Tarkovski com sua mãe |
mais um
dia. dormir, acordar, fazer a massa do pão. esperar que cresça. fazer almoço,
limpar banheiro, regar as plantas. olhar em volta pela tela do computador. ver
notícias dos amigos e conhecidos e desconhecidos. nunca saber exatamente o que
se passa no mundo. o que é o mundo? onde a vista alcança? e se a vista está
aqui, limitada, quatro paredes e umas janelas, o mundo se reduz?
***
e os
pequenos mundos que são as nossas casas nunca estiveram tão expostas. se antes
era a casa das chamadas celebridades que aparecia em sites e revistas, agora
nos interessa mais ver a casa daqueles que, mesmo não sendo nossos amigos, não
chegam a ser exatamente celebridades, mas despertam nossa curiosidade. e é
curiosidade pela curiosidade. saber os livros que estão ou deixam de estar nas
estantes de alguém. saber os móveis da sala, a cor da parede da cozinha. há uma certa ingenuidade em tirar conclusões
disso que vem vindo à tona enquanto nos olhamos uns aos outros em videochamadas
apresentações ao vivo aulas explicações.
quando tudo é cenário, por que acreditar numa imagem de fundo? pode ser
montagem. pode ser um painel. pode ser um efeito do próprio programa de
videoconexão. tudo pode ser aquilo que você vê, mas pode ser que nada seja
aquilo.
***
e o fetiche
dos livros? por um lado cada vez mais circulam livros eletrônicos, práticos,
não juntam pó, não pesam. por outro, várias entrevistas, de diferentes temas, procuram
enquadrar livros numa estante – desordenados ou ordenados, mas sempre muitos. o
que diz de alguém a quantidade de livros físicos que armazena?
é diferente
comprar muitos pares de sapatos e exibi-los?
ou
esculturas do mickey?
e quando
formos todos nômades e já não tivermos livros físicos, mas todos eletrônicos,
como vamos nos impressionar uns aos outros? e como saberemos o que lê quem
viaja ao nosso lado?
ainda que
não não me impressionem as estantes cheias de livro, fiquei surpresa vendo um
ministro diante de uma prateleira vaziinha, sem nenhum livro, num ar de
abandono.
***
você não se
impressiona com a obediência coletiva? mais do que a desobediência, me
surpreende sempre a ação conjunta em torno de um mesmo objetivo. não só esse
confinamento, não só o pagar os impostos, obedecer as leis. não. uma
manifestação, por exemplo, pela liberdade dos outros. ou de apoio a alguma
coisa. por exemplo, as manifestações do primeiro de maio. me lembro de vestir a
camiseta vermelha e sair pra rua, na direção de onde seriam os discursos. e de
vários lugares saíam pessoas, cada qual com a cor de camiseta que de alguma
forma manifestava seu pensamento, todas indo para um mesmo lugar. onde não se
teria acesso a nada concreto, nada imediato. várias pequenas decisões – e possibilidade
de assumir a decisão tomada – formavam uma multidão num determinado ponto do
planeta. sempre que penso nisso me surpreendo.
pensa no
poder que tem qualquer – qualquer – decisão que você tome.
***
nascer morrer nascer morrer nascer tantas vezes. a vida se impõe em muitos desdobramentos. sempre penso nisso de ser mãe. que não foi um caminho óbvio. e segue não sendo. também penso nisso: de num momento da vida ter sido concha, caverna, casa de outro alguém. mas também de mim: casa de mim.
***
é difícil
escrever todo dia. vão se acumulando mensagens. cada uma me exige abrir um
universo de língua e raciocínio e quanto mais mensagens, mais me imobilizo.
penso todas as respostas, elaboro na minha cabeça tudo tudo tudo, quando me
sento na frente do computador, é como se as mensagens me soterrassem, fossem
muito maiores do que minhas mãos a ampará-las e como são imensamente maiores
que minhas mãos, caem no chão e não se prendem nas letras do teclado. há mensagens caídas por toda a casa. vou
recolhendo, lentamente. pouco a pouco chegarão aos seus destinatários.
***
tem sido mais
fácil varrer e fazer comida.
***
quanto mais
condensado é o cotidiano no espaço, mais fragmentado me parece o que sou capaz
de pensar e elaborar a partir dele. muitas vezes, para escrever, saio
caminhando, ou pego um ônibus para lugar qualquer. ou de bicicleta. sempre
caminhos que não demandem a minha atenção, até me perder neles, como se o
conjunto de palavras desordenadas fossem se tornando fluxo na medida em que
ando, ando, ando, tempo espaço e movimento coordenados. esse ritmo é que me dá
o ritmo da escrita. assim, parada, é uma escrita sem fluxo. o meu texto de um
confinamento é um texto de cantinho, que olha pra parede, desolado.
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