11 de maio de 2020

palavras raras

gostava das segundas-feiras. mas desde que as segundas são praticamente iguais a todos os outros dias da semana, constato que elas me deixam triste. uma melancolia paira já de manhã, como se os músculos demorassem muito mais para conectar corpo movimento gesto café.

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está ventando muito. as plantas precisam de mais água nos dias de vento. mas eu não sei se a raiz ainda está molhada ou se está seca também. é um risco: deixar morrer por falta, deixar morrer por excesso. a difícil arte de saber o que está acontecendo para poder encontrar um equilíbrio. no gesto?

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outro café.

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ainda é de pão a fome que abate o mundo quando é maior a fome de abraços. era mais ou menos assim um cartão poema vendido na livraria pau-brasil que ficava em frente ao centro cultural da vergueiro. quase quarenta anos depois, estamos exatamente no mesmo.

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os satélites do elon musk confundem as pessoas. muita gente pensa que é invasão de etês. outros, que é chuva de meteoro, estrela cadente. e são só uns satélites de baixa altitude transmitindo dados entre nós, enquanto ficamos presos, sem poder sair. parece que mandaram ele pintar os satélites de preto porque ao refletirem a luz estão confundindo os telescópios que nunca se cansam de observar o universo. quem será que autoriza o envio de satélites? e não perguntaram antes se os satélites estavam pintados de preto? e quem é que agora mandaria pintar os satélites? ver a disputa pelo espaço faz a gente entender melhor o que era o tempo das grandes viagens de portugal e cia, explorando terras e estabelecendo colônias. eles também diziam que não tinha nada nem ninguém ali. nunca deixou de ter, eles que não conseguiam ou não queriam ver. o que será que a gente não está sabendo ver?

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un blanco, blanco dia. em espanhol é um jogo de palavras porque blanco é também um alvo, onde se atira. filme islandês, duro, triste, violento e ao mesmo tempo muito bonito na forma de narrar. diz-se que na islândia, quando os dias são brancos, os vivos podem escutar os mortos. o filme é sobre um homem que ficou viúvo e meses depois, lidando com a dor da perda, se dá conta que a mulher o tinha traído. o filme é sobre como este homem lida com a dor da perda dupla. e a violência de que ele é capaz até chegar no centro da dor. à noite tive pesadelos de mortes e traições, de violências.

em pouco tempo assistir vários filmes de um festival  – muito poucos se consideramos os 65 filmes exibidos – me fez lembrar de quando tinha tempo para assistir muitos filmes da mostra de cinema de são paulo . passava o dia inteiro por quase dez dias vendo coisas tão poéticas e outras tão incompreensíveis. mas  sempre renovava o olhar. (e nem sempre o filme que eu mais queria ver é o que permanece na memória.) estes dias foi assim, uma renovação do olhar. vimos também herzog falando de si mesmo ao falar de baldwin. e também the stormy night. e um filme do filho do tarkovski  sobre o pai. entre as coisas novas, havia uma antiga, o sátántango, do bela tarr, de 1994.

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ontem foi dia das mães em outra parte do mundo que não aqui. aqui foi um domingo antes. é muito estranho, sem desprezar a mãe que me pariu e as que pariram outros, que haja um dia para as mães. o engraçado foi fazer uma video chamada reunindo os irmãos e a nossa mãe. a nossa mãe. a gente sempre diz “minha mãe”, nunca diz “nossa mãe”. acho que é porque relação com mãe é sempre muito particular. mesmo que a mãe tenha muitos filhos, para cada um ela é a mãe, cada um dirá a “minha mãe”. numa video chamada isso se perde. ninguém diz  minha nem nossa, aliás, ninguém diz muita coisa, todos vamos contando coisas esparsas, falando de bobagens. o que vamos comer ou deixar de comer, quem é que usa óculos e a mãe ali, mãe de todos, sozinha, vendo os filhos todos acompanhados, aconchegados em novas famílias. numa video chamada não há como estender a mão, abraçar. ou passar um prato já feito de comida fresquinha. e que outra coisa se pode fazer por uma mãe além de retribuir os abraços e a comida?

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“saiba todo mundo um dia teve mãe índios africanos e alemães”.

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enquanto penso que a força da poesia brasileira é a canção, lembro que gosto, muito, desta letra do caetano:

Mãe (Caetano Veloso)

 

Palavras, calas, nada fiz

Estou tão infeliz

Falasses, desses, visses não

Imensa solidão

 

Eu sou um rei que não tem fim

E brilhas dentro aqui

Guitarras, salas, vento, chão

Que dor no coração

 

Cidades, mares, povo, rio

Ninguém me tem amor

Guitarras, salas, colos, ninhos

Um pouco de calor

 

Eu sou um homem tão sozinho

Mas brilhas no que sou

E o meu caminho e o teu caminho

É um nem vais nem vou

 

Meninos, ondas, becos, mãe

E só porque não estais

És para mim que nada mais

Na boca das manhãs

 

Sou triste, quase um bicho triste

E brilhas mesmo assim

Eu canto, grito, corro, rio

E nunca chego a ti

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"quando falo de espiritualidade estou falando da capacidade inquisitiva de alguém. perguntar-se, por exemplo, sobre o sentido da vida. uma pessoa que se faz esta pergunta já não voltará atrás, mas começará a evoluir na direção de outras perguntas como: por que existimos? de onde viemos? para onde vamos? qual o propósito da nossa presença neste planeta durante, sejamos otimistas, os 80 anos em que estamos neste mundo? em outras palavras, uma pessoa que não se faça ou que não tenha se feito estas perguntas não tem espiritualidade e a arte, ou o artista, que não leve esta questão a sério não é arte nem artista, porque nao é realista, porque ignora um dos problemas mais importantes da humanidade, e que converte um humano em humano. quando nos referimos a estes problemas aparece a autêntica arte." Andrei Tarkovski

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