12 de maio de 2020

...onde a vista alcança

Tarkovski com sua mãe

mais um dia. dormir, acordar, fazer a massa do pão. esperar que cresça. fazer almoço, limpar banheiro, regar as plantas. olhar em volta pela tela do computador. ver notícias dos amigos e conhecidos e desconhecidos. nunca saber exatamente o que se passa no mundo. o que é o mundo? onde a vista alcança? e se a vista está aqui, limitada, quatro paredes e umas janelas, o mundo se reduz?

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e os pequenos mundos que são as nossas casas nunca estiveram tão expostas. se antes era a casa das chamadas celebridades que aparecia em sites e revistas, agora nos interessa mais ver a casa daqueles que, mesmo não sendo nossos amigos, não chegam a ser exatamente celebridades, mas despertam nossa curiosidade. e é curiosidade pela curiosidade. saber os livros que estão ou deixam de estar nas estantes de alguém. saber os móveis da sala, a cor da parede da cozinha.  há uma certa ingenuidade em tirar conclusões disso que vem vindo à tona enquanto nos olhamos uns aos outros em videochamadas apresentações ao vivo aulas explicações.  quando tudo é cenário, por que acreditar numa imagem de fundo? pode ser montagem. pode ser um painel. pode ser um efeito do próprio programa de videoconexão. tudo pode ser aquilo que você vê, mas pode ser que nada seja aquilo.

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e o fetiche dos livros? por um lado cada vez mais circulam livros eletrônicos, práticos, não juntam pó, não pesam. por outro, várias entrevistas, de diferentes temas, procuram enquadrar livros numa estante – desordenados ou ordenados, mas sempre muitos. o que diz de alguém a quantidade de livros físicos que armazena?
é diferente comprar muitos pares de sapatos e exibi-los?
ou esculturas do mickey?
e quando formos todos nômades e já não tivermos livros físicos, mas todos eletrônicos, como vamos nos impressionar uns aos outros? e como saberemos o que lê quem viaja ao nosso lado?
ainda que não não me impressionem as estantes cheias de livro, fiquei surpresa vendo um ministro diante de uma prateleira vaziinha, sem nenhum livro, num ar de abandono.

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você não se impressiona com a obediência coletiva? mais do que a desobediência, me surpreende sempre a ação conjunta em torno de um mesmo objetivo. não só esse confinamento, não só o pagar os impostos, obedecer as leis. não. uma manifestação, por exemplo, pela liberdade dos outros. ou de apoio a alguma coisa. por exemplo, as manifestações do primeiro de maio. me lembro de vestir a camiseta vermelha e sair pra rua, na direção de onde seriam os discursos. e de vários lugares saíam pessoas, cada qual com a cor de camiseta que de alguma forma manifestava seu pensamento, todas indo para um mesmo lugar. onde não se teria acesso a nada concreto, nada imediato. várias pequenas decisões – e possibilidade de assumir a decisão tomada – formavam uma multidão num determinado ponto do planeta. sempre que penso nisso me surpreendo.
pensa no poder que tem qualquer – qualquer – decisão que você tome.

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nascer morrer nascer morrer nascer tantas vezes. a vida se impõe em muitos desdobramentos. sempre penso nisso de ser mãe. que não foi um caminho óbvio. e segue não sendo. também penso nisso: de num momento da vida ter sido concha, caverna, casa de outro alguém. mas também de mim: casa de mim.

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é difícil escrever todo dia. vão se acumulando mensagens. cada uma me exige abrir um universo de língua e raciocínio e quanto mais mensagens, mais me imobilizo. penso todas as respostas, elaboro na minha cabeça tudo tudo tudo, quando me sento na frente do computador, é como se as mensagens me soterrassem, fossem muito maiores do que minhas mãos a ampará-las e como são imensamente maiores que minhas mãos, caem no chão e não se prendem nas letras do teclado.  há mensagens caídas por toda a casa. vou recolhendo, lentamente. pouco a pouco chegarão aos seus destinatários.

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tem sido mais fácil varrer e fazer comida.

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quanto mais condensado é o cotidiano no espaço, mais fragmentado me parece o que sou capaz de pensar e elaborar a partir dele. muitas vezes, para escrever, saio caminhando, ou pego um ônibus para lugar qualquer. ou de bicicleta. sempre caminhos que não demandem a minha atenção, até me perder neles, como se o conjunto de palavras desordenadas fossem se tornando fluxo na medida em que ando, ando, ando, tempo espaço e movimento coordenados. esse ritmo é que me dá o ritmo da escrita. assim, parada, é uma escrita sem fluxo. o meu texto de um confinamento é um texto de cantinho, que olha pra parede, desolado.

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