal. como anoitece onde. que som que faz a tarde, o vizinho, a chuva. quem está lendo quê. quem só lê trechos, quem salta entre poemas, quem vê pedaços de filmes, quem vê todos os capítulos de uma série, quem insonia, quem trabalha muito. quem tem medo. quem não aguenta mais.

minha vida não é um livro aberto nas redes. não sou de contar o que faço. menos ainda de colocar fotos de tudo. dos meus filhos, por exemplo, não ponho suas imagens nas redes porque é uma imagem que parece ser minha – o filho é meu – quando, na verdade, tanto o filho quanto a imagem não me pertencem, é a imagem de um outro, e é este outro que tem que saber se quer ou não que sua imagem circule pelo mundo como circulam verônicas nas procissões da sexta santa.

por conta disso, evito sempre curtir fotos de criança. fico ranzinza. ou eu acho que pareço ranzinza porque provavelmente ninguém nem repara o que é que eu curto ou deixo de curtir. nem por isso deixei de achar engraçado um amiga, mãe há poucos meses, que, não resistindo ao impulso de colocar uma foto sua, maternal, segurando o bebê, resistiu ao impulso de exibir a imagem do filho e tapou a cara com um coração, ou com um sol, ou alguma coisa assim. e claro que eu adoro receber fotos de todas as crianças que vi nascer.

do que é que nos preservamos se tudo será usado contra nós?

não sei.


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por outro lado, não tenho paciência pra lives. se um tema me interessa, se a pessoa tem a dizer alguma coisa que me inquieta, se é um amigo, se é um conhecido, se a música, se o comentário, se o momento, sim, um poema, fico ali parada e vejo. mas não aguento mais tanta gente falando sobre tudo e lendo de um tanto e explicando e fazendo de conta que se expõe e tudo tudo tudo se reduz a espetáculos, cada um num desespero por não perder o olhar do outro, gritando para o mundo, gritando, bem alto. escrevi uma vez que nada se reduzirá a nada por eu gritar mais alto. mas talvez tudo se reduza a nada se todos continuarmos gritando e gritando e gritando. esse uivo.


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silêncio. tenho passado horas no silêncio. mesmo assim parece pouco.


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e há esta entrevista tão bonita.


2 comentários:

Remo disse...

“Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga.”
Gilles Deleuze

v. paulics disse...

que bom você aí na outra ponta do fio escrito.