19 de maio de 2020

...nos cúmulos de estrelas

gosto de acompanhar o noticiário do observatório astronomico de valência. é uma astrônoma que coordena a parte de comunicação, ela tem nome, rosto. e uma vez elaborou um projeto muito bonito de fazer uma representação em 3d da terra, da lua, do sistema solar, para que os cegos pudessem entender um pouco pelo menos do que vemos.

no noticiário que enviam cada dia da semana, às vezes, aparecem uns títulos muito poéticos. nem sempre entendo do que estão falando e me sinto dentro do livro do italo calvino, o cosmicômicas.

ontem, por exemplo, li  que "nos cúmulos de estrelas, sem que ninguém veja, buracos negros se fundem com estrelas de nêutrons".

mesmo quando não tem tanta poesia, o que mais me interessa é que, por focar o universo, o cosmos, o astronômico, me faz relativizar o caos, o cotidiano. com isso, encaixo cada movimento ínfimo num movimento amplo, infinitamente amplo. e me dou conta melhor da minha grandeza. é um pouco como entrar na sagrada família e me sentir fazendo parte do todo, mesmo me sabendo tantas outras vezes um nada, um nadinha.

 

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fico aflita vendo a exposição da vida das pessoas, do seu cotidiano.

o caminho destes tempos, acentuado pelo isolamento, é transformar tudo em espetáculo?

não sou um espetáculo, minha vida cotidiana não é um espetáculo, não sei e não quero transformá-la num espetáculo nas telas.

demorei muito para tornar público o que eu escrevia. primeiro, porque demorei para identificar um jeito próprio, depois, porque nunca é fácil encontrar editor, mas o principal era sempre a dúvida entre expor ou não o que eu escrevia.

por muito tempo cheguei a pensar que seria melhor assinar qualquer texto com pseudônimo para nunca correr o risco de associarem minha vida cotidiana com o que escrevo. o que escrevo, sim, é público, ainda que não seja um espetáculo. é outra coisa. é o quê?

quando publiquei meu primeiro livro, muita gente se surpreendeu porque não era um livro com histórias divertidas, engraçadas. inclusive a narrativa mais longa que dava nome ao livro todo era bem triste, triste, mesmo. e o espanto era: mas se você é tão divertida!

e sou. mas sou outras coisas também. apesar de ser tantas sendo uma só, não consigo ter um personagem, não sei ser performática. sem o personagem, não há espetáculo.

 

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quando alguém me diz que gosta do meu texto me dá uma alegria por dentro. e fico boba. fico sem saber o que dizer. não é o mesmo que dizerem que gostam dos meus filhos, mas de alguma forma se aproxima. não sou os meus filhos, não sou os meus textos. eles - filhos e textos - vão além daquilo que sou.

aos poucos vou aprendendo que se pode gostar de alguém sem gostar do seu texto. que se pode gostar do texto de alguém sem gostar do alguém, que se pode gostar de alguém e do seu texto, que se pode não gostar de alguém nem do seu texto, e tudo bem. o mundo segue tão alheio a tudo o que se escreve e se deixa de escrever.

quando alguém diz que lê e acha bonito, penso que talvez ainda faça sentido a sabedoria milenar que diz de uma teia de canções a cobrir o planeta. minha canção nem sempre tem muita melodia. mas sei que forma teias.


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pão. uma coisa que sempre se fez nas casas, que é tão simples de fazer, que toda cultura tem. as pessoas agora acham que pra fazer pão é preciso muito tempo livre. não é bem assim. mas é bom que todo mundo agora faz pão. só não é bom porque já não se acha fermento fresco pra comprar e às vezes seria melhor um fermento fresco que o levain. melhor talvez não. mais rápido e mais prático seriam palavras mais adequadas.

 

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o lhé morreu.

quando pela primeira vez fui ao acre no começo dos anos 90 uma das pessoas mais acolhedoras e carinhosas que conheci foi o lhé. era a personificação da delicadeza na ação política, do afeto, da tal ternura que todo mundo põe na camiseta mas não põe na vida. uma pessoa que busca a transformação, e não se acomodou quando o partido ao qual era filiado chegou ao poder. porque chegar ao poder não é o mesmo que transformar o cotidiano. e o lhé continuou ali, firme, transformando cotidianos.

a morte do lhé me fez pensar o que é ser de esquerda nestes tempos. e de como ser de esquerda é sempre mais humanamente amplo e feliz do que não ser de esquerda.

 

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vamos mudar de casa.

mudar é bom. também vai ser bom sair desta casa sempre entardecendo.

além de tudo, vamos nos livrar das baratas. há baratinhas na cozinha. saem dos cantos, quase sempre do mesmo canto. por isso às vezes tenho certeza de que moram dentro do microondas. ligo o microondas para ver se elas ficam assadas, depois desligo e penso, um pouco aflita: será que morreram?

o marcos visnadi escreveu os textos mais lindos que já li sobre baratas. mas nem eu encontro os textos dele, achando que os tinha guardado, nem ele.  um dos poemas lembrava a sabedoria de botequim: se você vê uma barata, tem outras dez te vendo. também falava de deus e da morte. como tudo o que ele escreve. não à toa, o marcos estuda os textos da hilda hilst.


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de maps, fui à antártida. e tirei uma foto.

parecia frio.

aqui já não está frio. e até eu, que nem sou muito de praia, espero o dia em que poderei me deitar na areia. largada ao sol.

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